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OPRESSÕES

Uma saída negra e brasileira ao socialismo

João Gabriel, do ABC paulista
Reprodução

Quadrinho ‘Angola Janga’, de Marcelo D’Salete

O trabalhador de pele branca não pode ser emancipado onde o de pele negra é estigmatizado”Karl Marx

“Nós devemos dizer aos elementos conscientes dos negros que eles estão convocados pelo desenvolvimento histórico para se tornar a vanguarda da classe trabalhadora. (…) Se acontece de nós do SWP não estarmos aptos a encontrar o caminho para este estrato, então nós não somos capazes de nada. A Revolução Permanente e todo o resto seriam apenas uma mentira.” —  Leon Trotsky

A escravidão sempre foi reconhecida pelos socialistas como uma profunda negação da humanidade. Por isso a luta abolicionista sempre foi tida, às vezes mais como intuição do que fruto de uma grande reflexão, uma causa justa, necessária para uma emancipação mundial da classe trabalhadora. Marx e Trotsky não foram superficiais nessas ocasiões. Essas e outras sentenças de revolucionários históricos, quase sempre tão eloquentes, são a cristalização de um método, uma forma radical de observar a história e dar a ela o seu veredito.

Wilson Honório no livro “O mito da democracia racial: Um debate marxista sobre raça, classe e identidade” traz bons exemplos dessas reflexões por esses e mais outros revolucionários notáveis. No caso de Marx a luta contra a escravidão era, pelas suas próprias palavras em cartas trocadas com Engels em 1860, a coisa mais importante que estava acontecendo no mundo em sua época. Antes mesmo disso, em uma carta de 1846 para Pavel Annenkov, Marx afirmava que “A escravidão é um elemento tão central na industrialização quanto as máquinas, o crédito etc.”. Trotsky falou por boa parte da década de 1930, nas discussões com os dirigentes do Partido Socialista dos Trabalhadores dos EUA (SWP), estar preocupado com a falta de prioridade que o partido dava à produção teórica e programática sobre a questão negra. Ele próprio, apesar de assumir sua parcial ignorância sobre a questão, defendia o reconhecimento dos negros nos EUA como uma nação oprimida que tinha direito a sua auto-determinação, seu próprio partido e, em última instância a defesa da criação de seu próprio país.

A primeira resposta que um ativista do movimento negro ouve quando questiona os limites ou mesmo a pertinência do marxismo para a definitiva emancipação do negro das garras do racismo é a revolução comunista como a panaceia, o elixir que cura todas as opressões. Algum militante mais treinado o exporia a algumas dessas sentenças apaixonadas que iniciam este artigo, a iluminação dos seus mestres, pais fundadores da tradição do seu partido ou corrente política.

Para o azar desses militantes, Marx e Trotsky não eram simples frasistas. Era o seu método que dava a importância do anti-racismo. Mas eles não resolveram tudo, a tradição de seus partidos não fornece resposta a todas as conjunturas desde 1848 na Comuna de Paris até o Brasil de Bolsonaro em 2019. É necessário estudar o racismo na constituição profunda das classes no Brasil para que sejam utilizados corretamente os métodos do materialismo histórico dialético e da revolução permanente.

Não são espontâneos os movimentos que conscientizam raça ou classe contra a opressão (e a dialética também nos impede de dizer que essa seria uma etapa anterior ou posterior, é a relação contínua entre teoria e prática). Se “a revolução também será negra ou não será”, a luta contra o racismo estrutural que freia a revolução será respondida por organização, tática e estratégia revolucionária.

“A tradição como uma arma apontada, mas não quer atirar”*

“Os social-democratas russos veem como sua tarefa, antes de tudo, “propagar” a doutrina do socialismo científico, difundir entre os operários conceitos justos sobre a ordem social e econômica contemporânea, sobre suas bases e seu desenvolvimento, sobre as diversas “classes” da sociedade russa, sobre suas relações, sobre a luta dessas classes entre si.” —  Lenin

O reconhecimento dos grandes líderes ou partícipes de insurreições socialistas vitoriosas se devem aos seus acertos na análise da realidade das classes e a política que elevou a consciência revolucionária das massas. Pra além disso existem as reverências e os louros das histórias contadas em que os erros e percalços são truncados para favorecer uma linha do tempo mais linear e também racional dos acontecimentos. Lenin, o principal líder e dirigente da mais extraordinária experiência comunista foi, no seu tempo, estudioso assíduo das classes na Rússia, as ideologias que estavam por sobre elas e a forma como se reproduziam na estrutura da sociedade.

