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Rumo a uma “oitava” Constituição e a um novo Estado

Aderson Bussinger

Advogado, morador de Niterói (RJ), anistiado político, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ e diretor da Afat (Associação Fluminense dos Advogados Trabalhistas).

O Brasil rememora neste mês 31 anos da Constituição, promulgada no dia 5 de outubro de 1988, durante o governo Sarney, e em seguida ao encerramento do regime militar. Importante destacar que das sete constituições que tivemos, três  foram totalmente impostas: por D. Pedro I, por Getúlio Vargas e pelo regime militar em 1967, que impôs ao Congresso, sem liberdade e amordaçado pela ditadura, a sua aprovação formal. Esta eu particularmente sequer considero uma constituição, sendo as demais aprovadas por assembleias constituintes.

De todos os textos constitucionais acima,  são os de 1934, 1946 e a atual “constituição cidadã” de 1988 aqueles que trazem maiores avanços do ponto de vista dos direitos sociais e das liberdades democráticas, sendo inegavelmente a atual Constituição Federal a melhor Carta que o país já experimentou, pelo menos do ponto de vista formal e jurídico, pois a prática de seus  preceitos consiste em um outro capítulo de inaplicação e também alterações por meio de Emendas Constitucionais, que acabaram adulterando grande parte dos que conquistamos naquele agitado outubro de 88.  

Em breve resumo, temos, por exemplo, na Constituição de 1934 a garantia do voto das mulheres, a criação da Justiça do Trabalho, previsão de direitos trabalhistas importantes como a jornada de 8 horas, repouso remunerado e férias remuneradas, assim como a garantia do mandado de segurança e da ação popular. Em 1946, após a ditadura do Estado Novo iniciada em 1937, temos assegurada a  pluralidade partidária, que permitiu ao antigo PCB legalizar-se e eleger diversos parlamentares, assim como assegurado o direito de greve e de liberdade sindical, além do condicionamento de que a propriedade deveria ser usada para o bem-estar social, o que permitiu muitas desapropriação por interesse social, para o inconformismo dos grandes proprietários rurais, que, em 1964 apoiaram o golpe exatamente com receio do avanço da luta pela reforma agrária, que utilizava  como argumento exatamente este importante preceito constitucional. 

Finalmente, chegando em 1988,  do ponto de vista social e democrático, fruto de intensa  mobilização sindical e popular levada a efeito por sindicatos e movimentos sociais de todo o país, com forte liderança da CUT e do PT, tivemos todos aqueles preceitos de 1934 e 1946 muito ampliados e, inclusive, detalhados nos artigos de 5 a 8, em dezenas de incisos, sendo que logo no Primeiro Artigo da Constituição podemos ler que  consiste em fundamento da República a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e o pluralismo político, para, adiante, no Artigo 3 fixar ainda como objetivo maior construir uma sociedade livre, justa e solidária, que erradique a pobreza, a marginalização e as desigualdades sociais, promovendo o bem de todos; E, nesta seqüência, o artigo 4 inclui como um dos  princípios da República, do Estado brasileiro, portanto, os direitos humanos. Uma típica constituição social-democrata, em um país cuja a maioria absoluta da elite, de raízes escravocratas, nunca foi adepta a tais postulados, preferindo o dito popular: “ para inglês ver”.

 
Hoje, após o golpe judicial-parlamentar de 2016 e já sob o governo reacionário e  neofascista de Bolsonaro, vivemos não somente o inverso do esforço para legalizar direitos como fizemos na Constituição de 1988, mas fundamentalmente, sem medo de errar, a tentativa deliberada de mudar para pior a Constituição de 1988, como já aconteceu em relação à reforma trabalhista (que atinge princípios constitucionais) e agora acontece com a reforma previdenciária, isto sem contar o que já se fez antes em relação ao fim do monopólio do petróleo e dos Portos, durante o governo FHC. Mas, a rigor, não se trata na atualidade somente de uma alteração “para pior”, mas uma tentativa de desmontar o próprio Estado brasileiro, naquilo que ele tem ainda de progressista e relativamente favorável aos trabalhadores e maioria do povo, como o SUS, a Justiça do Trabalho de 1934, o INSS, o sistema de proteção ambiental do IBAMA, os órgãos de fiscalização de saúde e segurança no trabalho, e até mesmo a necessária legislação de trânsito está sendo desmontada. Regride-se, portanto, a um  modelo de Estado que antecede a 1934 em matéria de direitos sociais, mas preserva e radicaliza o velho e centenário sistema estatal repressor e punitivista, que no início do século XX bradava que a questão social é uma questão de polícia. Isto permanece e se aperfeiçoa!

Está bastante claro que está em curso no país, portanto, um movimento  político-institucional-militar, capitaneado por Bolsonaro e quadros de extrema-direita localizados em todos os órgãos estratégicos do Estado, a começar pela Educação, no sentido de transformar, por cima, através de alterações constitucionais, Medidas Provisórias, leis e decretos, todo o arcabouço do débil Estado democrático brasileiro, para em seu lugar, através das mudanças em pauta, impor um Estado ainda mais  repressor, do ponto de vista da população pobre, bem como, no que diz respeito á educação, cultura e costumes, além do notório corte de verbas para universidades, teatro e cinema, tenta impor uma agenda de censura, redução do alcance do ensino de disciplinas como história, geografia e sociologia, enfim, um quadro de retrocesso educacional nunca antes visto, somente comparando-se à ditadura de 64. 

Pois bem, não há dúvida que se a Constituição de 1988 já foi um empecilho para os governos Collor, FHC e também para o PT que fez uma reforma da Previdência (que penalizou injustamente os servidores públicos), atualmente esta mesma Constituição, sob o governo de extrema-direita, é um obstáculo ainda maior, no que diz respeito às garantias democráticas que ainda mantém, sobretudo o direito de livre organização sindical e o pluralismo político, sendo necessário que cada vez mais setores sociais se  conscientizem disto, na perspectiva de se pôr fim a esta enxurrada de medidas antidemocráticas, desde exemplos como o projeto “Escola sem partido”, censura, Escolas militares, assim como o atual pacote anti-crime que legaliza as execuções feitas por agentes do Estado, todas estas iniciativas preparam não somente uma oitava constituição no Brasil, a par de, antes disto, impor na prática um novo Estado, mais autoritário e de viés militarista, sob as bênçãos das grandes igrejas evangélicas e, – não poderia ficar de fora – do velho imperialismo norte-americano do qual Bolsonaro fez-se porta-voz na Presidência.