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CULTURA

Censura, obscurantismo e ofensiva ideológica: a política cultural no primeiro ano de governo Bolsonaro

Por Lara Lima* e Alexandre Velden*, do Rio de Janeiro (RJ)

“Temos que afirmar nossa solidariedade por meio da crença num espírito de abertura intelectual que celebre a diversidade, acolha a divergência e se regozije com a dedicação coletiva à verdade.”
(bell hooks)

Nos primeiros dias de 2018 publicavamos o texto “A serviço de quem está o obscurantismo e a censura?” em uma tentativa de apontar a escalada da censura e como a agenda conservadora buscava invisibilizar minorias e o debate sobre as opressões e a exploração no capitalismo contemporâneo. No mesmo ano, a escalada reacionária se desenvolveu, Bolsonaro foi eleito e a ofensiva ideológica ficou menos envergonhada. De lá para cá, o Observatório da Censura à Arte, que trabalha listando as expressões artísticas censuradas no Brasil desde o caso do Queermuseu (setembro de 2017) registrou 29 episódios de censura, sendo 15 apenas no segundo semestre de 2019.

Se a cultura e a arte podem questionar o mundo extremamente desigual em que vivemos e ser o canal de expressão de grupos invisibilizados, é certo a guerra contra esse potencial por parte de projetos autoritários de sociedade. O governo Bolsonaro não é exceção. Desde sua eleição avança na censura, elegeu diversos artistas como inimigos públicos, busca apoio atacando demagogicamente leis de incentivo à cultura e aparelha os orgãos de cultura com a indicação de “pessoas do mercado”, conservadores e “olavistas”, muitos sem a menor experiência ou compromisso com o setor da cultura. Dessa forma, através de “intelectuais” e “gestores” alinhados com seu reacionarismo, busca escrever uma “nova história” na qual monarquia, escravidão e conservadorismo seriam signos benéficos, em contraposição ao feminismo, a luta LGBT e anti-racista e os grandes males do “marxismo cultural”.

Neste texto procuramos levantar as medidas e políticas no campo da cultura e da arte no Brasil em 2019, apontando os retrocessos institucionais na área, assim como sua ligação com as pautas e o projeto reacionário e neofacista de Bolsonaro.

Ultraliberalismo e demagogia

Como é de costume em governos eleitos que proclamam a “liberalização e a desburocratização da economia” como remédio para todos os males sociais, no início de governo Bolsonaro o Ministério da Cultura foi rebaixado a Secretaria, assim como no governo Collor em 1990 e no governo Temer. Essa última tentativa frustrada após diversas lutas dos trabalhadores da cultura, tendo como emblema o OcupaMinc, movimento de resistência organizado pelos trabalhadores da cultura que ocupou o Edifício Capanema no Rio de Janeiro, e o MinC em São Paulo em 2016. Ministério com uma das menores despesas executadas do orçamento (menos de 0,01% dos gastos públicos entre 2014 e 2018 segundo o portal transparência) o setor da cultura viveu uma queda livre na última década. De um limite de pagamento autorizado em 2010 de 1281 mi para menos de 600 mi em 2018, onde quase a totalidade desse orçamento é dedicada a custeio e não revertida a políticas públicas diretamente, o setor vive ainda o efeito nefasto da Emenda do “teto de gastos” (EC95) que sufoca recursos para o setor. Estrangulando ainda mais os recursos, no fim de 2018 Bolsonaro anunciava a transformação do MinC em Secretaria, alocada no Ministério da Cidadania e em novembro no Ministério do Turismo. A movimentação significa na prática uma queda sem precedentes nos recursos e no funcionamento do setor de difícil mensuração.

Além disso, sem debate com os trabalhadores da cultura, suas entidades representativas ou orgãos da sociedade civil, Bolsonaro fez alardes sobre acabar com a “mamata” da Lei Rouanet. Para isso apresentou uma Instrução Normativa que estabelece regras, como a diminuição dos limites para os projetos inscritos, o que na prática apenas formalizam a realidade, já que 70% dos projetos apresentados a Lei são de pequeno porte. Como era de se esperar, o governo não propôs uma reforma substancial da Lei, e sim, utilizou o tema para fazer propaganda, se aproveitando para perseguir politicamente e ideologicamente artistas, gestores e profissionais não alinhados.. É importante lembrar que a Lei Rouanet se dá através da “renúncia fiscal”, ou seja, os projetos após serem aprovados captam recursos junto a empresas para se realizarem, sejam públicas ou privadas. Modelo criticado desde sua implementação devido a seu caráter “privado”, onde o setor de marketing das empresas é responsável por decidir quais projetos merecem recursos, submetendo a produção cultural à lógica do mercado e aos interesses dessas empresas.