Lenin recuperou a defesa da revolução violenta contra os reformistas devolvendo aos conselhos populares o protagonismo que os social-democratas delegavam ao parlamento*. Ao mesmo tempo, combateu o esquerdismo que negava a utilização política do parlamento, dos sindicatos e, em última instância, até mesmo do partido revolucionário. Mas o pior engano é acreditar que tudo isso se fez meramente pela defesa de todas categorias e descrições do Marxismo como se fosse uma cartilha, um guia passo-a-passo. Ao contrário, a moral de Lenin deve ser defendida pela obstinação de buscar todos caminhos possíveis de conectar a política revolucionária para avançar a consciência das massas e mobilizá-las. A defesa de uma cartilha revolucionária é precisamente o anti-marxismo, o anti-leninismo.

Pois está é a tristeza do ativista negro que terá de ouvir várias vezes a mesma resposta esquemática de uma grande parte dos militantes socialistas: a política mal transplantada das análises marxistas dos grandes dirigentes políticos, o que chamo aqui, num sentido pejorativo, de tradição revolucionária. A tradição revolucionária é o congelamento no tempo e no espaço do programa de transição; as palavras de ordem; as características e a consciência das classes; a relação entre as classes; as tecnologias de produção; é tornar sagrada cada sentença, palavra, termo e frase dos pais da revolução. É transformar em fraseologia barata as sentenças que abrem esse artigo, deixar completamente desmuniciadas as baionetas da revolução. Isso é especialmente danoso quando se trata dos países periféricos, neo-coloniais como o Brasil.

A nossa sorte está na tradição perdida dos revolucionários negros

“Considerados sonhadores e homens pouco práticos, a solução que propunham, ou seja, direitos aos mulatos e gradual abolição da escravatura, serviria melhor aos interesses da França e, o tempo prová-lo-ia, aos interesses dos próprios homens da colônia. Mas quando foi que a propriedade deu ouvidos à razão, senão quando intimidada pela violência?” —  C. L. R. James

A questão colonial já foi tratada diversas vezes na história da esquerda brasileira. Antes da nossa pequena “revolução industrial” da década de 1930, no getulismo, o problema colonial para os estalinistas (ou marxistas-estalinistas) gestou a necessidade de uma revolução burguesa. Nossa elite atrasada seria então sobrepujada por uma nova burguesia industrial, verdadeiramente nacional e que nos daria as condições de, finalmente, gerar o proletariado industrial que nos permitiria usar posteriormente o esquema de Marx.

Uma vista míope da história poderia ler a descrição enfática da revolução burguesa que Marx faz no Manifesto Comunista como uma verdadeira apologia do capitalismo. Porém, o capitalismo em que “a burguesia arrastou para a torrente da civilização até a sociedade mais bárbara” na verdade lutou para extrair até onde pôde a acumulação de capital pelo trabalho escravizado das colônias; o mesmo capitalismo que “faria esvanecer no ar tudo que fosse sólido” apenas transmutou o discurso que manteve o genocídio do povo negro nos países americanos. É necessário encarar o fato de que as condições que já estavam maduras para a revolução há cem anos atrás estão a apodrecer enquanto o movimento negro no Brasil segue afirmando, com razão, que não há o que comemorar nos aniversários da Lei Áurea.

Após a ascensão e interrupção brusca das reformas de base de João Goulart pelo sonho da soberania brasileira, chegamos ao paradigma da contradição entre o Brasil atrasado e o Brasil moderno. A teoria da dependência não-marxista defendida por Fernando Henrique Cardoso já ao final da década de 1970, que explicava o subdesenvolvimento dos países latino-americanos, foi um consenso de esquerda da necessidade de um investimento na industrialização e de certo achatamento dos salários para destravar o desenvolvimentismo, para fazer o Brasil moderno vencer o “patrimonialismo”. É claro que a esquerda revolucionária repudia esse programa reformista, mas não substituíram esse paradigma por nada. A lacuna se deve justamente por não ligar o racismo estrutural e a profundidade das marcas da escravidão como reprodução de uma subserviência interna que reforça a dependência econômica.

A ideologia racista que coisifica o negro e permite o seu genocídio, seja pela ação violenta da polícia, as más condições de saúde, falta de moradia e saneamento básico adequados, são traduzidas, na a lógica econômica, como um custo inferior ao patamar mínimo de manutenção e reprodução de novos trabalhadores. Veja bem, a referência aqui não é simplesmente a diferença no nível de renda entre brancos e negros, mas sim na diferença entre garantir a manutenção da vida produtiva do trabalhador até uma idade que mantém o seu potencial de produtividade e desempenho ou não. Pode-se pensar aqui na contribuição de Ruy Mauro Marini, em contraposição a Fernando Henrique Cardoso, na sua defesa da teoria marxista da dependência. Para ele, há completa compatibilidade entre a necessidade dos países imperialistas de promover, nos países periféricos, uma produção barata sem a necessidade de grandes investimentos no aumento ou manutenção da produtividade do trabalhador e a compensação do racismo institucional que garante os custos baixos dos salários e dos serviços do Estado que manteriam o trabalhador vivo e respirando.

