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MUNDO

Líbano: “O povo exige a queda do regime”

Joseph Daher*. Tradução: Aldo Cordeiro Sauda

Protestos no dia 23 de outubro, no sétimo dia de protestos

As ruas do Líbano se erguem em cantos de protesto, enquanto o país testemunha seu maior movimento popular em décadas. O alvo: um sistema político e econômico que empobreceu muitos enquanto enriquece alguns. 

Nesta última semana, o Líbano foi sacudido por uma onda de manifestações de massas, a maior em décadas a atingir o país.

As manifestações eclodiram depois de o governo anunciar novos impostos, inclusive em aplicativos de mensagens instantâneas, como Whatsapp. Com medidas de austeridade como pano de fundo, e sob uma crescente crise socioeconômica, trabalhadores e outros despossuídos decidiram dar um basta. Eles tomaram as ruas, denunciando as bases do sistema político e econômico. Na visão deles, todos os principais partidos têm responsabilidade pela miséria em que vive o povo.

Contra a injustiça social e sectarismo religioso

As classes trabalhadoras e populares no Líbano vêm sendo fustigadas há anos pelo declínio nos níveis de vida. Entre 2010 e 2016 a renda das famílias mais pobres estagnou ou caiu, enquanto o desemprego se manteve continuamente alto: apenas um terço da população economicamente ativa tem emprego, e o desemprego entre menores de trinta e cinco anos atinge 37%. Trabalhadores estrangeiros, cerca de um milhão de pessoas, não têm acesso a qualquer proteção social. Segundo um estudo do Instituto Central de Estatística, metade dos trabalhadores e mais de um terço dos fazendeiros vivem abaixo da linha de pobreza. 

E o topo da sociedade? Entre 2005 e 2014, os 10% mais ricos acumularam, em média, 56% da renda nacional. O 1% mais rico, pouco mais de 37 mil pessoas, detém 23% da renda produzida – o equivalente aos 50% mais pobres, número acima de 1.5 milhão de pessoas.

A podridão do sistema político e econômico do Líbano gerou alguns protestos nos últimos anos: no início de 2011, durante a Primavera Árabe; em 2012 e 2014, por causa das condições de trabalho; e durante o verão de 2015, por questões sanitárias. Mas o tamanho e o folego das atuais manifestações, desbanca facilmente as lutas anteriores. Manifestações explodiram não apenas na capital, Beirute, mas por todo o país: Trípoli, Nabatiyeh, Tyr, Baalbeck, Zouk. Domingo, cerca de 1.2 milhões de pessoas foram às ruas de Beirute, com uma população de pouco mais de 2 milhões, em um país cuja população é de 6 milhões de habitantes.  

A composição social deste movimento também se distingue dos protestos anteriores: ele é muito mais baseado nas classes trabalhadoras e populares, do que as manifestações predominantes de classe, que aconteceram entre 2011 e 2015. Como a ativista e acadêmica Rima Majed escreveu, “A mobilização dos últimos dias tem evidenciado o surgimento de uma nova aliança de classes formada entre os desempregados, os subempregados, os trabalhadores e as classes médias contra a oligarquia governante. Isto é inédito.”

As gigantescas manifestações no noroeste, em Trípoli e nas regiões no entorno, reforçam o argumento de Majed. O norte do Líbano representa 20.7% dos habitantes do país, mas 46% dos muito pobres e 38% dos pobres. A saúde pública está abaixo da média, enquanto a taxa de evasão escolar, o desemprego e o índice de analfabetismo feminino estão entre os mais altos do país. Em Trípoli não ocorrem projetos de desenvolvimento em larga escala desde os anos 90.

Mesmo assim, os protestos em Trípoli têm sido descritos como o “carnaval da revolução,” com uma atmosfera festiva e DJs tocando para dezenas de milhares de manifestantes na principal praça da cidade. Ontem, representantes dos sindicatos dos médicos, engenheiros, e advogados publicaram uma declaração conjunta dando apoio aos protestos na cidade.

Uma última característica distinta no movimento é seu caráter ativamente antisectário. Sinais e mensagens de solidariedade entre regiões e através das seitas religiosas têm se multiplicado desde o começo dos protestos – por exemplo, entre os bairros de Bab al-Tabbaneh (majoritariamente alawita) e Jabal Mohsen (majoritariamente sunita) em Trípoli, que nos últimos anos testemunharam conflitos armados; e também entre cidades predominantemente sunitas como Trípoli com outras como Nabathieh e Tyr, no sul do Líbano, de maioria xiita. Os manifestantes não estão apenas denunciando as políticas econômicas neoliberais, mas o regime sectário e pro-empresarial como um todo. Como afirmava uma das principais palavras de ordem do movimento, “Todo mundo é todo mundo”.

Os manifestantes agora estão convocando greves gerais, e alguns setores já estão sendo afetados. Manifestantes bloquearam avenidas para forçar a economia a parar, e algumas escolas, universidades, empresas privadas e bancos foram fechados. 

Mais cedo ontem, o presidente Michel Aoun declarou que estava pronto para o diálogo com os manifestantes para “ajudar a salvar o país do colapso” e sugeriu uma reforma ministerial o quanto antes.  

