O imperialismo e a questão do Poder na América Latina

“Luchar, vencer, caerse, levantarse, luchar, vencer, caerse, levantarse. Hasta que se acabe la vida, ese es nuestro destino” –
Álvaro García

A virada do século XX para o século XXI foi tumultuada. Ao lado de uma espécie de superstição infantil coletiva, que esperava essa mudança com medo de que no momento de transição o mundo chegasse ao fim por algum motivo cósmico inexplicável, existia também algumas correntes filosóficas, políticas e econômicas, que apostaram que a história já havia chegado ao fim. Que seguiríamos eternamente o caminho de um neoliberalismo e de uma suposta democracia liberal.

Ambos estavam erradas. O mundo não acabou na virada do século e a história não chegou ao fim. O dito consenso pela democracia liberal e da hegemonia neoliberalismo foi questionado em um dos lados mais frágeis da corrente do “sistema mundo”.

Justamente na América Latina, esse subcontinente que teve durante séculos suas veias expostas, por meio de saques, assassinatos de povos originários, invasões, e golpes de Estados, surgiram importantes movimentos populares de resistências nos fins dos anos 90 e início dos anos 2000.

Esses movimentos de contestação ao neoliberalismo tiveram características particulares em cada país da região. Que alinhados a individualidade da formação sócio-históricas nacionais assumiram formas, rostos e métodos políticos diferentes. Mas que no geral conseguiram ligar as lutas populares, aqui entendido como processos de mobilizações a ações diretas das massas, com as lutas pela questão do Poder Estatal.

A América-Latina se tornava vanguarda mundial na luta contra o neoliberalismo. Em todo o mundo eram deste lado do atlântico que saiam exemplos e inspirações. Era a chamada Onda Rosa, quando inúmeros líderes de esquerda, progressistas, populares e nacionalistas, chegaram ao governo. No período houve também uma espécie de atualização da teoria e método do marxismo. Um marxismo que misturava os velhos bolcheviques e Gramsci, com as particularidades nacionais e heróis de libertação local. Se buscava construir as possibilidades daquilo que ficou conhecido como “socialismo no século XXI”.

O tempo passou e os últimos anos viram estes governos oriundos do início do século XXI entrando em crise ou deixando o governo. Sejam por meio de golpes de Estado, como aquele que tirou Lugo no Paraguai, Dilma no Brasil, Zelaya em Honduras, e agora Evo na Bolívia, ou por meio de derrotas eleitorais como na Argentina e Chile, além dos emblemáticos casos equatoriano e peruano. Muitos afirmavam que a Onda Rosa havia chegado ao fim.

Porém, os recentes movimentos populares e de contestação ao neoliberalismo colocaram uma luz para os ativistas em todo o continente. O vitorioso protesto de massas no Equador, as manifestações que ainda continuam no Chile, e a recente volta do peronismo ao poder na Argentina, além da vitória da esquerda nas eleições locais da Colômbia e a possibilidade da Frente Ampla se manter no governo no Uruguai foram como um farol na escuridão durante o mês de Outubro. O mês passou, chegou novembro, e com ele veio o Golpe na Bolívia. Um golpe violento, com ação militar e fascista. Novamente as veias de nosso continente são escancaradas e derramam sangue em nosso solo.

Ainda é cedo para avaliar se viveremos uma nova Onda Rosa e qual será sua força. Mas é fato que existem novos movimentos sociais, alguns com maior ou menor força surgindo, assim como novas formas de luta e contestação.  O central é entender que hoje as forças contrarrevolucionárias ainda estão em vantagem, mas existe esperança, resistência e força social capaz de mudar isso.

A possibilidade de uma nova Onda Rosa, assim como o surgimento de novas forças sociais, o atual Golpe na Bolívia, e o giro do imperialismo norte-americano para o controle da região, faz com que tenhamos que fazer um balanço firme e sensato dos limites e contradições do que foram estes últimos governos de esquerda no continente, em especial naquilo que trata da estratégia destes para a questão do Poder. Feito isso temos que tratar de traçar nossos novos caminhos, respeitando as particularidades nacionais e pensando em como alcançar e manter o Poder.

Lênin e o Golpe na Bolívia

“Ahora sí, guerra civil” –
grito popular dos que combatem o Golpe na Bolívia

As imagens que chegam da Bolívia ao mesmo tempo que enchem de esperança, causa uma certa angústia. São vídeos alguns com centenas, outros com milhares, de indígenas, camponeses, e trabalhadores de minas, carregando orgulhosamente a bandeira Wiphala e marchando. A maioria traz em suas mãos paus, pedras e uns poucos carregando armas. Aqueles que lutam contra o Golpe conseguiram fechar hoje algumas importantes estradas do país. Ontem mais 60 ônibus foram queimados na capital La Paz, o Congresso teve de ser evacuado pelos golpistas, delegacias foram queimadas, e os policiais expulsos da cidade de El Alto. Barricadas estão levantadas em toda a região.

