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BRASIL

Lava-Jato e as lições jurídico-políticas da esquerda

Deborah Cavalcante* e Bruno Figueredo*

Na última semana, foi concluído o julgamento no STF que declarou Sérgio Moro como suspeito e incompetente na condução do caso de Lula. A operação lava jato foi uma experiência jurídica hiper midiatizada e com repercussão política profunda.

Em 2016 um muro dividiu o gramado da esplanada dos ministérios. O país estava dividido nas ruas entre “vermelhos” e “amarelos” com camisas da Nike. Haviam insatisfações com o PT e o governo Dilma que transbordaram em atos massivos em 2013 e derivaram na alta temperatura que marcou tanto lutas sociais, quanto às eleições polarizadas de 2014. Mas em 2015, surgiu uma novidade: atos de massa dirigidos por uma “nova direita” que moveu amplos setores da classe média em favor do impeachment. Nesses atos, Sérgio Moro era tratado como um verdadeiro herói nacional.

Nessa cena, uma parte da esquerda flertou com a lava jato ou, como mínimo, ficou em cima do muro. Quase “amarelou”. Isso ajudou a ampliar a grande confusão no conjunto da classe trabalhadora sobre o papel da “Lava-Jato” e da luta política aberta contra o PT. Para enfrentar o PT, parte (minoritária) da esquerda terminou por entender como legítimos os métodos e objetivos da operação lava-jato. 

Ocorre que os procedimentos da “Lava-jato” não estavam sendo aplicados por um “tribunal operário revolucionário” para julgar a traição de classe cometida pelos governos do PT. Ao contrário. O chamado “Código do Russo” (como se referiam aos procedimentos de Sérgio Moro) marcou a “República de Curitiba” e hoje fica evidente que se tratava de um projeto a serviço de planos imperialistas, com colaborações internacionais ilícitas. Agora a natureza estratégica dessa operação é desmascarada, mas é importante extrair lições mais profundas.

Judiciário e as classes sociais

A esquerda tem um permanente desafio na sua relação com a noção de Justiça e o próprio Judiciário, tal qual concretamente se estabelece em cada Estado e em cada momento. Remonta às revoluções burguesas abertas desde o século XVII a criação de uma sociedade de classes de novo tipo, onde o ideário de cidadania coexiste com as classes sociais. Junto com a cidadania burguesa, produto de um processo secular e complexo de embate entre as classes, conquistou-se a igualdade civil, o poder de votar e um quadro de conquistas democráticas. Desde então, é permanente a contradição entre desigualdade de classe e igualdade jurídica e, tendo como pano de fundo a continuidade da luta entre as classes em contextos específicos, produz-se um determinado arcabouço legal em cada país. 

Há várias polêmicas políticas e teóricas nesse terreno. É parte disso a polêmica entre os “punitivistas” e os “garantistas” – esses têm como fundamento oferecer as garantias legais, a ampla defesa, contraditório, etc. Como critério, necessitamos ter nitidez sobre qual classe social pilota o Estado. As liberdades individuais não existem no abstrato, mas se dão em um contexto histórico específico, em que beneficiam determinada classe social (e/ou dão afagos de outro lado).

É importante ter consciência ainda de que o regime liberal burguês, apoiado nos legislativos e executivos, é muito bem sucedido em sua capacidade de reproduzir-se. Nestas instituições – mas também no poder judiciário – as classes dominantes articulam e negociam seus interesses permanentemente com eficiência, conciliando entre suas frações as reivindicações econômicas e políticas fundamentais. Oferecer concessões é parte da sua auto-preservação – mas tudo está subordinado à evolução da dinâmica da luta de classes e às crises sistêmicas.

No terreno ideológico, há variadas posições sobre a relação da classe trabalhadora e seus organismos com o Estado. Há quem confie demasiado no Estado em sua atual formatação democrática-burguesa como uma ferramenta para resolver conflitos, como (ou quase como) se vivêssemos problemas de gestão pura e simplesmente. Em geral, é em momentos de crise econômica que as expectativas de gerir e conciliar interesses distintos se esvai. Mas de outro lado, há aqueles que acreditam que, como uma justiça socialista é possível apenas diante de uma revolução proletária, iniciativas jurídicas são tomadas como (ou quase como) uma capitulação. Quando essa visão associa-se a não distinção entre os diferentes governos, o resultado pode ser desastroso. Daí ser possível que setores da esquerda, inclusive revolucionários, adotem políticas e métodos semelhantes para combater o PT, o PSDB ou mesmo o bolsonarismo.  E para combater “a corrupção” então, tudo vale.