Censura e ofensiva ideológica conservadora

O ataque também se dá nos meios de comunicação e difusão da cultura, como na unificação em maio da TV Brasil – principal canal público do país – com a emissora NBR, responsável pela comunicação oficial do governo. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e a Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública denunciaram a inconstitucionalidade da medida e o interesse do governo em transformar a emissora em instrumento de propaganda governamental, argumentando que “mesclando programações com finalidades distintas em uma só, o governo enterra o projeto de comunicação pública com foco no cidadão e pautado pela pluralidade, diversidade e independência de conteúdo”.  Durante a data de descomemoração do golpe de 1964, profissionais da EBC e entidades de classe denunciaram a censura a programas sobre o tema além de indicações para não utilizar o termo “ditadura” e “golpe”. Já em outubro a TV Brasil teve a imagem de Marielle Franco censurada no programa “Anteniza”, tendo sido demitido o diretor de programação da EBC após o ocorrido.

O ataque a aparelhos culturais não é diferente. Após o cancelamento de diversas apresentações na Caixa Cultural, funcionários revelaram um esquema de censura prévia e centralismo de decisão. Segundo matéria veiculada pela Folha de São Paulo haveria a análise das obras a partir de “possíveis riscos de atuação contra as regras dos espaços culturais, manifestações contra a Caixa e contra governo e quaisquer outros pontos que podem impactar”, assim como o “histórico do artista nas redes sociais e na internet e participação em outros projetos” e “histórico do produtor nas redes sociais e na internet”, levantamento a ser inspecionado pela superintendência da estatal e da Secretaria de Comunicação (Secom) do governo federal. Espetáculos, palestras e projetos já aprovados em editais foram cancelados sem justificativa, como a peça infanto-juvenil Abrazo e a mostra Dorothy Arzner. Sob diferentes abordagens, os projetos tocam as temáticas feminismo, LGBT, críticas ao autoritarismo, e outros temas caros ao governo Bolsonaro.

No mesmo sentido, em Abril Bolsonaro ordenou a retirada de uma campanha publicitária do Banco do Brasil estrelada por atrizes e atores negros, o que culminou na queda do diretor de Comunicação e Marketing do banco. Em agosto, a BB DTVM (subsidiária do BB), lançou um edital para longas-metragens que questionava se as produções apresentavam caráter político ou religioso, se fazem menção a crimes, prostituição ou se apresentam nudez, demostrando efetivamente a intenção de censura desses temas. Nos Centros Culturais do Banco do Brasil, também há denúncia de censura, como o caso de Caranguejo Overdrive (Aquela Cia) em outubro. Já os filmes Nosso Sagrado, Rebento e Mente Aberta tiveram suas projeções canceladas no Centro Cultural da Justiça Federal no Rio e a peça Res Publica 2023 (A Motosserra Perfumada), com sua estréia já agendada, fora vetada pela Funarte.

Em agosto, ao mesmo tempo que Bolsonaro criticava produções ligadas a temática LGBT nas redes sociais – “Sexo Reverso”, “Transversais”, “Afronte” e “Religare Queer” – uma portaria do Ministério da Cidadania impedia a conclusão de um Edital da Ancine no qual constava no edital a temática LGBT. A intervenção levou o Secretário da Cultura – Henrique Pires – a deixar o cargo alegando não compactuar com as tentativas de censura do governo federal. Por fim, o Ministério Público Federal pediu a anulação da portaria e a conclusão do edital, apontando o caráter discriminatório à temática LGBT de tal artifício jurídico.

Já a Ancine sofre atualmente uma intervenção do Tribunal de Contas da União, que questiona a prestação de contas do Fundo Setorial do Audiovisual o que paralisou o setor. A agência aponta que já apresentou um novo modelo de prestação de contas e controle, entretanto, em meio a notícias de aparelhamento e censura, a questão não parece ser um simples imbróglio jurídico. A ofensiva se dá pelo estrangulamento financeiro, com um corte de 43% de fundo do audiovisual, com a menor dotação nominal para o FSA desde 2012 prevista para 2020. A necessidade de “filtros” ideológicos e moralistas na Ancine são ventilados por Bolsonaro e sua equipe sem meias palavras. Ao longo de todo o ano o presidente declarou ser contrário a investimento de dinheiro público em filmes que escancaram as opressões. Em um ultimato para que a agência e o meio se curve a sua censura afirmou: “Vai ter um filtro sim. Já que é um órgão federal, se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos, passarei ou extinguiremos”. Previsto para ser lançado em novembro, mês da Consciência Negra e de 50 anos de sua morte, o filme Marighella, teve seu lançamento cancelado. Wagner Moura, seu diretor, e a produtora do filme declaram articulações para a burocratização nos repasses e em ratificações da Ancine com o intuito de prejudicar o filme.

