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BRASIL

Servidores Públicos Federais: trabalhar mais, pagar mais e receber menos

Marcelo Sitcovsky, dretor da ADUFPB

Marcelo Sitcovsky, dretor da ADUFPB

A “reforma” da Previdência lamentavelmente foi aprovada em segundo turno no Senado. O texto será promulgado imediatamente pois, em se tratando de Proposta de Emenda Constitucional – PEC, não depende de sanção presidencial. Terá regras imediatas, algumas que passarão a valer a partir de janeiro de 2020 e outras, transitórias. Importa para efeito das observações que farei neste breve texto duas informações fundamentais. A primeira delas refere-se ao aumento da alíquota. A segunda trata dos cálculos para aposentadoria, que têm dois desdobramentos imediatos: valor das aposentadorias e tempo para aposentar.

Desde que foi anunciada a PEC 06/2019, denunciamos em todas as instâncias da mídia, fazendo coro com tantas outras vozes, que a “reforma” representaria, para o conjunto dos servidores públicos, confisco salarial. Os mais descrentes optaram por continuar alheios aos possíveis efeitos das propostas de Paulo Guedes e Bolsonaro, e até mesmo assumiram o discurso falacioso – atualmente desmascarado por um estudo elaborado por pesquisadores da UNICAMP que revelou a manipulação de dados feita pela equipe do Ministério da Economia – de que era preciso fazer um esforço nacional, pois a Previdência estava quebrada.

Outros, entre nós, se fingiram de “mortos”, fazendo seus cálculos individuais e apostando que sairiam ilesos. Bastava fazer de conta que a “reforma” não os atingiria. E ainda há aqueles que adotaram uma posição de resignação: não enxergaram possibilidades de vitória na dura peleja da resistência. Por fim, não posso deixar de ressaltar que vários de nós, embora insuficientes, assumiram parte das lutas e da resistência a esse ataque aos direitos previdenciários.

O confisco de salário é algo inconteste e, a despeito da postura adotada frente à proposta de “reforma”, o resultado será o mesmo: a partir de janeiro de 2020, o desconto para a Previdência será maior e o dinheiro depositado na conta bancária, aquele com o qual contamos para pagar nossas despesas mensais, estará menor. Um exercício simples para já ir conhecendo os impactos da PEC 06/2019 pode ser realizado de forma clara ao acessar a ferramenta disponível no site do governo. Basta buscar por “calculadora de alíquotas da Previdência”. Sugiro que façam o teste. O resultado será uma ingrata revelação de que seu desconto será maior com as novas regras.

A título de exemplo, aplicamos como parâmetro o valor da remuneração de um docente federal da UFPB, Associado I, com título de doutor, para exemplificar o efeito prático das novas regras. O resultado da consulta pode ser visto na figura abaixo, reproduzida do site oficial: um confisco, para o caso específico, de pouco mais de R$ 548,00. Concretamente, o servidor federal, que até o final do ano contribui com 11% do salário bruto, passará a ter uma alíquota de contribuição maior. No caso reproduzido na tela, saltará para uma alíquota real de 14,31%.

https://www.servicos.gov.br/calculadora
Figure 1 – Cálculo Alíquota com as novas regras da Previdência

A outra questão que inclusive faz parte do título deste pequeno texto, que já não está tão pequeno, refere-se aos valores das aposentadorias e ao tempo para poder se aposentar. Sendo direto e claro, as novas regras aprovadas farão com que, para adquirir o direito à aposentadoria, será necessário ter mais tempo de contribuição e atingir uma idade mínima, o que irá representar mudanças de planos para muitos que almejavam um dia se aposentar e dedicar-se a outras coisas, inclusive à preguiça. Pode causar espanto a alguns falar em direito à preguiça, mas imediatamente nos vem à mente a resposta de Paul Lafargue dirigida ao sogro, publicada sob o título de O direito à preguiça.

Aqueles que não reunirem todos os requisitos, pois haverá casos de adoecimento e morte (questões inevitáveis, especialmente esta última), nunca terão o direito à aposentadoria: irão trabalhar até a morte. Os dados sobre as características do mercado de trabalho no Brasil sinalizam, entre outras coisas, a alta rotatividade dos assalariados, o que, por ora, pode ser uma realidade distante dos servidores públicos, embora já se anuncie uma “reforma” administrativa. Os acidentes e o adoecimento do trabalho têm crescido bastante e as estatísticas são alarmantes.

