Nos meses de janeiro e fevereiro de 2019, a Prefeitura de São Luís, através de seus órgãos responsáveis, realizou audiências públicas para revisão da Lei 4.669/06, que dispõe sobre o Plano Diretor, ao todo foram 9 sessões. O Capítulo III, do Art. 40, §4º, I, do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), determina que, para elaborar o plano diretor e fiscalizar sua implantação, os municípios devem realizar “audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade”. O Plano Diretor é o [1]instrumento primacial da política de desenvolvimento e expansão urbana no Brasil, ele deve apresentar um conjunto de propostas para o futuro desenvolvimento dos usos do solo urbano, das redes de infraestrutura e de elementos fundamentais da estrutura urbana, portanto é imprescindível sua importância.
Como já escrevi no início deste ano, o processo de revisão do Plano Diretor de São Luís foi proposto em 2015, por órgãos da Prefeitura, com o intuito de fazer apenas alguns ajustes no texto sobre o Macrozoneamento Ambiental, estratégia que visava a discussão e aprovação imediata da lei de zoneamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, complementar ao Plano Diretor e que estabelece índices e usos urbanísticos, dividindo a cidade em zonas ou áreas. O processo previa 8 audiências, o Ministério Público Estadual e a sociedade civil pediram um número maior e mais divulgação à época, a Prefeitura acatou e estabeleceu 15 audiências, destas, 13 foram realizadas, o processo foi cancelado pelo MP Estadual, que determinou que se discutisse, de maneira mais ampla, o Plano Diretor.
O Plano Diretor de fato foi rediscutido por órgãos e membros da Prefeitura e de outros setores da sociedade em reuniões técnicas no Conselho da Cidade (CONCID). Houve alterações que chamam atenção do ponto de vista quantitativo, como a inclusão de 59 artigos, exclusão de outros 19 e algumas inclusões textuais. Mas no geral, do ponto de vista qualitativo, não há diferenças substanciais em relação à lei vigente.
Neste mês de novembro, após alguns meses da entrega do projeto de lei pelo prefeito Edivaldo Holanda ao Presidente da Câmara dos Vereadores Osmar Filho, ocorreu uma pressão por parte dos movimentos civis organizados para que se discutisse ainda mais a proposta por meio de mais audiências públicas, um preceito legal do legislativo municipal, o que foi acatado pelos vereadores mediante documento com quantitativo de assinaturas por bairros, o que foi feito com os esforços e articulações dos movimentos sociais. Em 23 de outubro último, a Câmara lançou um edital com a definição de 8 audiências públicas a serem realizadas, metade em locais da zona urbana e metade em locais da zona rural.
Diante do que foi falado até aqui, é preciso destacar alguns pontos da primeira semana de audiências deste mês de novembro sob os auspícios da Câmara de Vereadores. O primeiro ponto a ser destacado é a baixa adesão de integrantes no legislativo municipal nas audiências, um contrassenso, o que escancara um total descaso para com a população que tem participado e se manifestado nas sessões, apenas 1/3 de vereadores se fizeram presentes nessas primeiras reuniões públicas. Outro ponto é que o representante da prefeitura e presidente do INCID, José Marcelo do Espírito Santo – um velho e fiel amigo dos empreiteiros da cidade – tem apresentado os mesmos slides do início do ano, de forma apressada e sem muito ânimo, diga-se de passagem. Não há também, por parte dos integrantes da prefeitura, nenhuma resposta aos questionamentos feitos pela população e, muito dificilmente, os vereadores levarão em consideração as angustias e aflições públicas da população da cidade.
É preciso relembrar, ainda, o papel do CONCID, um órgão colegiado criado pela Lei Orgânica e pela Lei 4.611/2006, que possui natureza deliberativa e consultiva, de caráter permanente, que reúne representantes do poder público e da sociedade civil, tem por finalidade propor, discutir e deliberar sobre as diretrizes para a formulação e implementação da política de desenvolvimento urbano e rural, acompanhar e avaliar a sua execução com participação autônoma e organizada de todos os seus integrantes.
O CONCID é o “escudo poderoso” utilizado pelos representantes da prefeitura para se defender dos questionamentos mais polêmicos e delicados da proposta, a exemplo da transformação de grande parte da zona rural em urbana para atender aos interesses do capital imobiliário local e do capital financeiro estrangeiro, que mira os espaços ocupados por comunidades tradicionais como uma grande reserva de valor para seus investimentos bilionários. A resposta a todas as indagações é uma espécie de mantra: “Foi aprovada no CONCID”. Acontece que o CONCID é um órgão que na prática não é a favor da maioria da população da cidade, integrantes do poder público e da iniciativa privada – que são maioria em sua composição – se unem para aprovar as demandas de seus interesses em detrimento dos interesses coletivos, isto pode ser visto tanto no texto da proposta quanto nas atas do CONCID, publicizadas no site da prefeitura.
