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A “caixa-preta” da Lava-jato

Aderson Bussinger

Advogado, morador de Niterói (RJ), anistiado político, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ e diretor da Afat (Associação Fluminense dos Advogados Trabalhistas).

O Poder Judiciário possui sua estrutura regular, com seus juízes, servidores, instâncias, enfim, um intrincado padrão de funcionamento e presença político-judicial na sociedade, enquanto um dos poderes também políticos do Estado. A Lava-jato, que é sem dúvida a grande novidade do judiciário e da vida política brasileira, faz parte de uma outra categoria de órgãos, pelo que foge ao padrão do judiciário convencional e atua, na prática, como uma especialíssima “agencia judicial” de inquéritos, sentenças, prisões e propaganda, excepcionalmente montada no âmbito do judiciário federal, Ministério Público Federal e Polícia Federal, na forma de  um aparato político-judicial integrado por magistrados, órgãos judiciais de todas as instancias (ou “alas” destas), policiais federais, com sede em Curitiba, que  reinterpretando a Constituição Federal, códigos processuais e regimentos de tribunais, bem como dotada de substancial apoio material para agir, investiga, prende e julga segundo um  roteiro convenientemente político.

Agindo como uma espécie atípica de partido político na informalidade, dirigente e ativo, propagandeia e difunde  um determinado e pensado programa para o Brasil, que se resume nas bandeiras do combate á corrupção e  do punitivismo judicial, assim como tendo um líder e candidato principal, na pessoa de seu ex-chefe judicial e hoje    ministro: o político Sergio Moro. Possui, portanto, programa, aparato material-institucional e candidato. E assim vem agindo há mais de 10 anos, em cada inquérito, processo judicial, audiência, recursos e, como não poderia faltar, muita comunicação dirigida ao povo. Os excessos foram e são tantos, que o STF já se sente pressionado a começar a rever decisões, como que fazendo uma “mea culpa” do quanto apoiou e sustentou o informal “partido da lava-jato”.

Ocorre que, como as grandes aeronaves, a Lava-jato também possui uma “caixa-preta”, guardadora dos registros de todos seus voos, tanto os convencionais como outros também, e, atualmente, a vontade e interesse de abri-la vem cada vez mais ganhando apoiadores (inclusive no interior do próprio Judiciário). Jornais, revistas, sites, além evidentemente de suas vítimas diretas, que vão desde setores empresariais vinculados à corrupção (ou então tornados “bodes expiatórios” da sanha punitiva), como principalmente o Partido dos Trabalhadores e o ex-presidente Lula, que como sabem são os maiores alvos políticos desta.

Em verdade, esta “caixa-preta” está bastante aberta nos dias atuais, através das revelações do trabalho jornalístico do site The Intercept. De seus áudios e transcrições de mensagens, emergem contratos de palestras, organização de uma fundação com verba proveniente de multas de seus processos contra a Petrobras, vazamento obsessivo de informações para a imprensa, manipulação de testemunhas, depoimentos de delatores,  preparação de um novo candidato ao Senado, desrespeito ao luto do ex-presidente Lula, planejamento de um impeachment de ministro, enfim, muita lama.

Mas o que possui ainda mais a “caixa-preta” da lava-jato, além de todos estas noticias que estão vindo  á tona e abalando o seu mito de isenção?

Faz-se importante, para além do que é revelado pelo intercept, entender que o fenômeno da lava-jato é ainda mais profundo e consiste em um ensaio, ou protótipo de “Estado de exceção”, (ainda que não esteja apoiado diretamente nos quartéis), mas que, ao desrespeitar direitos democráticos e constitucionais como o amplo direito de defesa, contraditório, quebrar ilegalmente sigilos, selecionar politicamente quem prender, forçar delações, agir sob critérios políticos ao priorizar réus em investigações e sentenças, imiscuir-se na luta política antes, durante e depois do último processo eleitoral para Presidência da República.

Agindo deste modo, a Lava-jato está testando um tipo de autocracia, sob o comando de juízes e procuradores de determinada concepção política, que advogam para o Brasil um modelo que, no plano econômico endossa o neoliberalismo, com toda sua política de redução de direitos sociais e, no plano das liberdades civis, aderem ao projeto de governo autoritário, daí se explicar que não fazem objeção á agenda econômica do atual ministro da Economia, Paulo Guedes, como também não se opõem aos arroubos anti-democráticos do presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro. 

Indo mais além, temos na Lava-jato um instrumento institucional de classe, ante a crise dos modelos institucionais convencionais, através do qual  uma geração de promotores, juizes e delegados, – salvo honrosas e sabidas exceções -, ainda que não sejam exatamente expoentes das classes dominantes, posto que de classe média, se arvoram na defesa militante, através dos instrumentos judiciais convencionais e não-convencionais, de um projeto político e elitista para o Brasil, perseguindo o PT, impedindo que Lula seja candidato, e, com isto, tentando criminalizar toda a esquerda, o sindicalismo, enfim, quem luta pelos direitos sociais e faz oposição neste pais.

Em verdade, são o espelho do binômio autoritarismo de toga e neoliberalismo econômico que vem pautando  o Estado brasileiro.

Evidentemente, não estou dizendo que a luta contra a corrupção não necessária, e nem que os governos do PT não tenham se envolvido na secular corrupção do Estado brasileiro, mas outra coisa muito diferente é utilizar o discurso anti-corrupção para perseguir um partido, criminalizar suas lideranças e, concomitantemente, viabilizar um golpe judicial-parlamentar, a fim de colocar os adversários no poder e restringir direitos fundamentais. 

Na história brasileira já tivemos diversos exemplos de setores da classe média que ingressaram mais ativamente na luta política, para o bem e para o mal. Por exemplo, o movimento tenentista da década de 1920, de extração social das camadas médias, em defesa de reformas sociais e democracia, resultou na lendária (e invicta) Coluna Prestes entre 1925 e 1927, cujo líder militar e político, se tornou a maior referencia comunista no Brasil, sendo inclusive eleito senador.

Em outra vertente, na década de 1970, muitos jovens da classe média ingressaram heroicamente na guerrilha contra o regime militar, indo em direção contrária ao apoio das camadas média à ditadura, e acabaram em grande parte massacrados, mas, embora derrotados, deram sua contribuição para o fim do regime militar na década de 80;

A Lava-jato é um outro fenômeno de engajamento político, não de tenentes democratas, mas de um setor de classe média, de “togados”, “concursados”, que, do alto de um setor da burocracia estatal, que passando ao largo das bandeiras de justiça social e fim das desigualdades, tomou para si o discurso moralista “anti-corrupção” e impulsionou um programa excludente socialmente e, em termos de Estado de Direito, uma série de medidas de retrocesso ás conquistas democráticas e sociais da Constituição de 1988. D

Deu no que deu… e muito desta “caixa-preta” da Lava-jato ainda está por ser revelado, sendo que, por ora, já sabemos que não é por acaso que o ex-juiz federal Sergio Moro seja agora ministro do governo federal de extrema-direita no poder.