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CULTURA

O pesadelo de Bacurau

Paulo Gajanigo*, de Niterói (RJ)
Divulgação

É de se duvidar que algum expectador brasileiro tenha ido ver o filme “Bacurau” sem a prévia noção de que se trataria de um filme sobre nossa atual condição política. A dificuldade das resenhas em categorizar “Bacurau” (western, ficção científica, cult, etc.) reforça o pertencimento ao impreciso rótulo de filme político. Esse rótulo tem mais a ver com aspectos posteriores à produção do filme, de como ele é descrito pelos atores, diretores, produtores, de como a crítica o recebe e de como reage o público. No caso dos dois filmes mais recentes de Kleber, a própria ação do diretor e do elenco ao fazer do lançamento um ato político claro contribuem significativamente para esse rótulo. Aquarius foi logo identificado com o “Fora, Temer!”. “Bacurau”, com a luta contra o governo Bolsonaro.

O cinema é um disparador de imagens sequenciais. Seja o cinema carregado de manifestações políticas nas premières ou não, sua ação política primordial está na relação entre as imagens disparadas e o imaginário social disperso. Nesse sentido, todos os filmes têm efeito político, pois ao atuarem no imaginário social podem, grosso modo, gerar atritos a esses imaginários ou podem confluir, reforça-los. Minha primeira impressão de Bacurau é que ele reforça certo imaginário e, dessa forma, atua no seu desenvolvimento sem provocar incômodos.

Desde o ascenso político da direita no pós-junho, setores sociais que se identificam com a esquerda viram em certos filmes bastiões da sua luta. O cinema nacional naquele momento não abrigava grandes discussões políticas. O forte filme “Som ao Redor”, por exemplo, atingiu e provocou debates políticos bem modestos e restritos. Foi “Que horas ela volta?” o primeiro a causar grande comoção. Ele logo foi visto como um ato político contra o golpe. O filme deu forma a uma imagem de Brasil que parecia estar morrendo. No debate político, bastava citar o exemplo da filha da empregada que chegava à USP para que todo o programa da esquerda contra o golpe ficasse evidente. Ao mesmo tempo, o filme tem um otimismo sobre a capacidade de Val se libertar de uma elite conservadora e buscar um caminho digno que contrastou radicalmente com o contexto político[1]. Foi esse contraste que fez o filme atuar politicamente no imaginário de forma a dialogar com desejos de retorno ao bom tempo do pacto social. O filme produziu imagens límpidas do sonho do pacto e por ter sido lançado já no ascenso da direita se tornou um centro de gravidade dessa energia derrotada, mas ainda otimista.

Ainda que cinematograficamente bem distante do filme de Anna Muylaert, “Aquarius” atraiu essa energia. Clara ocupou a personificação da resistência. O conflito com a elite é o elemento comum que deu a linha de continuidade. Mas, ao meu ver, “Aquarius” só pode atuar neste sentido pois em seu desfecho ele renova a esperança da pactuação, quando patroa e empregada estão juntas contra o assédio do capital imobiliário[2]. Ainda que o filme se diferencie do de Muylaert por tratar os conflitos sociais com mais detalhes e complexidade, o final permite ao público articular a melancolia da derrota do pacto social e ter em Aquarius uma contribuição a esse imaginário.

