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MUNDO

Contra a invasão turca no norte da Síria

O povo curdo precisa de solidariedade internacional 

Gabriel Santos, de Maceió (AL)

O Exército turco lançou uma nova ofensiva sobre a Síria, invadindo o país pelo nordeste, na região conhecida como Curdistão Ocidental (Rojava). A região era governada pela FDS (Forças Democráticas da Síria), que tem como braço armado a YPG (Unidades de Proteção Popular). A ação turca ocorreu após o aval do presidente norte-americano Donald Trump, por meio de uma ligação ao presidente da Turquia, Racep Erdogan. 

Os curdos eram o principal aliado dos Estados Unidos na Guerra Síria e no combate ao Estado Islâmico, onde as forças curdas perderam 10 mil vidas no confronto contra o grupo fundamentalista.

O governo de Erdogan considera os grupos curdos como grupos terroristas, por conta de sua relação com o PKK (Partido dos Trabalhadores Curdos), um partido que atua na área curda ocupada pela Turquia. Com a invasão de Rojava, Erdogan busca aumentar seu poder regional e por meio da força gerar uma estabilidade com os grupos curdos que atuam dentro da fronteira turca, assim como reforçar para seus seguidores o caráter nacionalista. 

Erdogan vem de uma derrota eleitoral, perda de popularidade e crise econômica. Aposta na ação militar para manter sua base

O governo Erdogan vem de uma derrota eleitoral na capital do país, de perda de popularidade e da falta de respostas para a crise econômica que cresce na Turquia. Assim, o presidente turco aposta na ação militar para manter sua base nacionalista e impedir que o exemplo da FDS incentive movimentos no país.

Nas últimas semanas o exército turco concentrou tropas e equipamentos ao longo de sua fronteira sul. A invasão turca começou há uma semana, e utiliza cerca de 14 mil homens como força de frente. Este número elevado de soldados, além de contar com membros do exército turco, tem também grupos opositores ao FDS e ao regime de Al-Assad, como o Exército Livre da Síria (ELS). 

A operação turca recebeu do governo do país o nome de Primavera da Paz e causou mais de 400 mortes, somente nas primeiras 48 hras de bombardeio nas cidades fronteiriças, entre elas Ras al Ain, Tel Abyad e Qamishli. Os ataques aéreos dos aviões-caça foram apoiados por meio de bombardeios terrestres. Esta primeira fase do ataque turco busca atingir locais estratégicos do YPG enfraquecendo uma eventual resistência curda, antes da invasão terrestre, que ocorre nesse momento por meio de centenas de tanques.

O ataque turco na região com complacência dos Estados Unidos vem gerando uma nova crise na região. Diversos terroristas do ISIS estão aproveitando o confronto para conseguir fugir da região, buscando se reorganizar e ingressar em outros países como Iraque, a própria Turquia e na Europa. Os curdos mantém cerca de 12 mil terroristas do ISIS em suas prisões. Os bombardeios turcos levam também a uma nova onda de refugiados. Milhares de pessoas saem de casa com medo do conflito e fogem sem perspectiva para o interior do país ou para Hasaka, locais em que existem tropas regulares do Exército Sírio. Já são mais de 300 mil pessoas que abandonaram a região por conta do conflito. Os bombardeios geram também o fim da distribuição da ajuda humanitária, que era oferecida pela ONU e Unicef para 1,6 milhões de pessoas na região.

Trump ao retirar as tropas norte-americanas da Turquia se afastou de um antigo aliado, os curdos, e busca se aproximar de outro, a Turquia. Assim, tenta garantir uma promessa eleitoral antiga, a de retirar os Estados Unidos de conflitos armados. Mas a ação de Trump pode ser um tiro na água e acabar fortalecendo seus adversários, seja o governo de Assad, ou a Rússia e até mesmo o Estado Islâmico, como dito acima.

