*Texto originalmente publicado em Esquerda.net
A menos de dois dias das eleições de quinta-feira na Argélia, o povo voltou às ruas para rejeitar o voto no dia 12, por não estarem reunidas as condições democráticas mínimas para que o resultado seja justo. Na capital, Argel, a tradicional manifestação estudantil das terças-feiras – a 42ª consecutiva desde que o movimento (Hirak) começou – foi reforçada pela população e percorreu as ruas do centro da cidade.
“A multidão era de tal forma densa que se tornou difícil avançar. (…) Brandindo cartões vermelhos nos quais estava inscrita a frase ‘Não ao voto’, os manifestantes reafirmaram a sua determinação de prosseguir a mobilização”, relata o site TSA (Tout Sur L’Algérie)(link is external). E prossegue: “H’na ouled Amirouche, marche arrière ma nwellouche” (Nós somos os filhos de Amirouche1, não há marcha atrás, não vamos recuar” ecoou ao longo do caminho percorrido. Os comércios situados no itinerário da marcha baixaram as grades depois de os manifestantes lançarem o apelo à greve geral”.
A imponente manifestação desta terça-feira veio colocar de novo o povo da capital na vanguarda da luta, depois de ontem ter havido uma adesão apenas parcial à greve geral de quatro dias até às eleições. Nesta terça-feira, além de Argel, houve grandes mobilizações em Bejaia, Tizi Ouzou, Oran, Annaba, Mostaganem, Sétif et Biskra.
A greve entrou muito forte no seu segundo dia em cidades como Bejaia, Tizi Ouzou, Bouira, Boumerdès, parcial em Sétif e Argel. Isto corresponde a dizer que a vanguarda da greve geral, com paralisações que rondam os cem por cento, está a ser a Cabília.
A Cabília é uma região da Argélia onde moram os cabilas, um povo berbere que usa a segunda língua berbere mais falada no Norte de África. Este idioma foi reconhecido na Argélia como língua nacional em 2002 e como língua oficial em 2016.
O facto, porém, de constatar este papel de vanguarda dos cabilas não deve servir para retirar conclusões apressadas, alerta um artigo do site DZVID, que adverte para o perigo das “leituras etnicistas e redutoras e os discursos regionalistas que servem mais o sistema e a sua tentativa de semear o caos”. Segundo estas leituras, os argelinos árabes teriam menos capacidade de contestar o sistema e rejeitar as suas eleições do que os cabilas. “O regime incarnado por Gaïd Salah não esperava melhor que uma divisão de caráter etnicista cabila-árabe nas vésperas das suas rejeitadas eleições”, alerta o artigo.
“É certo que a Cabília possui uma longa tradição de luta e uma acumulação de experiências que fizeram com que ela tenha adquirido reflexos de militantismo e de organização particulares que não se encontram noutros lados. Mas que valem essas capacidades se não forem exploradas para servir a unidade contra um sistema que se alimenta da divisão nas fileiras dos argelinos e que alimenta a discórdia entre os filhos da Argélia?”, observa o autor do artigo, que assina Idir F..
Presos de opinião entram em greve de fome
Nesta terça-feira, dia em que se assinalou o aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, os presos de opinião, militantes detidos pelo seu ativismo no Hirak, decidiram entrar em greve de fome. O advogado Abdelghani Badi, um dos que defende benevolamente os detidos, anunciou o início da greve nas redes sociais(link is external). O objetivo é denunciar a sua detenção abusiva e “manifestar a sua rejeição das eleições impostas contra a ampla escolha popular de uma transição política real”.
Cerca de 140 argelinos estão detidos nas prisões de Gaïd Salah, presos preventivamente ou condenados injustamente por participarem nas manifestações ou por exibirem a bandeira berbere. Entre estes presos estão heróis nacionais como Lakhdar Bouregaa, de 86 anos, comandante do Exército de Libertação Nacional durante a guerra da independência, ou Karim Tabbou, 46 anos, porta-voz da União Democrática e Social, um partido não legalizado, e um dos ativistas mais destacados do Hirak.
Apelo à rejeição da farsa eleitoral de 12 de dezembro
Às vésperas da data marcada para as eleições presidenciais na Argélia, foi divulgado na última segunda-feira um apelo (link is external)assinado por partidos de oposição, personalidades, movimentos sociais e sindicatos autónomos que chamam “os argelinos e argelinas, no país e na diáspora, a continuarem a rejeitar, por todos os meios pacíficos, a farsa eleitoral de 12 de dezembro, permanecendo vigilantes contra todas as provocações contra-revolucionárias.”
O apelo é assinado por numerosos intelectuais, professores, médicos, artistas, jornalistas, investigadores, associações e movimentos sociais, sindicatos e seis partidos políticos: Frente das Forças Socialistas (FFS), Movimento Democrático e Social (MDS), Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Socialista dos Trabalhadores (PST), Reunião pela Cultura e a Democracia (RCD) e União pela Mudança e o Progresso (UCP), além da Liga Argelina em Defesa dos Direitos Humanos (LADDH).
