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BRASIL

O imaginário branco da abolição e a consciência negra: do 13 de maio ao 20 de novembro

Paulo César de Carvalho

“Será que já raiou a liberdade
Ou foi tudo ilusão
Será, oh, será
Que a lei áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão

Hoje dentro da realidade
Onde está a liberdade
Onde está que ninguém viu

Moço
Não se esqueça que o negro também construiu
As riquezas do nosso Brasil

Pergunte ao criador
Quem pintou esta aquarela
Livre do açoite da senzala
Preso na miséria da favela

Sonhei
Sonhei que zumbi dos palmares voltou, ôô
A tristeza do negro acabou
Foi uma nova redenção

Senhor, oh, Senhor!
Eis a luta do bem contra o mal (contra o mal)
Que tanto sangue derramou
Contra o preconceito racial

O negro samba
O negro joga a capoeira
Ele é o rei na verde e rosa da Mangueira”.

(“100 Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão”, Hélio Turco, Jurandir e Alvinho. Samba-enredo da Estação Primeira da Mangueira no carnaval de 1988, centenário da assinatura da Lei Áurea, que não aboliu a escravidão).

1. Duas datas: a loirinha e o negão

Em 13 de maio, a Abolição da Escravatura fez 131 anos. Em 20 de novembro, comemora-se o aniversário de 324 anos da morte de Zumbi. É muito simbólico que o marco do Dia da Consciência Negra seja exatamente este “20 de novembro de 1695” em que o líder do Quilombo dos Palmares foi assassinado, e não aquele “13 de maio de 1888” em que a filha do Imperador não aboliu a exploração e a opressão. A iniciativa política de oficializar a data foi de Oliveira Silveira (1941-2009), um dos fundadores do Grupo Palmares (em Porto Alegre), combativo poeta, professor e pesquisador da cultura afro-brasileira.

Para fazer o projeto sair do papel, a primeira comemoração do Dia da Consciência Negra aconteceu já no ano em que foi proposto, em 20 de novembro de 1971. Desde então – como “comemorar” significa “trazer à memória”, “lembrar junto” – evocar a resistência de Zumbi significa não esquecer que a luta dos negros prossegue no reconhecimento e combate das velhas opressões, sob as máscaras de outras formas de exploração. Nessa perspectiva, “trazer à memória” o dia 20 de novembro implica “lembrar junto” também o dia 13 de maio, atualizando, dialeticamente, a luta contra a escravidão.

Explicando melhor, a efeméride em que se comemora a “libertação dos escravos” marca, na verdade, a entrada tardia dos negros no “novo mundo” capitalista da “escravidão assalariada”. Isso quer dizer que, se a comemoração do Dia da Consciência Negra fosse em 13 de maio, ela representaria a aceitação da mentira de que as aspirações de Palmares teriam se concretizado com a assinatura da Lei Áurea. A celebração cumpriria, pois, a função de legitimar a farsa de que a suposta conquista da efetiva “liberdade”, em 1888, teria colocado um sinal de “igualdade” entre negros e brancos. Por isso, quando o Grupo Palmares foi às ruas há 47 anos, converteu automaticamente o “13 de Maio” em “Dia da Falsa Consciência Negra”.

Lembrando a metáfora marxista da “câmara escura” (com a propriedade do trocadilho), o gesto simbólico da escolha da data da morte de Zumbi deixou bem claro (o trocadilho é revelador) o ponto de vista de que as “relações aparecem de cabeça para baixo” na festa oficial da Abolição da Escravatura. A imagem do dia 13 de maio, dessa forma, passou a representar a memória da escravidão forjada pela “consciência branca”: nessa manobra ideológica, os de pele clara simularam o término da exploração (com o fim da ordem escravocrata) para dissimular a continuidade da lógica de opressão aos de pele escura (como se estes não fossem mais “escravos”, mas trabalhadores, “iguais” a todos os chamados “homens livres”).