 No marco do capitalismo, convivem diferentes tipos de regime e governo. Há uma evidente distinção entre regimes fascistas, bonapartistas e os regimes democráticos liberais. E as próprias ferramentas democráticas dos regimes liberais burgueses são instrumentais variáveis, se moldam em contextos específicos de acordo com as pressões e possibilidades de luta das diferentes classes sociais. O Poder Judiciário expressa tais oscilações de forças, mas também reúne contradições, sendo mais complexo do que uma correia de transmissão automática entre os interesses de classe e todas as decisões judiciais. É nas contradições em que se conquistam as brechas ou as pequenas vitórias que podem ser úteis no avançar de uma determinada luta ou setor social.

O “devido processo legal” é uma conquista significativa. E é uma conquista decisiva na medida em que a classe trabalhadora é julgada pelo poder existente. Exigir o “devido processo legal” significa exigir que o Estado julgue conforme as regras pré-estabelecidas. Ou seja, trata-se da possibilidade de exigir que haja no mínimo coerência com o que se julga, sem ilusões de que isso seja plenamente possível, em especial quando se trata da massa negra e pobre encarcerada e dos resquícios não superados da ditadura brasileira. E não foi possível no caso do Lula.

Lava-jato é parte da ofensiva burguesa contra a democracia liberal

Quando juízes e promotores conspiram para forjar um processo penal estão fraudando as regras do jogo. No caso de Lula foi violado o princípio do “Juiz Natural”, ou seja, existem regras prévias de modo que o juiz não é escolhido sob encomenda para um resultado combinado. Foi violada a possibilidade de ampla defesa. Como também Lula foi condenado sem provas, só com a “convicção” de quem o condenou. Portanto, garantias mínimas do “Estado Democrático de Direito” foram desprezadas.

Hoje fica muito evidente toda a relação de Sérgio Moro com os interesses dos EUA e cai por terra qualquer justificativa plausível para o lavajatismo de esquerda. O principal erro foi não entender que o PT é um partido socialmente vinculado à classe trabalhadora. O governo petista foi um governo social liberal que atendeu a variados interesses burgueses, alinhando-se com setores que posteriormente lhe golpearam em 2016. Aprovou a reforma da previdência, um ataque aos direitos da classe trabalhadora.

Mas quando a justiça burguesa golpeou Lula, não o fez pelo caráter burguês de seu governo. Foi o exato oposto. Lula é atacado pela sua origem e do PT no seio do proletariado. O pacto com o PT era insuficiente para um amplo setor da burguesia que exigia aprofundar mais os ataques e as contrarreformas. Quando agentes do Estado burguês estão dispostos a violar as regras básicas do “devido processo legal” em ofensiva contra as regras do jogo democrático, a natureza classista do Estado fica ainda mais visível. Afinal, atacar as “regras do jogo” implica em desgastes, gera fissuras.

A compreensão da natureza classista do Estado não pode, em qualquer tempo,  desregular a bússola política da luta entre as classes. É verdade que a igualdade jurídica tem utilidade ímpar para mascarar ou mistificar as contradições da sociedade capitalista, mas a esquerda não pode negligenciar a importância de defender conquistas democráticas diante de ofensivas bonapartistas, ou deixar de aproveitar as possíveis brechas.

Diante de ataques, é um dever da classe defender o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, o juiz natural, a imparcialidade do juiz, bem como todas as garantias do “Estado Democrático de Direito”. Trata-se também de limitar parte do poder da própria burguesia contra a classe trabalhadora.

