Ninguém interpretou tão bem o Brasil, a essência de sua formação social, como Caio Prado Jr. Retomar o pensamento caiopradiano em tempos atuais é importante para compreender o que está em curso na sociedade brasileira.
Policiais batendo em jovens encurraladas nas ruas de Paraisópolis, indígenas sendo dizimados, direitos de trabalhadores sendo pulverizados, Amazônia sendo queimada por ruralistas não se constituem em pontos fora da curva, mas sim no leito ‘normal’ do que sempre fomos.
A contribuição originalíssima de Caio Prado é a de que o sentido do Brasil, o que nos tornamos, se encontra na colonização. Esse evento – violento – nos definiu e nos aprisionou.
O Brasil surge, diz o historiador-geógrafo-economista paulista, como uma vasta empresa territorial voltada para fora e controlada de fora. O sistema que aqui se montou, e até hoje não foi desmontado, se assenta no tripé: grande propriedade, monocultura e trabalho escravo.
Em sua obra explicativa sobre o Brasil Formação do Brasil Contemporâneo (1942), Caio Prado afirma: “Se vamos à essência da nossa formação veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café para o comércio europeu. Nada mais que isto” [1].
Continuamos séculos e décadas depois fornecedores: carne de todo o tipo (bovina, frango, suína), minérios, soja, etanol… Fala-se reprimarização de uma economia que nunca deixou de ser primária.
O sistema-colonização-empresa, sugere Caio Prado, se constituiu numa violenta espoliação da natureza e de pessoas. O real interesse sempre foi o da pilhagem das riquezas com o trabalho recrutado entre indígenas e negros africanos importados. Foi o trabalho braçal escravo que derrubou, arou, lavrou, plantou, colheu. Como recorda Giberto Freye, o negro era o faz-tudo: “escravos para plantarem a cana; para a cortarem; para colocarem a recortada entre as moendas impelidas a roda de água; limparem depois o sumo das caldeiras de cocção; fazerem coalhar o caldo, purgarem e branquearem o açúcar nas formas de barro; destilarem a aguardente” [2]. Ou ainda como diz Darcy Ribeiro, “o negro era como um saco de carvão, acabou um, pega outro”.
Constituímo-nos, alerta Caio Prado, numa dualidade: Um setor orgânico: sistema produtivo voltado para fora e um setor inorgânico: os que se constituem como apêndice do processo produtivo. Esse sistema configurou a inexistência de uma sociedade, não há integração entre produção e consumo porque não há renda. Pior ainda: não há direitos.
O Brasil nasce com a negação de direitos. Aos pobres, primeiro escravos, depois os trabalhadores rurais e hoje os que vivem nas periferias foi negado o direito de terem direitos. Essa ‘originalidade’ perversa afirma Caio Prado nos impossibilitou de nos tornamos uma nação.
Há, porém, outra particularidade deletéria em nossa formação: a violência das elites contra os mais pobres. A violência do Senhor do engenho, dos coronéis, dos fazendeiros, dos patrões, dos banqueiros. Na esteira de Caio Prado, quem dá ênfase a essa particularidade é Florestan Fernandes para quem “a oligarquia rural comboiou os demais setores da classe dominante, selecionando a luta de classes e a repressão do proletariado como eixo da Revolução Burguesa no Brasil” [3].
O que Florestan diz é que as elites brasileiras carregam em seu DNA a violência como prática e método contra os mais pobres, contra aqueles que ameaçam os seus interesses. Essa recomposição de poder entre a oligarquia rural atrasada e a burguesia conservadora resultou num Estado avesso e refratário às demandas e participação popular.
Pobre, preto, favelado, trabalhador, indígena tem que ser tratado a ferro e fogo. Servem apenas como mão de obra barata, hoje nem mais isso, de um sistema que se reproduz. Nem a esquerda em seu pequeno respiro de poder após séculos do sistema-colonização-empresa conseguiu trincar esse modelo, sequer o arranhou.
Agora, passado essa lufada de sonho de um outro modelo, retornamos ao que sempre fomos, um país em seu insuperável tripé: monocultura, latifúndio e trabalho não mais escravo, mas precário.
Como diz Caio Prado ainda nos anos 1970, “deixamos de ser, em nossos dias, o engenho e a ‘casa grande e senzala’ do passado, para nos tornarmos a empresa, a usina, o palacete e o arranha-céus; mas também o cortiço, a favela, o mocambo, o pau-a-pique (…) O sistema colonial brasileiro se perpetuou e continua muito semelhante (…) Somos hoje o que nós éramos ontem” [4].
*Cesar Sanson é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Artigo publicado originalmente no portal do Instituto Humanitas Unisinos, em 03/12/2019.
Notas
[1] PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, 1942, pp. 239-240
[2] FREYRE, Gilberto. Casa Grande. Casa Grande & Senzala, 2003, p. 517
[3] FERNANDES, F. A Revolução Burguesa no Brasil, p.209
[4] PRADO JÚNIOR, Caio. A Revolução Brasileira, 1978, pp. 239-240
Comentários