Comemorar a Consciência Negra em 20 de novembro, pois, é “lembrar junto” que Zumbi morreu em 1695, mas que a “Abolição” só aconteceria 193 anos depois, naquele longínquo 1888. É “trazer à memória” que o Brasil foi o país ocidental que mais importou escravos, o último do Ocidente a libertá-los e o último das Américas a se tornar República (no ano seguinte). É não aceitar a versão escolar oficialesca de que a “Lei Áurea” foi um gesto de benevolência da Princesa Isabel, que a teria assinado por se compadecer do sofrimento dos escravos, razão pela qual recebeu o epíteto de “Redentora”. Aliás, abrindo parêntese, essa alcunha é bem sintomática, funcionando como uma espécie de síntese da fabricação do mito abolicionista do “13 de Maio”: nessa lógica, a libertação dos escravos teria ocorrido por um ato de vontade individual, não por motivações históricas independentes das supostas idiossincrasias “humanitárias” de Sua Alteza (e da claque abolicionista).

Desautorizando essa versão farsesca dos acontecimentos, Marx e Engels lembram “que não é possível conseguir uma libertação real a não ser no mundo real e com meios reais, que não se pode abolir a escravatura sem a máquina a vapor, nem a servidão sem uma agricultura aperfeiçoada, que de modo algum se pode libertar os homens enquanto estes não estiverem em condições de adquirir comida e bebida, habitação e vestuário na qualidade e na quantidade perfeitas. A ‘libertação’ é um ato histórico, não um ato de pensamento, e é efetuada por relações históricas, pelo nível da indústria, do comércio, da agricultura, do intercâmbio (…), consoante as suas diferentes etapas de desenvolvimento” (Karl Marx e Friedrich Engels, “A Ideologia Alemã”, Expressão Popular, São Paulo, 2009, pp.35-36).

A Lei Áurea, portanto, não deve ser compreendida como reflexo da “consciência individual” da filha de Dom Pedro II, mas como efeito concreto da decadência do modo de produção escravagista, que já estava impedindo o desenvolvimento das forças produtivas. Em outros termos, o trabalho escravo havia se tornado um enorme entrave ao avanço da industrialização do país, o maior obstáculo à urgência de modernização da economia nacional. Nesse contexto, obviamente, a “nova” burguesia sabia que, se a maioria da população não tivesse renda (ou seja, se os escravos não virassem “escravos assalariados”), seria impossível criar um mercado interno, e que, sem ele, o capitalismo industrial emergente jamais teria as condições materiais necessárias para poder se estruturar, se consolidar e se desenvolver.

Posto isso, para desmascarar a farsa do baile cívico imperial do “13 de Maio”, deixando o velho rei nu e com “as barbas de molho”, tirando a maquiagem da dissimulada “Redentora” e mostrando a real “nova” cara de fome dos filhos “libertos” de Zumbi, lembramos esta análise do historiador Caio Prado Jr.: “O escravo corresponde a um capital fixo cujo ciclo tem a duração da vida de um indivíduo; assim sendo, mesmo sem considerar o risco que representa a vida humana, forma um adiantamento a longo prazo do sobretrabalho eventual a ser produzido. O assalariado, pelo contrário, fornece este sobretrabalho sem adiantamento ou risco algum. Nestas condições, o capitalismo é incompatível com a escravidão” (Caio Prado Jr., “História Econômica do Brasil”, Brasiliense, São Paulo, 1965, p.180).

Isso quer dizer, em síntese, que o escravo representava um custo mais alto para o “senhor” do que o assalariado para o patrão: o fazendeiro tinha que gastar elevadas somas, por exemplo, com as despesas de alimentação, roupas e alojamento para os negros cativos. Para agravar o quadro, o opressor ainda corria riscos de “descapitalização” com a fuga ou morte dos escravos, cujo preço havia aumentado muito desde a proibição do tráfico. Esses elementos objetivos não deixam dúvidas de que a Abolição não ocorreu porque a Princesa Isabel estava indignada com a crueldade contra os negros, mas porque as condições históricas determinaram a sua libertação (sem a qual – não é demais repetir – a economia capitalista não teria base para crescer).