A marcha segue hoje na capital. Importantes sindicatos estão se posicionando contra o golpe e na defesa do mandato de Evo. O confronto físico parece ser questão de horas para chegar as vias finais. É heróico a resistência das massas lideradas pelos indígenas bolivianos. E como todo ato de heroísmo, esse também tem um pouco de loucura. As forças militares são imensamente superiores, um massacre das forças defensoras da democracia é o mais esperado.

Evo saiu do país. Buscou refúgio para sua vida no México. Pede, até agora, que os confrontos sejam evitados. Busca evitar a batalha e uma preservação das forças sociais. Se essa é a posição mais acertada a história vai julgar. As massas querem resistir e acreditam que é possível vencer. Porém, se já seria difícil o movimento de resistência contra o golpe, sem a liderança de Evo no país ele vai ser ainda mais complicado.

No momento definitivo da luta de classes o que vai definir qual classe, ou grupo desta e representação da mesma terá o Poder será a força militar. Enquanto no Chile vemos Piñera no governo junto com a burguesia massacrando as marchas populares, e se mantendo no Poder justamente por este fato. Na Bolívia veremos o confronto entre Exército e Polícia, contra os grupos de mineiros, camponeses e indígenas, e quem conseguir impor sua força sobre o outro grupo terá o Poder.

O Poder, é, a capacidade que uma classe ou grupo tem de impor sua força sobre o outro. No terreno político a batalha pelo Poder se dá entre a luta dos representantes destas classes, ou seja, entre partidos políticos, sindicatos e outras representações. Para realizar o ato da batalha pelo Poder, são utilizadas diversos artifícios, desde a ideologia, onde se trabalha pelo coesão, até as forças repressivas das armas, ou seja, a coerção.

O Poder não é necessariamente a posse da arma na mão. Mas sem o fuzil na mão não é possível exercer o Poder por completo. Em momentos de crises agudas da luta entre as classes (guerra civil e golpes), quem exerce o fuzil mantém o Poder. Nenhuma ilusão democrática ou pacifista pode ser maior que as experiências históricas.

A Bolívia hoje confirma a clássica frases de Lênin: “o poder nasce da ponta de um fuzil”.

A questão do Poder e a força militar

“Fora do Poder tudo é ilusão”
V. Lênin

É importante apontar que chegar ao governo não necessariamente significa alcançar o Poder. Um partido representante das classes subalternas pode chegar ao governo mas não alcançar o Poder político, e assim não efetuar medidas populares concretas. Chegar ao Poder significa essencialmente modificar as regras com a qual eram jogadas anteriormente, assumindo o papel de condutor da sociedade e da nação, e impondo seu projeto político-econômico sobre a outra classe.

Alcançar o Poder só é possível quando se busca atingir sua origem. Para que se faça isso é preciso tocar naquilo que estrutura e é o alicerce do Poder político da burguesia, ou seja, sua base econômica, que é nada mais nada menos que a propriedade privada. Sem modificar a propriedade privada é impossível que as classes subalternas consigam impor por completo seu projeto e estratégia político-econômica sobre a burguesia.

A grande e contraditória questão que atinge as forças de esquerda radical é que sem alcançar o Poder Político (aparato Estatal) é impossível modificar as bases sócio-econômicas que moldam a dominação burguesa. Desde Lênin, pelo menos, a esquerda anticapitalista e socialista, tem a compreensão que é preciso derrubar o aparato Estatal burguês e construir um novo Estado de tipo Popular. É preciso que as forças populares exerçam o controle e o domínio político, (Aparelho Estatal de novo tipo) para em seguida efetuar e impor o domínio econômico.

Desta noção surgem diversas interpretações, e táticas para alcançar o Poder político e a construção deste Estado de novo tipo. O essencial é que devemos ter a noção é que exercer o Poder político é apenas uma tática para impor o Poder econômico. Sem começar por medidas anticapitalistas de expropriações a burguesia e que se toque a propriedade privada, ter o Poder político é em vão, e cedo ou tarde, ele será retomado por aqueles que ainda mantém o domínio econômico da sociedade. Sem avançar na questão da propriedade privada, não se avança no domínio e imposição do projeto político-econômico sobre a burguesia.

A possibilidade e a necessidade de avançar sobre os limites da propriedade privada foi a grande questão dos limites dos processos da Onda Rosa no nosso continente. Muito dos processos progressistas sequer alcançaram verdadeiramente o Poder Político. Se contentaram em está no governo e por meio deste por medidas e políticas sociais para a melhoria da vida do povo. Por mais que tais medidas sejam importantes e foram essenciais para na época a melhoria da vida de milhões de pessoas em nosso continente, esta aposta estratégica de governar sem ter o Poder acabou mostrando seus limites na prova da história. Não avançaram e agora vem governos de direita e extrema-direita destruindo seus avanços.