Nesse dezembro, fomos surpreendidos pela denúncia de funcionários da Ancine do cancelamento da exibição de “A vida Invisível” (do diretor Karim Aïnouz) na própria agência, que ocorreria como parte de um programa de capacitação de seus funcionários. A agência alegou problemas na projeção, porém, funcionários informaram não haver nenhum problema técnico. Vale ressaltar a presença da temática LGBT nos filmes de Karim, bem como a presença de Fernanda Montenegro no elenco, adjetivada como “sórdida” e “mentirosa“ recentemente pelo Secretário de cultura Alvim. Respondendo a censura, a Associação dos Servidores Públicos da Ancine promoveram uma projeção e debate sobre o filme nas proximidades da agência no centro do Rio de Janeiro.

Além disso, o Observatório da Censura à Arte aponta ainda no ano de 2019 censura aos shows de B Negão, Linn da Quebrada, Gustavo Mendes, a Bienal do Livro do Rio de Janeiro, a exposição de charges da Câmara de Vereadores de Porto Alegre e a exposição Dança das Cadeiras no shopping Ponteio em Belo Horizonte.

Além do mais, através de projetos de lei, a censura também procura institucionalizar-se, como é o caso do PL 5194/2019 apresentado em setembro pelo deputado federal do PSL de Minas Gerais, Leandro Evangelista. Sua proposta visa modificar o Código Penal visando criminalizar músicos que tenham obras consideradas “pejorativas” e “ofensivas”. Projetos de Lei como esse ultrapassam preocupações com a faixa etária adequada do consumo cultural, questão aliás presente no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) – e outros mecanismos legais – atacado pelo bolsonarismo. Longe de “proteger as crianças”, leis como o PL 5194 são precedentes para a criminalização de determinadas manifestações culturais e artísticas (e seus respectivos atores e grupos sociais), além de ser uma forma propaganda para as bases do eleitorado conservador.

Em uma sociedade marcada pela desigualdade social e a opressão, sem dúvida, serão consideradas por esses censores, “pejorativas” e “ofensivas” as manifestações culturais que questionam suas ideologias autoritárias, ou que denunciem a fase nefasta do ultraliberalismo, o racismo, a lgbtfobia e o machismo. Vale lembrar o caráter racista e de classe presente na prisão de Rennan da Penha, que liga-se criminalização das populações periféricas e de seus espaços autônomos de lazer, cultura e política.

Obscurantismo e os intelectuais reacionários do bolsonarismo

Bolsonaro foi eleito denunciando as “nomeações políticas”, porém suas indicações de governo não demonstram nada de “técnico”. Nunca tantos militares estiveram em cargos de chefia e assessoramento – ao menos 2.500 – nem tantos militares ocuparam cargos de ministros: 8 dos 22 ministros além de Bolsonaro e Mourão. Se a coligação de “Bolsonaro” em sua eleição representou um fenômeno relativamente descolado das tradicionais alianças fisiologistas e a “direita tradicional” do Congresso, é fato que o setor mais reacionário que o apoiou foi incorporada nos Ministérios, assim como parte da direita. Na cultura, o aparelhamento ideológico não é diferente. Após cogitar o nome de Marcos Soares (filho do pastor R. R. Soares) para a Secretaria Especial da Cultura, Bolsonaro entregou o cargo a Henrique Pires, que como comentado, deixou o posto após o governo suspender edital com a temática LGBT. Ricardo Braga foi então nomeado. Economista de formação, Braga nunca trabalhou no setor da cultura, tendo feito sua vida profissional no mercado financeiro, em bancos e corretoras, o que demonstra, assim como a passagem da secretaria da cultura para o Ministério do Turismo, uma visão que resume e subordina a cultura e a arte produzida no Brasil, não só ao conservadorismo, mas aos interesses e a especulação do mercado.