Por tais razões é que a imagem mítica da “Redentora” não se sustenta no andor da História: parafraseando a sabedoria popular, o peso dos fatos concretos põe abaixo a farsa, derrubando a frágil versão “branca” da Abolição, como prova real (com a propriedade do trocadilho) de que “a santa do pau oco tem pés de barro”. Lembrando novamente Marx e Engels, como “não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência” (obra citada, p.32), mesmo que a Princesa Isabel não tivesse nascido, ou que, mesmo tendo realmente existido, não fosse dela a assinatura no texto de 1888, ainda assim os escravos teriam sido libertados.

Levando tudo isso em conta, para compreender o real significado da “Abolição da Escravatura”, é preciso trazer à memória o seguinte: como os negros jamais tiveram acesso à educação, à formação especializada, foram incorporados ao mercado de trabalho como mão de obra barata, reservando-se a eles as tarefas mais árduas, as funções mais degradantes da sociedade. Só para ilustrar, não é novidade que era aos negros que cabia a coleta de lixo dos brancos; que era aos negros que cabia a construção das casas dos brancos; que era às negras que cabia a limpeza da sujeira dos brancos; que era às negras que cabia o cuidado dos filhos dos brancos. Nessa dinâmica de relações entre as forças sociais, enfim, é inequívoco que a “liberdade” dos negros jamais poderia corresponder, de fato, à “igualdade” com os brancos.

2. Preto no branco: a opressão sobre o fundo da exploração

Prova inequívoca de que essa “liberdade” sempre foi uma ilusão produzida pelo demagógico discurso democrático-burguês, e a tal “igualdade” jamais deixaria de ser impossível no capitalismo, é que ainda hoje a maioria dos pedreiros e lixeiros é constituída de trabalhadores negros; e a maioria das domésticas e babás, composta de empregadas negras. Para mostrar com números a cruel realidade, lembremos os dados alarmantes da desigualdade racial no país, apresentados pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Conforme a pesquisa de 2017, o resultado da disparidade na renda média do trabalho foi a seguinte: R$ 1.570 para os negros, R$ 2.814 para os brancos. Apesar de os negros representarem 54% da população, a sua participação no grupo dos 10% mais pobres é bem maior: 75%. Considerando a taxa de analfabetismo, a dos negros e pardos é mais do que o dobro do que o índice dos brancos: respectivamente, 9,9% contra 4,2%. Já quanto ao acesso ao ensino superior, a porcentagem dos negros com diploma é de 9,3%, enquanto a dos graduados brancos atinge 22,9%. As cifras mais impressionantes, entretanto, dizem respeito às taxas de homicídios, como evidencia o Atlas da Violência de 2018.

O estudo que serviu de base ao documento foi realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cobrindo o período de uma década. Entre os anos de 2006 a 2016, de acordo com a pesquisa, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%, enquanto a dos brancos caiu 6,8%. Confrontando os dados, o relatório fez a seguinte observação – tragicamente irônica – sobre as profundas desigualdades raciais no Brasil: “É como se, em relação à violência letal, negros e não negros vivessem em países completamente distintos”. Para ratificar esse enorme contraste social com mais números, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, examinando 5.896 boletins de ocorrência de mortes decorrentes de ações policiais entre 2015 e 2016, concluiu que os negros somavam 78% das vítimas.

A propósito, a análise do problema da Segurança Pública e do papel dos órgãos repressivos do Estado burguês é a que deixa mais evidente essa farsa ideológica fabricada pelo discurso da “Abolição da Escravatura”, já que o conceito de “libertação” é diametralmente oposto à ideia de “prisão”. Na “câmara escura” da ideologia do “13 de Maio”, a imagem se forma “de cabeça para baixo” (relembrando a metáfora marxista): na verdade, o que a “Educação Moral e Cívica” jamais contou (sempre ocultou) é que a Princesa Isabel (representação metonímica da velha ordem monárquica que tentava evitar a sua morte certa) libertou os escravos das senzalas e os jogou no desamparo das ruas.

Assim, os negros “livres”, sem instrução, sem roupas, sem moradia, sem alimentação, sem dinheiro, conheceram a violência do aparato policial da República: ou seja, deixaram as senzalas para serem aprisionados nas penitenciárias da “democracia burguesa”. Como evidência da perseguição aos “ex-escravos”, basta lembrar que mais de dois terços dos presos são negros, conforme divulgou o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão do Ministério da Justiça, em 8 de dezembro de 2017. Para ser mais preciso, vale conferir os próprios dados que constam do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen): de acordo com o relatório oficial, em julho de 2016 a população carcerária no país era de 726.712 pessoas; mais da metade, jovens entre 18 e 29 anos; 64% do total, de pele negra.