Por outro lado, os exemplos deste iniciam do século XXI no nosso continente mostrou que onde se buscou alcançar o Poder Político e não se tocou no Poder Econômico, foi permitido a reorganização das elites e está utilizou a violência contra revolucionária.

O tema da violência contra revolucionária não é menor. Ao se tentar modificar a questão da propriedade, ou ao tocar na mesma, um outro problema surge, que é a questão militar. Obviamente que a burguesia ao ver seu Poder político ameaçado não deixará ele passar para outra classe livremente. Ao longo da história, em todo momento que as elites mesquinhas de nosso continentes tiveram seu projeto político-econômico  minimamente ameaçados utilizaram a força bruta para reverter a situação.

A atual crise do modo de produção capitalista não abre espaços para concessões ou acordos mútuos de governo. As elites do continente se contentam em ser sócias menores do imperialismo do que a aturar novamente alguns governos progressistas e outros de conciliação. Deixam nítido que utilizaram a violência e a força quando necessário para impor seu projeto político-econômico neoliberal.

Buscar construir um projeto de Poder, ao longo de toda a história da humanidade, só foi possível construindo também uma forma de manutenção física deste Poder, ou seja, por meio da força. Ainda mais quando se trata das experiências das classes populares no século XX. Todo processo vitoriosa, ou parcialmente vitoriosa de construção de um Poder Operário ou Popular, só foi possível acompanhado da construção de um Exército de tipo popular. Seja este Exército vindo de rupturas das Forças Armadas tradicionais do Estado burguês, por meio de um trabalho constante de formação e educação, ou  até mesmo surgindo através de ações populares e da própria iniciativa popular. Sem a constituição desse duplo Poder armado que rivalize com as Forças Armadas tradicionais, ou que a substitua, todo projeto de Poder Político é falho.

O Imperialismo, a violência e o exercício do Poder

“A Pátria Grande não é um sonho nosso. É uma necessidade de sobrevivência de nossos países e nossos povos contra o capitalismo e o imperialismo” –
Rafael Correa

Falar sobre possibilidades de expropriação da burguesia, ou até mesmo de possibilidade de governar na América Latina é falar também sobre as ações do imperialismo na região. Este fator não pode ser esquecido ou menosprezado.

O argentino Nahuel Moreno, em Ditadura Revolucionária do Proletariado, afirma que uma das principais tarefas de um Estado Operário, ou seja, da classe trabalhadora tendo alcançado o domínio do Poder Político e Econômico de uma sociedade, é a defesa deste Estado contra o imperialismo. E para efetuar essa defesa é preciso a manutenção do Poder político para aprofundar o poder econômico.

Enfrentar o Imperialismo porém só é possível com a construção de uma força militar necessária. Não custa nada refletir os motivos que o Golpe aconteceu na Bolívia e não na Venezuela, por exemplo. Porque Maduro e a Revolução Bolivariana resistiram em Caracas, enquanto Evo caiu em La Paz? Coincidentemente ou não, a Venezuela foi o país que mais aprofundou medidas anticapitalistas, chegando a expropriar alguns setores da burguesia, construindo experiências de poder popular e inclusive tendo modificado a estrutura do Exército.

Da mesma forma, podemos refletir sobre os motivos que os Estados Unidos ameaçam mensalmente a Coréia do Norte, porém não atacam o país, ao mesmo tempo que este cresce seu poder militar. Ou porque os Estados Unidos e Europa querem que o Irã pare seu programa nuclear enquanto Israel pode ter suas armas nucelares a vontade.

Não se vence o imperialismo por meio de acordos e belas palavras. Ainda mais na América Latina. Por esses lados dos trópicos qualquer projeto de Poder que busque ser construído precisa ser anti-imperialista, e ser anti-imperialista é necessariamente trabalhar para que além da unidade e aliança entre os povos latinos, o imperialismo seja derrubado. E para isso será preciso construir medidas para que o imperialismo, e seus sócios locais, não tomem o Poder.  Exercer o mesmo é a única medida possível para evitar que as elites efetuem novos Golpes de Estado, derrame mais sangue, e faça com que nosso povo chore por novos mártires

Aqueles setores que colocam a democracia como um valor universal, assim como a liberdade e igualdade para todos, terão problemas caso conquistem o Poder para manter o mesmo. É inteligente dá liberdade para a organização de grupos políticos burgueses disputarem a Poder Político uma vez que estes o tenham o perdido? É legítimo usar a força repressora contra a burguesia no momento que esta tenta recuperar seu poder político e econômico? São algumas questões teóricas que devemos nos fazer e buscar responder ao longo das experiências cotidianas das próximas ações.

Este debate sobre a questão de como e porque alcançar o Poder será essencial para a esquerda radical e anti-capitalista latino-americana. Diversas possibilidades estão postas. É preciso aprender com o passado para construirmos nosso futuro.