A ideologia racista reforça e garante a reprodução dessa sociedade doente que é a base da superexploração imperialista sobre o Brasil. Essa é a exata imagem da burguesia brasileira no espelho; e é exatamente esse o fracasso da política da esquerda hegemônica que insiste em conciliar o poder com essa mesma elite racista e subserviente. Mesmo um programa de fracas e lentas reformas no Brasil, como as praticadas em grande medida pelos governos petistas, e em parte até mesmo por FHC, mostrou-se insustentável, a longo prazo, sem um programa revolucionário que dê conta de enfrentar em nível internacional a hegemonia dos EUA na América; e uma revolução é derrotada sem a construção de uma sociedade socialista.

O negro como a negação, ou “outro”

“Na verdade, o movimento popular adquirira uma enorme confiança em si mesmo. (…) Não era preciso ter vergonha de ser negro. A revolução os despertou, tornou-lhes possíveis as realizações, a confiança e o orgulho. Aquela fraqueza psicológica, aquele sentimento de inferioridade, com os quais os imperialistas envenenam os povos de todas as partes, desapareceram. ” —  C. L. R. James

R. L. James demonstrou a persistência da burguesia marítima inglesa, ainda no início da sua apologia ao trabalho livre, em lutar para recompor a escravidão durante o processo revolucionário que libertou o Haiti da mão dos franceses, ingleses e espanhóis. Houve ali um processo duplo de negação da opressão de raça e classe. A revolução apenas teve êxito porque os homens ali se entenderam como sujeitos.

Djamila Ribeiro recupera no livro “Lugar de Fala” o diagnóstico de Simone de Beauvoir sobre as coletividades. Para ela nenhum grupo se afirmaria como Um sem definir ou apontar o outro. O outro não é definido por ou para si, é definido por sua função ou serventia para o Um. O negro é o outro do branco (o trabalhador também é o outro do capitalista, a mulher é o outro do homem etc.), e essa condição desumanizadora não se encerra quando sua condição como mercadoria é formalmente abolida.

Pode-se pensar que o negro também é o outro da esquerda revolucionária. O projeto para a questão negra é comumente designado à construção das organizações, de preferência à secretaria de negros do partido. O desespero de Trotsky em relação a importância da luta antirracista nos EUA, que estava sendo negligenciada pelo SWP da década de 1930, relembrado aqui, pode ser interpretado de duas maneiras: o partido falhou em não encontrar uma política correta para cooptar os negros para o programa do partido; ou o partido falhou em não encontrar um programa verdadeiramente revolucionário por não ter uma política correta para cooptar os negros para a construção do partido. Penso que a esquerda brasileira, consciente ela disso ou não, recai na primeira hipótese. O negro tem uma função no programa dos partidos revolucionários, o programa não é feito para si. O negro se mantém, também aí, o outro.

Fanon e a trajetória da revolução africana

“Surge, então, a necessidade de uma ação conjunta sobre o indivíduo e sobre o grupo. Enquanto psicanalista, devo ajudar meu cliente a conscientizar seu inconsciente, a não mais tentar um embranquecimento alucinatório, mas sim a agir no sentido de uma mudança das estruturas sociais. ” —  Frantz Fanon

 

Frantz Fanon, o marxista martinicano que militou por anos na Frente de Libertação da Argélia, era consequente com a realidade experimentada pelos países colonizados ou neo-colonizados. Sabia disso porque conhecia profundamente as patologias sociais que a opressão, a escravidão, a violência e o subdesenvolvimento acarretaram no seu povo. Sua obra é toda uma crítica à tradição revolucionária irreflexiva que dominava os partidos nacionalistas dos países africanos e americanos. O proletariado industrial era o setor mais consciente, porém mais diminuto das sociedades colonizadas ou subdesenvolvidas na década de 1950 nos países africanos e americanos. Apesar da clara evidência disso e da impossibilidade já apontada aqui de uma revolução por etapas que desse conta desse problema, o abandono das massas do campo e o foco nas franjas urbanas representavam uma política fracassada. Mesmo o lumpen-proletariado das favelas, pessoas que fugiam das dificuldades do campo, eram mais numerosos. O resultado era uma política onde os partidos nacionalistas africanos não se colocavam como uma ferramenta teórica e organizativa para o povo, mas sim tentava submetê-los ao seu esquema. E quem não avança, retrocede. Na prática, os partidos nacionalistas se adaptavam continuamente ao seu imobilismo.

