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CULTURA

Seu Zé: “o poeta tem que ter compromisso com o seu lugar de fala”

Fábio Torres, de Suzano (SP)
Matheus do Val

Seu zé

“Sou filho da terra vermelha,
Grande quilombo em existência,
Sou forte, sou leão do norte,
Sou Nordeste, sou resistência.”
(poeta Seu Zé)

 

“Minha poesia
É imprópria
Para menores
De alma.”
(poeta Seu Zé)

Nascido no sertão do Ceará, o poeta Seu Zé tem ganhado espaço dentro da literatura periférica após o lançamento de seu primeiro livro de poesia Falo. José Vandei Silva de Oliveira, nome do poeta Seu Zé, é morador da cidade de Suzano, professor de filosofia e atualmente é coordenador pedagógico da escola estadual Fernão Dias. 

O poeta também é militante. Há cerca de um ano, ingressou na corrente interna do PSOL Resistência e atualmente integra a direção do PSOL na cidade de Suzano (SP). 

Seu Zé aceitou dar uma entrevista ao Esquerda Online para falar um pouco sobre sua vida, suas poesias, política e sobre a premiação que foi indicado. Essa entrevista poderia ter sido feita tranquilamente em uma mesa de bar ou em algum espaço mais informal, no entanto, a vida, a agenda e as lutas impuseram uma dinâmica em que a entrevista acabou sendo feita via whatsapp.

 

Como a poesia surgiu em sua vida?

Tenho a impressão que a poesia sempre esteve presente em minha vida, pelo menos a forma poética de ver a vida. Sempre fui um menino sonhador, gostava de inventar minhas próprias brincadeiras, meu pai foi repentista e a cultura do repente esteve presente na minha infância no Ceará, depois de crescido me apaixonei pela literatura de cordel, deve ser uma espécie de memória afetiva.

No tempo de escola tive acesso aos poetas clássicos como Drummond, Patativa do Assaré, Mário de Andrade, Cecília Meireles e Manuel Bandeira, isso foi mais do que suficiente para me despertar. Na faculdade ampliei minha leitura com Dostoiévski, Paulo Leminski, Manuel de Barros entre tantos outros.

 Efetivamente a poesia entrou em minha vida em meados de 2007, quando comecei a frequentar saraus e depois a organizar o projeto Tenda Literária em 2008. Nesse tempo comecei a ler mais poesia e ter acesso a poetas contemporâneos de literatura periférica -Sérgio Vaz, Ferréz, Sacolinha – a partir daí, comecei a escrever minhas poesias e recitar para saraus. Foi nessa mistura de nordeste e periferia paulista, de cordel e poesia marginal que me transformei no poeta que sou.

 

O que a periferia representa para você?

Nasci no sertão nordestino, aos 13 anos me mudei para a zona leste de São Paulo nos anos 90. Já adulto fui morar na cidade de Suzano (grande São Paulo). Nasci e cresci em lugares periféricos, de alguma forma marginalizados, e foi nesse espaço que entendi o que é coletividade, comunhão, superação e dessas vivências tirei minha poesia.

Nasci José Vandei Silva de Oliveira, me afirmei como Zé
e me reconheci
como um Silva

A periferia nunca foi limite pra mim, sempre circulei na cidade como um todo. Sempre procurei utilizar dessas minhas andanças para potencializar o lugar onde eu estava inserido. Desde cedo participei de movimentos sociais comunitários e na adolescência, com um grupo de amigos, organizei uma biblioteca comunitária no bairro onde morava. Ainda na juventude participei de um projeto de sarau e oficinas literárias em praças públicas e já adulto escolhi a escola pública como espaço de atuação.

Nasci José Vandei Silva de Oliveira, me afirmei como Zé e me reconheci como um Silva, uma história comum de muitos outros Zés nas periferias desse Brasil.

 

Você é um poeta que busca sempre incentivar a leitura crítica dos educandos e como educador batalha para que os jovens despertem o interesse pela literatura. Pode comentar como esses dois trabalhos se complementam em sua vida?

Meu primeiro livro foi um dicionário, um presente de uma professora na infância, meu passatempo preferido era ler esse dicionário, descobrir palavras. Aprendi a ler o mundo na infância, nas brincadeiras solitárias no sertão do Ceará e, mais tarde, descobri Paulo Freire na faculdade.

A literatura me salvou, me tornou um ser humano melhor, a leitura foi o caminho. Tenho orgulho de ser o primeiro da família a ter uma formação superior. Desde cedo percebi que a leitura me tornava diferente e isso tento passar em minhas aulas.