O lavajatismo de esquerda e o ultra-esquerdismo

 Os debates não são novos. Há acumulação de experiências históricas. O Stalinismo, no seu chamado “terceiro período”, assumiu uma política ultra-esquerdista. Para Stalin o fascismo e a social-democracia eram governos igualmente burgueses, não havendo diferença entre ambos. Tal qual como se hoje alguém colocasse um sinal de igual entre Bolsonaro e Lula. Em 1924, Stalin escreveu um texto explicando que estaria sendo aberta uma “era” da burguesia “pacifista e democrática”. No qual afirma que:

O fascismo é a organização de luta da burguesia que conta com o apoio ativo da Social-Democracia. A Social-Democracia é objetivamente a ala moderada do fascismo. Não há fundamento para supor que a organização combativa da burguesia pode alcançar sucessos decisivos nas batalhas, ou no governo do país, sem o apoio ativo da Social-Democracia. Da mesma forma, há pouco fundamento para pensar que a Social-Democracia pode alcançar sucessos decisivos nas batalhas, ou no governo do país, sem o apoio ativo da organização combativa da burguesia. Essas organizações não se negam, mas se complementam. Eles não são antípodas, são gêmeos. O fascismo é o bloco político informal dessas duas organizações principais; um bloco, que surgiu nas circunstâncias da crise do imperialismo do pós-guerra, e que se destina a combater a revolução proletária. A burguesia não pode manter o poder sem esse bloco. Portanto, seria um erro pensar que “pacifismo” significa a liquidação do fascismo. Na situação atual, “pacifismo” é o fortalecimento do fascismo com sua ala moderada, a Social-Democracia empurrada para o primeiro plano.

  Nahuel Moreno, no seu clássico “O Partido e a Revolução”, citando Trotsky, menciona alguns dos principais erros do stalinismo nesse período:

  • Não saber distinguir o governo fascista  – ou o perigo de governo fascista ou ultra-reacionário – das outras formas  burguesas de governo.
  • Não aplicar a política de frente única operária contra o perigo de governos fascistas ou ultra-reacionários.
  • Criar organizações de massas artificiais, paralelas às tradicionais (que eram dirigidas pelos reformistas).
  • Propor armamento operário como uma tarefa em si
  • Afirmar que a vitória do nazismo abriria novas e melhores perspectivas de lutas revolucionárias e de desenvolvimento do partido (comunista) que sob o regime democrático burguês.
Moreno lança o questionamento: “Todos os governos são iguais?”:

 

“Para os ultra-esquerdistas, todos os governos eram ‘fascistas’ pela simples razão de serem burgueses.”
(…)
“Uma coisa é não confiar em um governo burguês ou apoiá-lo, mesmo que seja de ‘esquerda’ ou ‘nacionalista’; outra coisa é não diferenciá-los dos governos ultra-reacionários e não adotar uma política apropriada frente a cada um deles.”

O ultra-esquerdismo que tergiversou na luta contra o nazismo em meados de 1920 continua nocivo ao colocar um sinal de igual entre Bolsonaro e Lula. Ou desprezar a profundidade das transformações vividas no país desde o golpe institucional. O governo Bolsonaro é uma coalização de frações atrasadas, conservadoras, neofascistas e com relação com o grande empresariado. Mesmo com a crise aberta com a covid-19 e os recentes escândalos de corrupção, ainda não há um representante orgânico da burguesia em favor do impeachment. Os dois grandes fatos que ampliaram a confiança da classe trabalhadora em suas próprias forças e a esperança de retomar posições derrotando o bolsonarismo são as mobilizações recentes com peso de massas e a liberdade do Lula (com consequente desmoralização de Sérgio Moro).

Não cumpriram um papel útil os setores da esquerda que flertaram com a operação lava-jato. A Frente Única é a tática de luta necessária para ampliar as mobilizações por baixo e criar as condições para impor uma derrota histórica ao neofascismo e ao bolsonarismo. Quem tente se impor como um obstáculo a essa tática, com pretensões de radicalização,  não estará sendo útil agora para derrotar Bolsonaro.

*Bruno Figueiredo – Advogado e militante da Resistência/PSOL

*Deborah Cavalcante – Advogada, Mestre em Ciência Política e militante da Resistência/PSOL

NOTAS

(1) Cf.: https://www.marxists.org/reference/archive/stalin/works/1924/09/20.htm