Retomando a questão central, além de postergar o direito à aposentadoria, para aqueles que preencherem os duríssimos requisitos, a “reforma” fará com os valores pagos fiquem menores por duas razões:

  1. O aumento das alíquotas também vai atingir os já aposentados e os futuros aposentados;
  2. Os cálculos para aposentadorias e pensões serão outros. Em geral, o “grosso” dos servidores públicos está entre aqueles que terão as regras do jogo alteradas enquanto a bola está rolando. Todos que ingressaram no serviço público entre janeiro de 2004 e dezembro de 2012 sabiam que iriam se aposentar com 80% das maiores remunerações, descartando 20% referentes às menores contribuições. Agora, com as novas regras, trabalhadores(as) terão de partida 60% da média de todas as contribuições, isso jogará para baixo o valor das aposentadorias. Ao atingir 40 anos de contribuição, fará jus a 100% da média, o que continuará em desvantagem quando comparado com a regra anterior.

Em síntese, retomando a ideia que utilizamos para nomear esse texto, os servidores públicos federais trabalharão mais, pagarão mais e receberão menos. Com a aprovação da PEC 06, o governo federal pavimentou o terreno para que estados e municípios realizem suas “reformas”, que terão efeitos igualmente destrutivos.

Derrotas são amargas, mas são ainda mais difíceis quando acompanhadas da sensação de que não lutamos com toda a nossa energia e disposição. Não se trata de refletir sobre nossas ações individuais, de questionar o peso e a energia depositada por cada um de nós. Mas, acima de tudo, de analisar as lutas do ponto de vista coletivo, fundamentalmente do papel desempenhado pelas organizações do trabalho, pois o capital não economizou esforços para que esse duro ataque fosse perpetrado contra os direitos. E aviso aos navegantes: a sanha da classe dominante não vai parar por aí. Paulo Guedes e seus associados já anunciaram mais ataques aos direitos, sob o invólucro de “reformas”.

Os anúncios das propostas que irão fazer parte da “reforma” administrativa sinalizam que conquistas importantes, como estabilidade, jornada de trabalho, dedicação exclusiva, carreira e remunerações, fazem parte do pacote que será apresentado. As justificativas para promover as profundas mudanças no serviço público estão recheadas de mitos e dados deliberadamente omitidos ou mesmo falsos.

É sempre importante numa peleja sabermos contra quem estamos lutando. E é igualmente relevante conhecer o campo de batalha, assim como as armas e o contingente de lutadores de que dispomos. Uma questão nos persegue: por que perdemos?

A “reforma” da Previdência apresentada por Bolsonaro e Paulo Guedes, aprovada no Congresso Nacional, é ainda mais dura do que o mais pessimista dos analistas poderia prever.

Certamente existem entre as organizações de esquerda diferentes avaliações acerca das razões da derrota. No entanto, arrisco afirmar duas questões que julgo consensuais. A primeira: as centrais sindicais sofreram um duro golpe com a “reforma” trabalhista, o que tem repercutido dramaticamente nas finanças das entidades e das lutas. A segunda questão refere-se à sequência de derrotas acumuladas, o que tem desdobramentos concretos no movimento sindical.

Mas cabe ainda indicar duas outras questões, sendo essas mais polêmicas, pois aqui registram-se divergências. Referimo-nos à capitulação de setores do movimento sindical e também ao peso dos governos de conciliação, que ainda hoje repercute entre nós, criando algum grau de dificuldade ao processo de retomada das lutas sociais.

Não conseguimos barrar esse brutal ataque!

Duas questões vêm à cabeça neste momento:

  1. Não conseguimos aglutinar as forças necessárias para construir mobilizações que reunissem centenas de milhares em defesa dos direitos previdenciários. Sequer foi possível aglutinar dezenas de milhares em torno de algo simples: essa “reforma” irá fazer com que trabalhemos mais e receberemos menos;
  2. As derrotas são difíceis, mas é necessário encontrar forças para reorganizar e retomar as lutas, pois a agenda ultraneoliberal não irá parar aqui. A “reforma” administrativa e a agenda de privatizações, que estavam a passos lentos, serão agora aceleradas.

Não conseguimos atrair para as lutas trabalhadores e trabalhadoras em geral. Cabe-nos refletir, entre outras coisas, sobre uma das características do mercado de trabalho brasileiro. Referimo-nos ao enorme contingente de trabalhadores na informalidade ou nas modernas formas de precarização do trabalho, além dos milhares de desempregados – certamente isso teve seu peso. Isso exige de nós a capacidade de refletir também sobre as organizações do trabalho.

Não podemos sucumbir ao desânimo e à desesperança. As exigências para retomar as lutas aumentaram muito e parece-nos correto afirmar que a construção de uma frente única em defesa das liberdades democráticas e dos direitos pode nos ajudar nesta difícil tarefa.