O público já nos indicou que essa energia se fixa agora em “Bacurau”. O ótimo público para o nicho que este cinema ocupa e as manifestações nas salas de exibição confirmam a impressão. “Bacurau” pode ser o único, comparado aos outros dois, que parece consciente já do seu papel em relação a esse bloco energético. Oferece intensamente imagens que ativam e desenvolvem esse imaginário. Os politicamente derrotados aparecem reunidos numa batalha final. O chefe andrógeno se alia ao professor negro, capoeirista, a médica do ex-SUS, a enfermeira, a prostituta, o michê, todos vivendo num vilarejo sem polícia nem Igreja. O filme dá cara ao que imaginamos como os resistentes ao governo, seus alvos prioritários. Produz a imagem também da utopia de um vilarejo sem conservadores. Não seria hoje este o único vilarejo possível para viver para quem está atordoado com o pesadelo de ver vizinhos bolsonaristas por todos os lados? Nesse sentido, é óbvia a localização deste vilarejo no Nordeste, lugar que já ocupa no nosso imaginário o sonho de exílio e alívio. Se quiser se conectar com esse setor ávido por imagens que dialoguem com a energia melancólica pós-golpe, um filme heroico só pode ter êxito se desenhar um herói que não carregue a complexidade de valores e posições políticas dos setores que evoca. Seus heróis são simplesmente a negação do conservadorismo, sem mais nem menos. O herói, o povo, ganha uma formulação romântica. Talvez desde a influência dos CPCs da UNE não vemos uma imagem tão romântica do povo sendo produzida e consumida pela esquerda. O fato de o filme ter retratado um povo sem igreja mostra o quanto esse povo é muito mais um sonho de uma classe média urbana progressista do que qualquer tentativa de registrar complexidades da vida popular.

Se houvesse o tino comercial para isso, “Bacurau” poderia confeccionar seus personagens da resistência em pano e vender nas feiras de produtores orgânicos nos grandes centros. A avidez por consumo de imagens que condensem esse desejo por uma supressão do conservadorismo no país e tudo que tem relação com ele é evidente.

A impressão que tenho é que a ação política do filme até o momento é ser o novo polo de atração dessa energia melancólica. Aquele desejo pelo retorno ao pacto social está se reconfigurando. Comparado aos dois filmes anteriores citados, “Bacurau” atualiza o contexto de sentimentos agressivos em que vivemos. Já está descarregado de esperança de uma saída pacífica. A simplificação de povo e elite que apaga as tensões entre classes e de valores sobrevive agora num contexto bélico. Ou seja, este imaginário continua fechado à percepção da complexidade do que se pensa como povo brasileiro. A unidade não-conflituosa se refugiou num vilarejo que se percebe em uma luta entre vida e morte, entre eles e nós, em que o nós está cada vez mais isolado e desesperado.

O cinema não só dialoga com o imaginário social como também permite fazer vê-lo. Ou seja, por ser produção imagética é também reflexão sobre o imaginário. Diferentemente de “Aquarius” ou “Que horas ela volta?”, “Bacurau” apresenta uma estrutura alegórica que pode reforçar esse elemento de “fazer ver” o imaginário, pois a alegoria permite mais redobramentos. Por estar fincado no imaginário social dos setores derrotados da esquerda, o filme pode nos fazer ver como hoje sentimos e a partir de quais sentimentos pensamos. Ao dar imagem a isso, leva ao absurdo a existência de nossos desejos.

Imaginemos se na cena final, ou numa continuação, descobrimos que o cenário, personagens e enredo faziam parte de um sonho de alguém atordoado pela conjuntura política. Tudo era um pesadelo. Era apenas mais uma noite de alguém que antes de dormir assiste às notícias, passa os olhos no feed e tenta se acalmar até que consiga pegar no sono. Teríamos assim acesso às imagens que nos assombram e nos mobilizam enquanto dormimos. Perceberíamos quão árido tem sido nossa imagem de futuro, quão ameaçados e limitados nos sentimos. Teríamos acesso ao imaginário do qual acordamos todos os dias e que nos faz sentir ao mesmo tempo empacados e em derretimento. Se o filme tivesse esse adendo, o prazer da vingança que muitos sentem ao ver filme contrastaria com a visão terrível do imaginário que nos orienta e que nos espera todos os dias para dormir. Se pudermos pensar sobre esse imaginário, quem sabe o filme nos ajude a ver o beco sem saída que a forma como temos construído nossa resistência nos levou.

* Doutor em Ciências Sociais e professor de sociologia da UFF.

 

NOTAS

[1] Discuti mais detalhadamente esse aspecto em “O pacto social e estética em Que horas ela volta”. http://blogjunho.com.br/o-pacto-social-e-estetica-em-que-horas-ela-volta/

[2] Ver “Aquarius e o ‘Fora, Temer’”. http://blogjunho.com.br/aquarius-e-o-fora-temer/