Como educador procuro incentivar a leitura crítica do mundo, essa leitura crítica do mundo passa pela leitura da palavra. Procuro usar de minha experiência, com exemplos das minhas vivências, para incentivar a leitura dos meus educandos. 

Como poeta, escrevo sobre a realidade concreta poetizada e sobre as subjetividades, numa linguagem direta. Procuro aproximar minha poesia dos meus educandos, meus leitores, isso  desperta o interesse deles para lerem e escreverem poesia.

 

Há algum tempo os textos de escritores das periferias estão surgindo aos distintos públicos pelo país. Como você enxerga o papel social da literatura produzida nas periferias brasileiras?

A literatura produzida na periferia ou por sujeitos periféricos tem um papel social importante na formação de novos leitores e novos escritores.

Essa literatura tem um poder de transformação social, seja de quem escreve ou de quem consome, pois é uma literatura que aproxima, cria pontes, denuncia situações de opressão e forma consciência.

 

Há algumas formas de se adjetivar a literatura dos moradores periféricos. Parece que a mais comum é Literatura Marginal. No entanto, entre os escritores isso não é um consenso. Como você explica isso?

O problema de adjetivar a literatura é criar rótulos, é colocar em caixa, pois literatura é literatura.

A literatura produzida nos meados dos anos 70 por artistas e intelectuais no Rio de Janeiro ficou conhecida como Marginal por ser literatura de protesto, de combate a censura e ao pensamento  retrógrado da época, já a literatura produzida por sujeitos periféricos no começo dos anos 90, principalmente em São Paulo, ganhou força como literatura periférica por retratar a realidade desses sujeitos moradores das grandes periferias, mas também é uma literatura de combate e de protesto. Mas sendo marginal ou periférica é poesia, é literatura para além de adjetivações.

 

Ferréz disse a Caros Amigos em 2007 que o termo Marginal para ele estava ligado a forma que a polícia o descrevia.   Qual sua opinião sobre isso?

Muitas vezes ser marginal, dependendo de quem olha, é ser contraventor, subversivo e por muitas vezes bandido, mas ser marginal é ser sujeito periférico e está relacionado ao seu lugar de fala, que vai além das questões geográficas, mas passa por questões sociais e de classe.

Ser um poeta marginal é estar fora do grande mercado editorial, muitas vezes fora do ambiente acadêmico, mas acima de tudo é retratar seu lugar de fala, ser poeta marginal é ser subversivo, usar a literatura como arma de transformação. 

 

Em seu livro Falo surgem as temáticas LGBTQIs, cultura nordestina, educação e da política em geral. Para você, o artista deve ter compromisso com questões para além da arte?Quais são seus compromissos em sua poesia?

Penso que o poeta tem que ter compromisso com o seu lugar de fala e com o seu leitor, dessa forma, a poesia vai para além da arte. 

Se eu sou um sujeito periférico, nordestino, educador, gay e pobre, tenho compromisso de falar de minhas questões, meus sentimentos que vem primeiramente desses lugares que vivencio, mas não se limita a isso, pois a poesia não é limitada em sua potência criadora.

No meu primeiro livro de poesia abordo essas questões porque são minhas experiências, minha vida. Apesar de ser o ponto de partida para o que escrevo, não me limito a escrever somente sobre isso. Tenho que ter compromisso em ser fiel ao que eu sou enquanto sujeito, enquanto classe, compromisso de afetar as pessoas e levar a reflexão também do que são e do que representam.

 

Além de poeta e educador, você é um militante de causas sociais e é socialista. No atual cenário político em que vivemos, sua poesia pode contribuir de alguma maneira com as lutas sociais?

Sou educador por escolha, professor por profissão, poeta por teimosia e militante por convicção. Atuo desde muito cedo em movimentos sociais, comecei no movimento de juventude, dentro da Pastoral da Juventude, que me orgulho muito, depois comecei a atuar no movimento de cultura de periferia, organizando saraus em praças públicas. Atualmente, além das questões culturais atuo também na educação, já que sou professor.

Na verdade para mim tudo é uma militância só, acredito na construção de um outro mundo possível, como nos ensinou Paulo Freire. Acredito que essa construção é revolucionária e a arma que eu uso nessa luta é a poesia.

