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MUNDO

Notas sobre a crise institucional peruana

Carlos Hernandez, de Lima (Peru)
Reprodução

As últimas semanas têm sido consideradas as mais importantes do século XXI no Peru. Em poucas horas, na segunda-feira, 30/09, o presidente Martin Vizcarra dissolveu o Congresso Nacional, e este declarou a vacância do cargo presidencial por incapacidade moral. Em ato contínuo, nomearam presidente a Mercedes Ároz, terceira vice-presidente da República.

De todos os lados, houve acusações de golpes. Ainda é uma discussão em aberto o cenário político e jurídico peruano. Contudo, essa crise institucional não se inicia agora, e devemos voltar ao golpe (esse que ninguém questiona), de 05 de abril de 1992, quando Alberto Fujimori fechou o Congresso e deu início a uma das mais duras e sanguinárias ditaduras latino americanas. A lista de crimes dos fujimoristas vai desde corrupção, passando pela tortura da própria ex-esposa do ditador, e a esterilização forçada de 300 mil mulheres, principalmente camponesas.

Fujimori renunciou em 2000 por causa das acusações de corrupção, entregando o poder sem um processo de mobilização contra a ditadura, o que não permitiu a sociedade peruana fazer um balanço do período autoritário. Assim, o fujimorismo ainda possui apoio em setores importantes da sociedade – mesmo com Alberto Fujimori preso – principalmente nas menores e mais afastadas cidades, de maioria camponesa. A principal herdeira desse “legado” é a filha do ex-ditador, Keiko Fujimori, peça chave em toda essa crise.

Uma das consequências do golpe de Fujimori foi a realização de uma Constituinte, altamente controlada por ele, concentrando muito poder na figura do presidente, inclusive o de dissolver constitucionalmente o Congresso Nacional. Hoje, essa crise se dá muito porque foi utilizado esse mecanismo (o fechamento do Congresso) contra o “fujimorismo”. 

Operação Lava-jato

A crise atual se inicia quando a Operação Lava-jato brasileira transborda para o país vizinho, devido às relações escusas entre poderosos peruanos com a mega construtora brasileira Odebrecht.  A parte mais trágica disso é o suicídio do ex-presidente Alan Garcia, quando a polícia ia até sua casa para prendê-lo. Mas Keiko Fujimori, filha do ditador, e candidata presidencial derrotada, também é presa em decorrência da Lava-jato. Junto com ela, diversos outros parlamentares, principalmente, fujimoristas estão sendo investigados. E Jorge Barata, ex-diretor da Odebrecht no Peru, deve depor ao Ministério Público delatando (de forma premiada) diversos parlamentares.

A atual crise institucional

Keiko e PPK – Pedro Paulo Kuczynski – foram candidatos à Presidência em 2011, mas os dois foram derrotados por Ollanta Humala (hoje também preso). Para voltar a concorrer em 2016, PPK, formou um partido com a mesma sigla de seu nome, Peruanos por el Kambio (PpK). Este partido se autodenomina de centro direita e liberal. Novamente, concorrem Keiko e PPK, e agora os dois chegam ao segundo turno. Keiko Fujimori é derrotada novamente por uma margem muito pequena de votos.

Apesar de ser derrotado na eleição presidencial, o Fuerza Popular (FP), partido dos Fujimoris, obtém esmagadora maioria no parlamento. A oposição elege 78 congressistas dos 130. Com três anos de mandato, a FP vai perdendo cadeiras e hoje tem 63 deputados. Cabe salientar que a APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana), antiga organização de esquerda, vem se aproximando do fujimorismos, desde que Alan Garcia passou a dirigir o partido. Isto fez com que os jornalistas utilizassem o termo “fujiaprismo”, para explicar o crescente apoio da PARA aos Fujimoris, cujos deputados compõe a oposição ao PPK e a Vizcarra.

Esses 63 deputados são suficientes para fazer o que vem fazendo nos últimos três anos, isto é, obstruir as votações importantes para o poder executivo. Isto já levou a renuncia de PPK em março de 2018 e agora “obrigou” Vizcarra a suspender o congresso e convocar eleições parlamentares para 26 de janeiro de 2020. 

O comportamento da FP não era só de obstrução – muito parecido com o que Cunha fez em 2015 com as “pautas bombas” para derrubar Dilma – mas também convocando e censurando os ministros (estes são aprovados pelo congresso, essa é forma de derruba-los).

A eleição dos membros do Tribunal Constitucional (TC) também foi um campo de batalha para os fujimoristas e o governo Vizcarra. A escolha é feita pelo Congresso Nacional, e cada magistrado tem um mandato de cinco anos. Contudo, o mandato continua até que o congresso escolha outro membro. Com a política de obstrução do fujimorismo no parlamento, hoje é necessário escolher 6 novos magistrados de 7 cargos. Ou seja, é possível mudar completamente a composição ideológica do TC.

 Assim, a FP viu a possibilidade de eleger membros favoráveis às causas fujimoristas, entre elas a libertação de Keiko Fujimori, e barrar o avanço das condenações por corrupção. Segundo os analistas, a FP havia dado o xeque mate em Vizcarra até domingo 29/9, e o “acordo nacional, com o supremo, com tudo” estava praticamente feito. 

Contudo, na histórica segunda-feira, 30/09, Vizcarra pede a votação de um voto de confiança do parlamento em seu governo, e aí começa toda a polêmica, e provavelmente o maior erro dos fujimoristas. Antes cabe uma explicação.