Claro que há contradições, e é daí que nasce a esperança. Os elementos mais avançados dos partidos nacionalistas elevam as críticas ao imobilismo, aos acordos de cúpula e a política equivocada. Pois tão cedo quanto possível são punidos, expulsos ou escanteados pelo partido ao mesmo tempo que cresce a perseguição do colonialismo. Então, afastados para as periferias urbanas ou exilados definitivamente no campo, têm suas ideias surpreendentemente acolhidas por essa massa desprezada pelo partido.

Como descreve Fanon em “Os condenados da terra”: 

“Descobrem um povo generoso, pronto para o sacrifício (…). Compreende-se que o encontro desses militantes cercados pela polícia e essas massas impacientes e por instinto rebeldes, possam produzir uma mistura detonadora de uma potencia inabitual. Os homens vindos das cidades recebem as lições do povo e, ao mesmo tempo, abrem, para o povo cursos de formação política e militar. ”

Fanon está aqui se referindo às massas do campo. No momento em que essas massas partem para as frentes de batalha e os novos dirigentes da insurreição entendem ser a hora de levar os levantes às cidades, para com que o colonialismo sinta mais próximo o perigo, encontram um forte aliado. Segue Fanon:

“[…] é nesse povo das favelas, no seio do lumpen-proletariado que a insurreição vai encontrar a sua ponta de lança urbana. O lumpen-proletariado constitui uma das forças mais espontâneas e radicalmente revolucionárias de um povo colonizado. ”

Importante aqui deixar claro o que Fanon quer dizer com lumpen-proletariado. São simplesmente as massas que se aglomeraram nas periferias da cidade para escapar da miséria do campo (proletariado, subproletariado e o lumpesinato). Mais à frente, Fanon se refere mais especificamente ao agrupamento que ele chama de “delinquência juvenil” como sendo uma fatia do lumpen-proletariado. Fanon argumenta que o anti-racismo como resposta à opressão colonial representa uma razão suficiente para o engajamento desses na luta, mas não poderia o ódio ou o ressentimento configurar um programa.

É muito importante dizer que Fanon nunca desprezou ou ao mesmo colocou de lado o papel dos partidos nacionalistas na insurreição. No início, seriam eles que serão mais capazes de produzir as ferramentas políticas e os militantes abnegados que, em oposição ao próprio partido, dariam impulso organizativo às massas. E no arco final da revolução será justamente a reconciliação entre o partido nacionalista e os dirigentes das massas em insurreição que possibilitariam o escape ao espontaneísmo, o refinamento do programa socialista. Essa reconciliação é, na verdade, a reconciliação entre a tradição revolucionária e a práxis, uma política revolucionária que já não pareceria mais nada com a antiga.

Conclusão

Este artigo não tem como objetivo propor a defesa nos mínimos detalhes do programa fanoniano pois isso seria tão anti-marxista quanto o que foi denunciado aqui inicialmente. O que nos contaram os citados aqui, C. L. R. James, Fanon e Wilson Honório; o que nos contaram também Florestan Fernandes (não me esqueci de que ele não é negro) Abdias Nascimento, Wilson Honório e a construção dos negros ao socialismo é que o risco da degeneração na marginalidade é tão grande ou maior que o da manutenção da tradição cega.

Por nossa sorte, ou pela mesma dialética que possibilitou a consciência revolucionária ao proletariado industrial, os negros e o movimento negro já tem encontrado há tempos o socialismo. Os teóricos negros revolucionários não estão sendo reabilitados pelos partidos socialistas, mas antes são estudados por quadros do movimento negro. Vi nos últimos anos e meses muitos elementos do movimento negro, desconfiados até o pescoço com a esquerda, reencontrar o marxismo nessas referências negras.

O partido revolucionário precisa entender que a política para o movimento negro, para o movimento feminista, para o feminismo negro (o que Granda Kilomba define como o outro do outro), para o movimento LGBT é a reabilitação da práxis, do programa revolucionário e não empatia. O partido revolucionário precisa saber que, após esse processo, nunca mais será o mesmo.

O marxismo é o método da construção de um novo mundo. A ele se somam as contribuições metodológicas Leninistas, Trotskistas, Fanonianas etc. Não há outra redenção possível ao partido revolucionário que não a revolução.

 

*Trecho da música “A tradição” da banda brasileira Boogarins.

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Racismo