A resposta da classe dominante 

A representação política no Líbano é organizada segundo linhas religiosas sectárias a partir dos mais altos níveis de Estado. O presidente é necessariamente maronita, o primeiro ministro, sunita, e o presidente da Câmara dos Deputados, xiita. O sistema sectário no Líbano (e o sectarismo religioso em geral) é um dos principais instrumentos usados pelos partidos dominantes para fortalecer seu controle sobre as classes populares, mantendo-os subordinados aos líderes das seitas religiosas.

No passado, as elites governantes conseguiam esmagar movimentos através da repressão ou agitando divisões sectárias. Desta vez, os partidos governantes têm respondido com pequenas cenouras e grandes porretes.

Depois da primeira noite de manifestações, o governo cancelou alguns impostos que havia proposto. Quando os protestos continuaram desabrochando, o primeiro ministro, Saad Hariri, deu a seus rivais no governo um ultimato de 72 horas para apoiarem seu plano prioritário de reformas e anunciou, segunda-feira, seu projeto de orçamento para 2020: nenhum novo imposto, corte simbólico no salário de ministros e deputados, medidas de corte de gastos, como a fusão ou eliminação de autarquias, e a privatização da empresa estatal de energia.

Estas medidas, apoiada por todos os principais partidos, não melhorarão a vida das pessoas comuns, como afirma Hariri. Elas são na maior parte a realização das exigências do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, assim como do acordo da Conferência por Desenvolvimento e Reforma através de Empreendimentos (CEDRE), que o Líbano assinou em abril de 2018 em Paris. Em troca aos quase 11 bilhões em empréstimos e ajuda, o governo concordou em realizar parcerias publico-privadas, reduzir o nível da dívida, e aplicar medidas de austeridade. 

Além destas reformas, os partidos que governam têm lançado uma serie de ataques verbais (acusando setores do movimento de serem “infiltrados” ou representarem uma “quinta coluna” de interesses estrangeiros) e físicos (usando dura repressão contra os manifestantes). A Anistia Internacional criticou as forças de segurança do país por seus ataques violentos a manifestantes pacíficos em Beirute: atirando enormes quantidades de gás lacrimogênio na multidão, perseguição armada de manifestantes e espancamentos. Na cidade sulina de Nabathieh, manifestantes têm sido atacados por funcionários municipais e militantes ligados à Amal e Hezbollah, dois partidos Xiitas. 

Ao final, centenas de manifestantes foram feridos e seis morreram, desde o início dos protestos esta última semana.

Expectativas e desafios 

Em meio ao ascenso, o movimento de protestos no Líbano enfrenta desafios organizacionais consideráveis se pretende conquistar reformas progressivas. A principal é a falta de instituições populares que possam canalizar demandas, organizar manifestantes de diferentes seitas religiosas e locais geográficos, e ganhar os elementos mais conservadores, que já estão chamando por um governo militar ou de juízes tecnocratas.   

A fraqueza das instituições da classe trabalhadora é um problema de longa data. Partidos baseados no sectarismo religioso tentaram ativamente enfraquecer o movimento dos trabalhadores desde os anos 1990, criando sindicatos e federações paralelas em diversos setores para ganhar força na Confederação Geral dos Trabalhadores Libaneses (CGTL). Como resultado, a CGTL tem sido incapaz de mobilizar os trabalhadores a despeito da intensificação de políticas neoliberais. Eles estão notavelmente ausentes no atual ciclo de protestos. 

O Comitê de Coordenação Sindical (CCS), principal ator dos protestos trabalhistas entre 2011 e 2014, foi igualmente paralisado. Nas eleições da CCS em janeiro de 2015, os partidos sectários se uniram contra o combativo dirigente sindical Hanna Gharib, que apenas conseguiu apoio dos independentes e do Partido Comunista Libanês. Desde as eleições, o CCS teve sua influência reduzida.

É preciso um movimento sindical democrático e independente, que seja autônomo dos partidos políticos baseados em seitas religiosas e que incorpore os trabalhadores estrangeiros. Estruturas alternativas de representação e organização são totalmente centrais para questionar a dominação dos partidos sectários e burgueses. 

Um sinal promissor: feministas organizadas e estudantes se juntaram aos protestos e têm intervindo de forma coordenada pelo país. As mulheres em particular têm participado em grande número, com as feministas exigindo direitos das mulheres e igualdade dentro do movimento. 

Contra a elite dominante 

As demandas do movimento por justiça social e redistribuição econômica, não podem ser separados de sua oposição ao sistema sectário, que protege os privilégios dos ricos e poderosos. Os partidos sectários governantes e as diferentes frações da burguesia têm explorado os esquemas de privatização e controle de ministérios para construir e fortalecer redes de clientelismo, nepotismo, e corrupção, enquanto a maioria da população do Líbano, tanto a estrangeira como a nacional, sofre na pobreza e indignidade. 

Ao tomar as ruas em massa, os manifestantes libaneses empurraram o país para o panteão dos levantes populares da região que começaram ao final de 2010 e continuam até hoje, como nos mostram os eventos no SudãoArgélia e Iraque. Sua demanda é tão direta quanto é ambiciosa: “O povo exige a queda do regime”.

 

* Joseph Daher é um ativista e acadêmico suíço-sírio. Ele é autor de Hezbollah: A economia política do Partido de Deus e Síria depois do levante, a economia política da resiliência de estado.

Artigo publicado originalmente em Jacobin (https://jacobinmag.com/2019/10/lebanon-protest-movement-inequality-austerity)

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