Através da minha poesia posso levar os leitores a fazerem reflexões sobre questões necessárias no atual cenário político, reflexões que levam a criação de consciência de classe, afirmação enquanto homens e mulheres livres em suas escolhas, seja de seus corpos, seus comportamentos e posicionamentos políticos, creio que a poesia é um ato político. Isso vai desde a organização de um sarau na escola, em praça pública ou em uma postagem numa rede social. Costumo dizer que faço poesia para incomodar, se fosse para acomodar eu faria cadeira.

 

Nos últimos anos, principalmente após o golpe, temos visto o surgimento de jovens em diversos saraus, coletivos e cursinhos que se propõem a resistir aos ataques de Bolsonaro. Em sua opinião, o que a esquerda precisa fazer para conseguir dialogar com a periferia? 

Acredito que a resistência das massas a um governo como esse do Bolsonaro, de ataque aos direitos básicos e as nossas liberdades, é uma resistência que vem dos movimentos de vanguarda, das juventudes, de cultura, das mulheres, da população LGBTQI+ através dos Saraus, Slams, cursinhos populares, coletivos culturais, principalmente nas periferias. O despertar de minha militância veio desse movimento, sou professor de cursinho popular e organizador de um sarau em minha cidade.

É dentro destes movimentos que brota a força de resistir, nós enquanto movimento de esquerda temos que estar atentos e estabelecer diálogo direto com esses movimentos da periferia, temos que fazer parte, fomentar e potencializar esses espaços. 

A periferia é por natureza revolucionária, sempre foi quilombo e espaço de resistência. Estas formas de organização formam o caminho da população periférica para superar o contexto de violência e pobreza.

 

Seus textos atualmente são bastante divulgados nas redes sociais, em especial pelo Instagram. Em sua opinião as mídias digitais contribuem com os artistas das periferias?

Participo desde 2008 do movimento de Saraus, seja organizando ou me apresentando, e esse sempre foi um espaço onde divulguei minhas poesias, depois que lancei meu livro em 2016 comecei a participar de mais atividades literárias, em escolas, bibliotecas e feiras, o livro ajudou a expandir minha poesia.

Em 2018 resolvi postar minhas poesias em uma rede social, comecei pelo Instagram, entendo que é uma rede que tem um grande alcance e potencialidade de divulgação, mas tenho muito cuidado de não fazer algo descartável, por isso insisto em fazer poesia com consistência, seja no conceito ou em sua forma. As redes sociais abriram novas perspectivas para a minha poesia, me colocaram em contato com muita gente que também produz poesia marginal pelo Brasil a fora. Participo de um grupo de conversa e produção poética com poetas de Alagoas, Ceará, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul, Brasília. As redes sociais geraram parcerias e intercâmbios e isso é importante para a divulgação de quem faz poesia independente, no entanto, continuo fazendo e acreditando nos saraus, nas feiras literárias e nos livros. 

 

Pode falar um pouco de seus próximos trabalhos? 

Pelo uso do meu instagram e pelo caminho que a minha poesia seguiu, comecei a organizar um novo projeto de um livro, com uma linguagem mais direta e com poesias curtas, diferente do meu primeiro. Um livro com poesias inéditas e algumas já postadas no instagram, quero registrar essas poesias com o ISBN, a internet ainda é uma terra sem lei, e temos que garantir e respaldar a autenticidade de nosso trabalho.

Nesse novo livro pretendo poetizar um tratado sobre a as liberdades, usar a poesia como livramento, libertação. 

 

Seu livro foi indicado ao 1º Prêmio Suburbano Convicto 2019 e através do voto popular passou para a segunda fase, ficando entre os 10 finalistas numa lista de 30 participantes. Fale um pouco da importância desse prêmio para as produções literárias dos artistas das periferias e como se sentiu ao ser indicado? 

Primeiramente já me sinto vencedor em ter um livro de poesia participando de um prêmio que aponta como destaque livros da literatura marginal lançados a partir dos anos 90.

Esse é um prêmio incentivador da produção de cultura periférica, seja ela, música, literatura ou mesmo de coletivos. É um prêmio inovador no sentido de trazer ao grande público e premiar artistas que produzem arte de qualidade, mas não estão inseridos em nenhum mercado cultural, produzem arte marginal e merecem reconhecimento de seus trabalhos.

Pessoalmente, me sinto lisonjeado em ver meu livro participando desta lista de destaques, mas, ainda é muito difícil ser poeta marginal, desenvolver qualquer trabalho independente e à margem do grande mercado editorial. Existe pouco espaço para a apresentação, divulgação e distribuição desse tipo de trabalho, por isso iniciativas que colocam nossas produções em destaque merecem apoio, é o caso do Prêmio Suburbano Convicto.