Por fim, Roberto Alvim, então diretor de artes cênicas da Funarte, foi nomeado para a Secretaria Especial de Cultura. Diretor teatral premiado e reconhecido em sua geração, após revelações espirituais e o tratamento de um câncer em 2017, haveria abandonado o “esquerdismo”. Ao longo de 2018 o diretor causou polêmicas com suas postagens sobre o ostracismo artístico que sofreu após declarar sua admiração por Olavo de Carvalho e apoio a Bolsonaro. Alçado a Funarte anunciava em seu Facebook a criação de uma “máquina de guerra cultural”, conclamando que artistas e profissionais que se alinhassem com seus valores lhe enviassem seus currículos para “um grande banco de dados de artistas de teatro conservadores para aproveitamento em uma série de projetos”. Anunciando sua cruzada contra o “marxismo cultural” e a “agenda progressista” propôs ainda na Funarte a revitalização do Teatro Glauce Rocha (Rio de Janeiro) para ser o “primeiro teatro do país dedicado ao público cristão”. De acordo com processo aberto na Funarte, o espaço seria entregue a Companhia Jeová Nissi de orientação evangélica. Além das ofensas a Fernanda Montenegro, Alvim continua a protagonizar aparições raivosas em eventos públicos xingado de “canalhas” a quem critica o governo Bolsonaro  e com declarações como a arte brasileira ser hoje “um meio para escravizar a mentalidade do povo em nome de um violento projeto de poder esquerdista”. O Secretário “olavista” é um dos cães mais raivosos de Bolsonaro, com um canal direto com o presidente interferindo em nomeações, sendo sua última indicação a de Sérgio Camargo para a Fundação Palmares. Conhecido pelas declarações sobre a escravidão ter sido benéfica aos negros, que “negro de esquerda é burro, é escravo” e o “racismo nutella” existente no Brasil, a Justiça Federal suspendeu a sua nomeação.

Já a presidência da Funarte foi assumida pelo maestro Dante Mantovani, conhecido por citações nas redes como a que afirma que o “rock ativa as drogas, que ativam o sexo livre, que ativa a indústria do aborto, que ativa o satanismo”. Em seu canal de Youtube mistura teorias da conspiração e obscurantismo, em histórias que envolvem a destruição das famílias como parte de um plano de dominação global Soviético em conluio com os Beatles, Elvis Presley e a distribuição de drogas no Woodstock por infiltrados russos na CIA. Já Rafael Nogueira, declarado “olavista” e simpatizante da monarquia, também foi indicado por Alvim para a presidência da Biblioteca Nacional. A Secretaria do Audiovisual passou da nomeação comemorada por Alexandre Frota, de seu biógrafo, Pedro Peixoto, para as mãos do obscuro pastor Edilásio Barra. As indicações políticas e o aparelhamento permanecem sendo denunciados como no caso das superintendências do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a intervenção na Cinemateca Brasileira em São Paulo.

Como podemos ver, Bolsonaro, que se elegeu sob a bandeira de acabar com o “toma-lá-dá-cá” e com o” aparelhamento da esquerda” em cargos públicos, tem colocado em prática exatamente o oposto. Para ter um cargo em seu governo, basta ser seguidor de Olavo de Carvalho, ou concordar com suas falácias e teorias de conspiração. Com isso, obtém controle ideológico sobre as políticas públicas e organiza uma máquina de difamação e guerra cultural. Desavergonhados, não escondem mais que tem “partido”, “ideologia” e pretendem ganhar a sociedade para o conservadorismo. A verdade é que o clima de obscurantismo avança e aponta um projeto mais amplo, em uma ofensiva que adentra o Estado, as secretarias, e aparelha com seus aliados ideológicos e políticos os cargos estratégicos. Há intenção manifesta em expulsar da política e gestão cultural os críticos da gestão bolsonarista, e em contrapartida, aliciar apoios dóceis e acríticos. Reativa-se o grande balcão de negócios da era Sarney, mas agora as chapas-brancas também devem se pintar de cores reacionárias.

Esses agentes, de forma conivente, tímida ou como manifestos intelectuais do conservadorismo, procuram dar forma a um projeto mais amplo de poder e sociedade na qual um suposto “padrão” de “normalidade” e “expressão cultural” deve ser aceito em detrimento das demandas das minorias, sejam elas institucionais, econômicas, sociais ou culturais. Para isso, é preciso calar o pensamento crítico, democrático e plural em todos os espaços, como vemos atualmente nos ataques às universidades públicas no país e à figura de Paulo Freire, patrono da educação e importante intelectual brasileiro reconhecido mundialmente por sua proposta de pedagogia para liberdade.

Diante de tantos ataques, sem ingenuidade, podemos concluir que existe uma verdadeira guerra em curso, que tem o objetivo de levar o país para tempos sombrios e que esses ataques são orquestrados. Nesse momento é necessário sabermos quem são nossos inimigos e nos unirmos contra o retrocesso. Contra a ofensiva reacionária e obscurantista, nos apoiemos na luta daqueles que vieram antes de nós e resgatemos a pedagogia de Paulo Freire através da leitura de Bell Hooks: “Temos que afirmar nossa solidariedade por meio da crença num espírito de abertura intelectual que celebre a diversidade, acolha a divergência e se regozije com a dedicação coletiva à verdade.”

Marcado como:
Um ano de Bolsonaro