A Turquia cada vez mais tem se distanciado do imperialismo norte-americano e se alinhado econômica e politicamente com a Rússia e o Irã. Recentemente, a Turquia e a Rússia assinaram um importante tratado militar que coloca em dúvida a permanência de Istambul na OTAN. Trump sabe disso e a retirada das tropas norte-americanas foi um presente a Erdogan na tentativa de melhora das relações entre ambos os países. Trump sabe que a Turquia tem o segundo exército mais numeroso da OTAN, e que o país é importante aliado militar no qual os Estados Unidos mantêm uma base área e cinquenta bombas atômicas. Com a ação Trump também busca se retirar do conflito, e investir força militar e dinheiro em objetivos considerados mais importantes, como a China, por exemplo.

A ação de Trump, de retirar as tropas, foi criticada tanto por Republicanos quanto por Democratas. Lindsey Graham, um dos republicanos mais próximos à Trump, se uniu aos democratas para aprovar um projeto de lei que sancionasse as Forças Armadas turcas e o presidente Erdogan, e ainda escreveu no Twitter: “Abandonar os curdos será uma mancha na honra dos EUA”. Até mesmo os falcões do governo, como Marco Rubio e Adam Kinzinger, foram críticos a Trump. Para estes, a retirada das tropas americanas da Síria é uma admissão de derrota frente a Rússia e ao Irã, e uma humilhação. E eles estão certos.

Mas a questão é que após anos de intervenção no Oriente Médio, de gastar bilhões de dólares em guerras que foram perdidas uma após a outra, o governo norte-americano não tem mais o que fazer a não ser aceitar a realidade, e esta aponta que o imperialismo norte-americano encontra mais dificuldades para bancar “o xerife do mundo”. Apesar de sua grandeza militar, a sua condição econômica e política não deixa que intervenha como deseja, mas sim como é possível. 

Trump, após anunciar a retirada das tropas, escreveu: “Os curdos lutaram conosco, mas gastamos enorme quantia de dinheiro e equipamento para isso. Eles lutam contra a Turquia há décadas. Eu segurei essa luta por quase três anos, mas é hora de deixar essas guerras ridículas sem fim, muitas delas tribais, e trazer nossos soldados de volta para casa”.

Este tuíte de Trump, além de reforçar o que escrevemos acima, mostra também uma nova localização do mesmo, em que os EUA diminuem o papel que teve nas últimas décadas, de ser um cão de guarda do mundo, em especial no Oriente Médio, para se voltar para questões mais próximas geograficamente, como a América Latina.

Com as críticas, Trump endureceu sua linha com a Turquia, sem, no entanto fazer uma defesa dos curdos, ou uma depreciação da ação militar turca. O presidente norte-americano buscou ameaçar Erdogan e escreveu: “Se a Turquia fizer qualquer coisa que eu, em minha grande e inigualável sabedoria, considere estar fora dos limites, eu destruirei a economia da Turquia (já fiz isso antes!)”.

Trump, demonstrou por meio do Twitter o seu papel de megalomaníaco, ao se achar um iluminado quase messiânico. Esse giro de Trump é fruto das pressões internas de seu partido e de seu governo para tentar impor limites às ações turcas. Ao longo da semana, foram anunciadas sanções econômicas para integrantes do governo turco.

Erdogan aumenta perseguição aos curdos

Na terça-feira, 15, uma semana após a retirada das tropas norte-americanas da região, a Casa Branca anunciou que o vice-presidente norte-americano, Mike Pence, viajará para a Turquia para se reunir com o presidente turco e buscar uma solução para o conflito. No mesmo dia, o Reino Unido cancelou a venda de armas para  a Turquia, com a preocupação de que a ofensiva militar gere a fuga de membros do ISIS. Na região do curdistão turco, o regime de Erdogan prendeu 11 militantes de partidos turcos, inclusive prefeitos, sem nenhuma explicação sobre este ato. Somente nesta última semana foram 200 pessoas presas, por criticarem a ação contra os curdos, em especial militantes do PC turco e do HDP, um partido curdo e da esquerda do país.