Não é difícil entender, logo, por que a luta de Zumbi não acabou, e por que é o dia 20 de novembro – e não o 13 de Maio – que representa o “Dia da Consciência Negra”. Diante dessas gritantes desigualdades (raciais, econômicas, sociais, culturais), num quadro histórico em que opressão e exploração se combinam como as duas faces da moeda do capitalismo predatório, o discurso “branco” da liberdade revela-se um grande engodo, uma farsa ideológica insustentável. Aliás, é muito sintomático que, no mesmo 2018 em que a “Abolição da Escravatura” fez 130 anos, um trineto da Princesa Isabel não só tenha sido eleito deputado federal (com 118.457 votos), mas também cogitado para a vice-presidência na chapa do notório racista Jair Messias Bolsonaro.

O nome do herdeiro da “Redentora” é um sinal claro (o trocadilho não é mera coincidência) da onda reacionária que se ergue contra as frágeis instituições da democracia burguesa: Luiz Philippe Maria José Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Orléans e Bragança, vale sublinhar, é o primeiro integrante da família imperial brasileira, desde a Proclamação da República, a se destacar no cenário político nacional, ocupando um cargo relevante. O “príncipe” – filiado ao PSL, ex-partido do capitão fascista saudoso do Brasil de cinquenta anos atrás – não esconde que gostaria mesmo é que o Brasil retrocedesse à época de seu tetravô Dom Pedro II.

Diferentemente do presidente neofascista, que tem saudades dos tempos sombrios do autoritarismo da ditadura civil-militar, o “novo” deputado federal sofre da nostalgia do passado funesto da monarquia luso-brasileira, inaugurada por seu hexavô colonialista Dom João VI. Neste surto anacrônico (um dos fortes sintomas da decadência do capitalismo), o espectro da “Casa Imperial Brasileira” confessou o seu delírio aristocrático à revista Época, poucos dias antes de receber o endosso dos 118.457 votos que levariam o seu discurso retrógrado à Câmara: “Estou dentro do movimento monárquico, pois seria feito um resgate de cidadania importante, de valores, da origem, do respeito à história (…)”.

É muito simbólico que Luiz Philippe de Orleans e Bragança tenha defendido esse disparate no aniversário dos 130 anos da “libertação dos escravos”, sendo exatamente ele (por irônico que pareça) o herdeiro da pena com que a trisavó assinou a Lei Áurea: monarquista devoto, no fundo não só não aceita que a “Redentora” precisasse ter perdido os anéis, em 1888, mas também que a monarquia tivesse que perder até os dedos, em 1889. Aos 324 anos de morte de líder do Quilombo dos Palmares, “respeito à história” é não esquecer jamais que Zumbi teve a cabeça cortada em 1695; “resgate de cidadania” é nunca deixar de lembrar que a cabeça dos negros sempre esteve a prêmio. Em 2019, aberta a infernal temporada de caça neofascista no governo Bolsonazi, os negros são ainda mais perseguidos pelos capitães do mato do aparelho repressivo, encarcerados em massa nas arcaicas neo-senzalas “republicanas” do Estado burguês putrefato.

Neste Dia da Consciência Negra, vale relembrar que nos 322 anos da degola de Zumbi, numa palestra no Clube Hebraica do Rio de Janeiro, em 2017, Bolsoasno deu este coice racista: “Fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gastado com eles”. Representando a caricatura anacrônica de um tosco coronel escravocrata do século XIX, o milico miliciano segue tratando negros como “seres inferiores”, “animais”, “peças” no mercado imperial, fazendo “arminha” com prepotente sorriso KKK na fuça. Antes fossem póstumas as memórias do famigerado “vergalho”, para que a tragédia colonial do pelourinho jamais pudesse se repetir como a farsa “bolsomímica” armada no pasto “evanjegue” pós-neocolonial, entre ruínas de pau-brasil (onde “acima de tudo” é bem mais embaixo).