O documento não usa meias-palavras para caracterizar o governo que pretende impor as eleições: trata-se de “um poder de facto, ilegal e ilegítimo, que se dedica a completar as sequências de um verdadeiro golpe de força procurando recuperar o levantamento popular que depôs Abdelaziz Bouteflika.” Esse poder de facto, porém, não consegue disfarçar o seu verdadeiro objetivo: “a manutenção do sistema autoritário e corrupto”. Os signatários acusam os detentores do poder, “fortalecidos pelo controlo do poder securitário do país”, de se obstinarem “a impor um presidente da sua escolha”, e para isso estão “decididos a sufocar a revolução cidadã e democrática”.
O apelo considera que “a resistência pacífica do povo é um direito legítimo e um dever”. Assim, em nome das dezenas de milhões que têm saído às ruas em poderosas manifestações, exigem “a extinção dos entraves às liberdades democráticas individuais e coletivas e a libertação dos presos políticos”, e reivindicam uma mudança de sistema político que só será possível através de “uma transição democrática e de um processo constituinte soberano” que ocorra “fora do controlo das figuras e instituições autoritárias do regime”.
O apelo termina com uma das palavras de ordem mais gritadas nos últimos dias: “Makanch intikhabat mâa l’îssabat”, ou seja: “Não à eleição com os bandos mafiosos”.
Governo prepara realidade virtual
As urnas nos consulados da Argélia no exterior já estão abertas desde sábado, e as comunidades argelinas organizaram-se para garantir um amplo boicote ao processo, levando o esclarecimento aos argelinos da emigração. Em Paris, o local de reunião habitual dos argelinos passou da praça da República para a frente do consulado, onde se mantiveram em massa(link is external) procurando dissuadir quem se apresentasse para votar, exibindo cartões vermelhos. No domingo, foram muito poucos os eleitores escoltados pela polícia francesa, que lhes garantiu a entrada no Consulado.
Em Montreal, os argelinos do Canadá mobilizaram-se na operação “Zero Voto”(link is external). Centenas concentram-se diante do consulado gritando palavras-de-ordem, como “Não, não votarei contra o meu país”, ou “Nenhum voto sob o reinado dos militares”.
Em todos os países onde há comunidades argelinas, os partidários do Hirak mobilizam-se pelo boicote à farsa.
Mas isso não parece preocupar muito o governo de Argel e a dita Autoridade Nacional Independente das Eleições (ANIE), cujo porta-voz, Ali Draa, declarou que a participação nas eleições da comunidade argelina no exterior era “aceitável”.
Pequenas manifestações a favor das eleições, organizadas pelos burocratas pró-governo da UGTA , aparecem na televisão com afirmações de que foram maiores do que as dos que se opõem. Mas nenhuma imagem destas últimas aparece, nem no canal público, nem nos privados que seguem os mesmos passos.
Quem não siga a informação via internet e não compre os pouquíssimos diários de papel de oposição, como o El Watan(link is external) ou o Liberté-Algérie(link is external)(e quem também não saia às ruas, diga-se de passagem) corre o risco de entrar num mundo virtual onde o Hirak, de início tão elogiado pelo chefe do Exército, subitamente desapareceu.
Essa é a aposta do general Gaid Salah(link is external), que elogiou o “patriotismo” da comunidade argelina no exterior, afirmando que “as imagens marcantes e expressivas da nossa comunidade no estrangeiro… são a melhor prova da ligação afetiva, profunda e sólida dos nossos emigrantes com a sua pátria, apesar do afastamento. Imagens sinceras que constituem uma resposta aos traidores e aos céticos quanto à autenticidade deste povo e da sua aptidão a superar todas as provas, quaisquer que sejam as circunstâncias.”
Tais imagens estão apenas nas fantasias do general: nenhuma televisão argelina conseguiu mostrá-las, simplesmente porque não existem. Aliás, o que mostram as televisões desses países, nomeadamente as francesas, é precisamente o oposto.
Assim, tudo leva a crer que o regime, que organizou as presidenciais para se manter no poder com alguma (pouca) maquilhagem, se prepara para no dia 12 entronizar aquele, entre os cinco candidatos, que foi escolhido pelo exército para ser presidente. Seja qual for o número de votos que entre realmente nas urnas.
Diz-se que, nas últimas eleições que renovaram os mandatos de Bouteflika, a participação terá sido de 10 a 15% – isto é, houve uma abstenção de 85-90%. Nada que incomodasse muito a elite governativa e o Exército.
Só há uma diferença entre essa época e a atual: o Hirak. E já no dia a seguir às eleições é sexta-feira.
1 Chamado pelos franceses de “o lobo de Akfadou” e “Amirouche o terrível”, coronel do Exército de Libertação Nacional durante a guerra da independência da Argélia.
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