A invasão militar realizada pela Turquia gera novas movimentações e alianças no conflito sírio. A principal delas é a aliança entre os curdos e o governo de Assad. Os contatos entre ambos se intensificaram nos últimos meses, e após a ação turca, uma aliança entre YPG, Rússia e Assad se formou para defender o Curdistão Ocidental. 

A aliança entre YGP e Assad contra os turcos já ocorreu antes na cidade citada acima. Em Afrin, durante fevereiro de 2018, o governo turco lançou uma ofensiva com bombardeios contra os postos do YGP na região.

A relação entre o regime sírio e o YPG é bastante complexa e se forma através de uma rede, às vezes contraditória de alianças e rivalidades, que mudam a depender da ação militar. No início do confronto o YPG foi armado por Damasco para conter o avanço de fundamentalistas rebeldes. A cidade de Afron, por exemplo, durante o curso da guerra foi cedida aos grupos curdos sem a necessidade de confronto militar.

Republicanos e democratas criticam acordo de Trump com Erdogan

Nos Estados Unidos, as críticas a ação de Trump seguiram, tanto por democratas, quanto por republicanos. A democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Deputados, disse que as negociações entre Estados Unidos e Turquia eram uma “farsa”, além de “mandarem uma mensagem perigosa aos aliados e adversários de que nossa palavra não é confiável”. E falou ainda que “Erdogan não deu nada a Trump, nenhuma garantia, e Trump deu tudo a ele”.

No Senado, o republicano Lindsey Graham e o democrata Chris Van, autores do projeto de lei de sanção ao governo turco mantiveram sua posição. Afirmaram ainda que tem maioria na casa para aprovar a medida que coloca fim a parceria militar entre Turquia e Estados Unidos.

Cessar fogo não é respeitado pela Turquia

Na quinta-feira, dia 17, Estados Unidos e Turquia anunciaram uma suspensão de cinco dias da invasão turca no nordeste da Síria. Nas 120 horas que viriam após a reunião entre Mike Pence e Erdogan não haveria ação militar na fronteira. Um cessar fogo veio com o acordo do governo americano de retirar as sanções econômicas aplicadas a Ancara.

Os representantes curdos confirmaram o trato. Mazloum Kobani, comandante da FDS, falou para a agência curda Rudaw que “fariam todo o esforço possível para o acordo ser bem sucedido”. Do lado turco, Erdogan anunciou que o YPG teria 5 dias para abandonar a região fronteiriça. 

O regime de Assad, por meio de um conselheiro, declarou que o acordo era “vago”, e que entre o regime sírio e a FDS “foram dados passos importantes, mas que vários pontos não poderiam ser resolvidos e tratados de uma só vez”.

Apesar do acordo de cessar fogo, rapidamente ele foi rompido, tanto Ancara quanto Kobani trocam acusações. Do lado turco, a denúncia é que as forças curdas fizeram 14 ataques, do dia do cessar fogo até a manhã de sábado.

O Observatório Sírio dos Direitos Humanos fala que o exército turco e os mercenários que se alinharam a este, realizaram bombardeios e disparos de artilharia, que deixaram 14 civis e seis soldados do YPG mortos e mais de 30 feridos pós o cessar fogo.

Diante disso a esquerda internacionalista tem como primeiro dever repudiar a invasão militar feita pela Turquia, assim como reconhecer que o regime de Erdogan é cada vez mais bonapartista e aumenta seu caráter ultranacionalista. Os sindicatos e organizações internacionais devem incentivar e buscar realizar boicotes ao envio de armas a Turquia, como foi realizado contra os sauditas recentemente, até que as tropas turcas sejam retiradas da Síria, assim como os demais países envolvidos no conflito façam o mesmo.

Neste conflito devemos tomar um lado, e estamos com a resistência curda, e apoiamos sua luta pela autodeterminação. É preciso um apelo internacional pelo fim da invasão turca e pela retomada das negociações, nas quais os avanços conquistados em Rojava sejam mantidos, como os direitos culturais e nacionais dos curdos.