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Engels e as revoluções de maioria como aposta estratégica

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Após a vitória, o Poder caiu pôr si mesmo, de modo indisputável, nas mãos da classe operária. Pôde-se então ver, mais uma vez, como esse Poder da classe operária ainda era impossível vinte anos depois da época que descrevemos aqui. Por um lado, a França deixou Paris sozinha(…); por outro lado, a Comuna deixou-se consumir na querela estéril dos dois partidos em que se divi­dia, os blanquistas (maioria) e os proudhonistas (minoria), ambos sem saber o que fazer. [1]

Hoje, ao cabo de vinte anos, voltando os olhos para as atividades e a significação histórica da Comuna de Paris de 1871, sentimos a necessidade de introduzir alguns acréscimos na exposição feita em A Guerra civil na França. Os membros da Comuna dividiam-se em uma maioria de blanquistas, que haviam predominado também no Conselho Central da Guarda Nacional, e uma minoria composta por membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, entre os quais prevaleciam os adeptos da escola socialista Proudhon. Naquela época, os blanquistas, em seu conjunto eram socialistas só pôr instinto revolucionário e proletario(…) Eis porque a Comuna deixou de realizar, no terreno econômico, coisas que, do nosso ponto de vista atual, devia ter feito. O mais difícil de compreender é, sem dúvida, o sagrado temor com que aqueles homens se detiveram respeitosamente nos portões do Banco da França. Foi esse, além do mais, um grave erro político. Nas mãos da Comuna, o Banco da França teria valido mais do que dez mil reféns. Teria significado a pressão de toda a burguesia francesa sobre o governo de Versalhes para que negociasse a paz com a Comuna. Mas o mais maravilhoso ainda é quantidade de coisas justas feitas pela Comuna, apesar de composta por proudhonianos e blanquistas. Sem dúvida, cabe aos proudhonianos a principal responsabilidade pelos decretos econômicos da Comuna, tanto no que tinham de positivo como de negativo; aos bíanquistas, cabe a principal responsabilidade pelos atos e as omissões no terreno político. E em ambos os casos quis a ironia da história – como geralmente acontece, quando o poder passa para as mãos dos doutrinários- que tanto uns como os outros fizessem o contrário daquilo que prescrevia a doutrina de sua escola respectiva.[2]

Friderich Engels

 

Engels nasceu no dia 28 de novembro 1820 em Barmen, na província renana do que era então o reino da Prússia. O ano que vem se completarão duzentos anos. Recordemos seu papel na formação do movimento socialista.

Em 1895, ano de sua morte no dia 5 de agosto, escreveu uma Introdução aos escritos de Marx reunidos no livro A luta de classes na França. Nesta Introdução desenvolveu um conjunto de reflexões sobre a estratégia socialista. Essas linhas passaram para a história, e são muitas vezes referidas como um testamento.

Nelas está presente a angústia do revolucionário que vive na contracorrente da situação histórica. Engels retoma o balanço de época aberta com a onda revolucionária de 1848, em particular as lições da derrota da Comuna de Paris. e a discussão sobre a dinâmica em permanência ininterrupta dos processos revolucionários.

A Introdução é um ensaio brilhante de reflexão sobre os tempos históricos, sobre o atraso ou a antecipação das situações revolucionária, sobre a complexa dialética das lutas de classes. Mas a ideia mais poderosa na reelaboração estratégica é a formulação da revolução socialista como a primeira revolução de maioria da história.

Todas as revoluções se reduziram até hoje à derrocada do domínio de uma classe determinada e sua substituição por outra; mas, até agora, todas as classes dominantes eram somente pequenas minorias comparativamente à massa dominada do povo. Esta minoria era sempre o grupo que se capacitara para o domínio e era chamado a ele pelas condições do desenvol­vimento econômico, sendo precisamente por isso, e apenas por isso que, quando da derrocada, a maioria dominada ou tinha uma participação favorável à minoria ou, pelo menos, a aceitava, pacificamente.[3]

Vale a pena destacar outras duas reflexões profundamente agudas sobre a dialética entre épocas e situações:

  1. Sobre o balanço de época, Engels recoloca, com uma educativa honestidade intelectual, os erros de apreciação sobre as possibilidades que ele e Marx tinham alimentado em relação aos processos revolucionários de 1848, situando, também, a Comuna de Paris, como uma situação revolucionária no marco de uma época não revolucionária, e estabelecendo, assim, uma referência metodológica para a reflexão sobre a simultaneidade dos tempos históricos descontínuos, desiguais e até de sentidos simétricos:

A história nos desmentiu, bem como a todos que pensavam de maneira análoga. Ela demonstrou claramente que o estado de desenvolvimento econômico no continente ainda estava muito longe do amadurecimento necessário para a supressão da produção capitalista; demonstrou-o pela revolução econômica que, a partir de 1848, apoderou-se de todo o continente (…)tornando a Alemanha um país industrial de primeira ordem, tudo isso em bases   capitalistas, o que significa que essas bases tinham ainda, em 1848, grande capacidade de expansão.(…).”[4](grifo nosso)

  1. Um balanço da engrenagem da radicalização no interior de um processo revolucionário ininterrupto, ainda inspirada no modelo francês de 1789/93, mas agora com a interrogação, vital, sobre as diferenças que poderiam existir (como uma especulação para o futuro) entre uma dinâmica diferenciada em revoluções de minorias (as burguesas) e revoluções de maioria (as sociaistas):

“Era derrubada uma minoria dominante e outra minoria tomava em suas mãos o timão do Estado e transformava as instituições públicas de acordo com seus interesses(…)Todavia, se abstrairmos o conteúdo concreto de cada caso, a forma comum de todas essas revoluções era serem revoluções de minorias. Mesmo quan­do a maioria prestava sua colaboração o fazia – consciente ou inconscientemente – a serviço de uma minoria; mas esta, seja pôr isso, seja pela atitude passiva e não resistente da maioria, aparentava representar todo o povo.”[5](grifo nosso).

As ideias de Engels ainda estão vivas e são uma inspiração.

 

[1] ENGELS, Friedrich. Introdução à “ As lutas de classe em França”, também conhecido como seu “Testamento político de 1895” In MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega. p.99/101.

[2] ENGELS, Friedrich. “Introdução à A Guerra civil na França” In MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, volume2. p.48.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

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