A força do CONCID permitiu que o texto da proposta de lei trouxesse, além da indecente e criminosa supressão da zona rural, a não definição de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) que constituem um instrumento urbanístico de inclusão social que nunca foi regulamentado na cidade; um novo prazo para a construção do Mapa de Vulnerabilidade Socioambiental, prometido pelo INCID para ficar pronto no início de 2007 e nunca foi feito; uma redelimitação grotesca nas áreas de dunas no litoral norte; a mudança de zona de metade do Sítio Santa Eulália, dentre outras.
É bom lembrar, ainda, que a proposta é repleta de promessas de criação de planos (viário, de acessibilidade, paisagístico, etc.), regulamentação de instrumentos e criação de comissões. Olhando para os Planos Diretores anteriores, se sabe que essa estratégia faz apenas o texto da lei brilhar, já que não há aplicabilidade e efetivação plena destes planos e instrumentos, ou seja, não há garantia alguma que sejam postos em prática.
A palavra “desenvolvimento” na proposta atual de revisão do Plano Diretor aparece 89 vezes. A pergunta que se faz é: que desenvolvimento é esse? Para quem? A cidade vem se expandindo de forma desordenada desde os anos 1970, a pobreza nas áreas periféricas da cidade salta aos olhos e existem problemas na quase totalidade do município, não há saneamento básico, o escoamento sanitário é precário, não há estações de tratamento de esgoto satisfatórias, o transporte público é caótico e caro, as contas de água e energia são onerosas, a acessibilidade é quase inexistente, os espaços públicos de lazer são raros e os assentamentos informais não param de crescer. Mas nas audiências públicas sequer houve participação de outros órgãos municipais para dar uma satisfação às pessoas, se sonega informações essenciais, o grosso da população ludovicense não sabe, por exemplo, que a prefeitura não possui recursos financeiros para investir em infraestrutura de modo a atender uma zona urbana que será ampliada.
Para falar de um período mais recente, o planejamento urbano tem sido uma lástima nas últimas três décadas na cidade, mesmo com toda regulamentação pela legislação. Intelectuais orgânicos se prestam a atender os interesses do empresariado e da indústria da construção civil, não a toa, observa-se por longo período, os mesmos indivíduos “pensando” a cidade de São Luís, resultando no favorecimento explícito aos rentistas da terra urbana e às empresas como ALUMAR e VALE, que dispõem juntas de vastos territórios na cidade para estocar materiais pesados, perigosos e poluentes, mas nada se observa de mudanças estruturais realizadas no município nas últimas décadas, nem mesmo ações que busquem justiça social e espacial ou melhora na qualidade de vida.
Portanto, a proposta do novo Plano Diretor de São Luís, chamado de ‘estratégico’ pelo prefeito não representa as necessidades reais da população, ao contrário, é excludente e visa à privatização de novos espaços para a reprodução ampliada do capital, como ficou claro nas arbitrariedades ocorridas na comunidade do Cajueiro meses atrás, quando forças policiais destruíram casas na comunidade e expulsaram moradores, numa reintegração de posse bastante contestável e duvidosa, um caso que se encaixa bem no conceito de ‘acumulação por espoliação’, desenvolvido por David Harvey na sua obra ‘O Novo Imperialismo”.
O planejamento urbano precisa ser feito com ação, já que não deve ser pensado sem a gestão pública em favor dos mais pobres, isso os planejadores desta cidade não fazem, constroem uma proposta de revisão do Plano Diretor desconectada da cidade real/concreta, analisando fotografias aéreas com defasagem de uma década, sem visitar e conhecer a fundo os problemas urbanos que afetam milhares de moradores. Mapas bem feitos, bonitos e coloridos não são suficientes, é preciso que o poder público ouça os anseios das populações e ajude a melhorar suas condições de vida com ações e não com discursos eleitoreiros, uma construção que precisa ocorrer no cotidiano, que supõe mudança de comportamento, tanto do ente público, quanto dos mais diversos atores que participam da vida de São Luís.
É preciso denunciar e fazer pressão aos desmandos do poder público (Estado e Município) que age em conjunto com os interesses privados, o processo de revisão do Plano Diretor atual, envernizado como algo democrático, na realidade se apresenta como um novo marco de uma lógica neoliberal perversa, já que rompe definitivamente com o que resta dos modos de vida tradicionais dos povos da zona rural, se baseando no discurso, na ideologia e na prática perversa do poder econômico do capital, em que o direito à propriedade privada se coloca acima de tudo, de todos e todas.
[1] Geógrafo, professor Adjunto I da Universidade Federal do Maranhão (UFMA, Campus Pinheiro), integrante do Movimento de Defesa da Ilha (MDI) e doutorando em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
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