No Peru, existe um “primeiro-ministro”, mas este é nomeado pelo próprio presidente e seria como um chefe de gabinete ou ministro-chefe da casa civil. No caso, era Vicente Zaballos, e ele é responsável de levar o voto de confiança ao congresso. Ao fazer isso, o governo “pergunta” ao congresso se é possível continuar governando. Tendo uma resposta negativa, o executivo pode suspender o Congresso e convocar novas eleições parlamentares. Foi o que Vizcarra fez. Seria como uma forma do presidente forçar a recomposição do parlamento mais favorável a ele. Contudo, esse dispositivo presente na Constituição peruana não prevê  a eleição presidencial. Ou seja, muita confiança na figura do presidente. 

Acontece que ao levar essa votação ao Congresso, ela ganha um caráter de urgência máxima. Contudo, os deputados já se preparavam para fazer a eleição de um membro do TC, Gonzalo Ortiz de Zavallos Olaechea (primo do presidente do congresso suspenso, Pedro Olaechea), e assim seguiram, aprovando-o. Em nenhum momento, os deputados votaram a confiança no executivo. Segundo a interpretação dos apoiadores de Vizcarra, ao ignorarem o pedido do governo e fazer outra votação, derrotando o governo, os deputados estariam dizendo pela segunda vez que não confiam no governo e, por isso, é impossível que este governe. Aqueles que acham que Vizcarra deu um golpe alegam que não houve tal votação e ela poderia ter acontecido até no dia seguinte, segundo a constituição. 

Segundo os analistas, este é o erro dos fujimoristas. Eles sabiam que deveriam votar a confiança no governo – como fizeram anteriormente com outro voto de confiança de Vizcarra, caso contrário este poderia suspender o Congresso, como fez. 

O que importa é que Vizcarra suspendeu o Congresso e convocou novas eleições às 17h do dia 30/09. Algumas horas depois, o Congresso declara a vacância da Presidência da República por incapacidade moral de Vizcarra – este também é um ato previsto na Constituição, contudo, o Congresso já estava suspenso.

Em ato continuo, os congressistas nomearam Mercedes Ároz, terceira vice-presidente da República, como chefe de Estado. O Peru elege dois vice-presidentes, assim Ároz e Vizcarra faziam parte da mesma chapa presidencial de PPK. Ainda que eles tenham rompido relações alguns anos atrás, e ela votasse no parlamento junto com a oposição desde o afastamento de PPK – foi candidata à vice e ao parlamento simultaneamente. Além de 3° vice-presidente de PPK, Ároz também foi Ministra de Comércio Exterior e Turismo do segundo governo Alan Garcia, e responsabilizada pelo Massacre de Baguá, quando mais de 10 pessoas de povos originários amazônicos foram assassinadas pela polícia.

Ároz articulou a renúncia conjunta dos três para convocação de eleições gerais, mas Vizcarra não aceitou e sucedeu PPK. Finalmente, Mercedes Ároz chegou à Presidência – dizem que faria de tudo para isso – mas em 24 horas ela renuncia ao cargo de terceira vice-presidente, e consequentemente a suposta presidência que ocupava. Os jornais locais apuraram que Ároz fez isso por medo das consequências legais do ato, afinal poderia ser condenada por usurpação do poder e desvio de funcionalidade.

Não se pode deixar de destacar que no dia seguinte (01/10), as Forças Armadas peruanas e a Polícia Nacional declarou apoio e resguardo ao poder de Vizcarra. Inclusive com uma demonstração de força desmedida, fechando todo o entorno do Congresso Nacional e da Casa Pizarro (palácio presidencial peruano), para impedir protestos, invasões e golpes de Estado.

A última esperança legal da oposição é a discussão no Tribunal Constitucional (TC) sobre a constitucionalidade da suspensão do congresso. Acontece que o presidente do TC, Ernesto Blume, está afastado por licença saúde, o que impede a realização de sessões do tribunal e mesmo que houvesse demoraria mais de quatro meses para se obter uma resposta, o que seria após as eleições de janeiro de 2020.

Quais são os lados em jogo?

A situação peruana, principalmente dos mais pobres, se complica, pois não há grandes diferenças entre os posicionamentos econômicos e políticos de todos esses atores – todos navegam da centro-direita a extrema-direita. Prova disto é que no novo gabinete lançado essa semana, Vizcarra nomeia a economista liberal de 34 anos, Maria Antonieta Alva Luperdi, como ministra da Economia e Finanças, e tem consenso de todos os principais atores políticos peruanos.

Já no campo dos trabalhadores, pelo que conseguimos colher, existe um apoio maior ao atual presidente Vizcarra. Mas esse apoio se manifesta, principalmente, pelo rechaço ao Congresso, de fato considerado o “lar dos corruptos”. Ou seja, não é tanto apoio a Vizcarra, mas repulsa ao adversário.

Por outro lado, o grande problema dessa situação é imobilidade da população. Não houve manifestações significativas de rua, em apoio a nenhum dos lados. Caso a classe trabalhadora não entre em campo, a solução dessa crise pode levar a derrotas importantes. Por exemplo, ainda que a eleição do Congresso já esteja marcada, não há grandes garantias de que isso aconteça. Não está descartado que o fujimorismo atue para tomar o poder à força. Afinal, experiência e mecanismos para dar golpes, eles possuem.

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