Pular para o conteúdo
MUNDO

Surge uma nova geração: testemunha ocular da revolta em Hong Kong

Au Loong Yu | Tradução: Rogerio Freitas, Rio de Janeiro, RJ
ATHIT PERAWONGMETHA/Direitos Res

Hong Kong protestos extradição

O povo de Hong Kong está em luta contra seu próprio governo e o Partido Comunista Chinês. Carrie Lam, presidente-executiva do enclave, nomeada por Pequim, no início deste ano tentou aprovar uma lei de extradição que permitiria que cidadãos de Hong Kong fossem levados para a China continental para enfrentar acusações de violação das leis chinesas, que não se aplicam em Hong Kong.

Desde 1997, quando foi formalmente entregue pelos britânicos, o enclave é uma Região Administrativa Especial da China, com suas próprias liberdades protegidas e um sistema jurídico separado. O projeto de extradição ameaça isso. Desde junho Hong Kong tem visto ondas de protestos. Enquanto Lam insiste que tudo está sob controle, milhões de hong-kongoneses continuam se mobilizando. Eles têm cinco principais exigências: a retirada do projeto de extradição; a renuncia de Carrie Lam; um inquérito sobre a brutalidade policial; a liberdade de todos os manifestantes presos e o sufrágio universal.

A seguir, uma transcrição editada de um discurso proferido pelo socialista Au Loong Yu, de Hong Kong, via link de vídeo, na conferência anual de Socialismo de Perth, em 18 de agosto. Au é socialista e escritor. Seu último livro é: Ascensão da China: Força e Fragilidade.

O movimento em Hong Kong passou por três estágios: o primeiro foi em junho, quando milhões de pessoas foram às ruas. A assembléia legislativa foi sitiada e houve muita violência. Houve uma radicalização e os protestos se tornaram um movimento de massas. Em seguida, o governo de Carrie Lam admitiu que o projeto de extradição seria temporariamente suspenso. Mas o descontentamento persistiu. O governo Lam agora tem legitimidade zero. O movimento dos trabalhadores merece destaque: em 17 de junho, a central sindical, ao que parece, a mais democrática, convocou uma greve, mas não foi bem sucedida.

A segunda etapa foi caracterizada por manifestações e pela ocupação do legislativo, com a juventude radical invadindo o prédio. Isso foi em julho. Foi uma ação extremamente radical – se você fizesse o mesmo na Austrália, as tensões seriam bem maiores contra os manifestantes. Mas o protesto de julho resultou em zero vítimas. Isso ocorreu porque o prédio da legislatura foi evacuado pela polícia, o que provavelmente atraiu os radicais a invadir em primeiro lugar e provocar um confronto. De qualquer maneira essa ação levou o movimento a um nível superior. Mas o que se seguiu depois foi horrível: a polícia colaborou com a máfia na região de Yuen Long [perto da fronteira com a China] para realizar ataques indiscriminados na estação de trem para aterrorizar moradores e manifestantes. Isso provocou as pessoas e até os liberais mais moderados ficaram com raiva.

Então vimos outras radicalizações. Também houve 16 ou 17 manifestações em diferentes distritos. Vimos uma ampliação do movimento nos bairros, o que nunca vimos antes em Hong Kong. Essa reação foi motivada também contra o ataque promovido pela máfia. Centenas de milhares de pessoas participaram. O protesto de 27 de julho foi ainda mais significativo. Até então, as manifestações eram legais. Mas em 27 de julho, a polícia recusou uma licença para realização de protestos. Há muitos anos as pessoas de Hong Kong são muito moderadas, normalmente, elas teriam aceitado isso. Em vez disso, centenas de milhares de pessoas foram às ruas desafiando qualquer tipo de truculência policial. Foi a primeira vez desde o início do movimento atual que houve desobediência civil em números tão grandes. Isso lançou as bases para agosto.

Agosto marcou a terceira etapa em que estamos agora. Em 5 de agosto, houve uma segunda greve. Desta vez, foi bem sucedida. Um setor importante da economia de Hong Kong aderiu ao movimento de greve: funcionários da indústria, de aeroportos e voos. O Partido Comunista está agora pedindo a lista de funcionários da Cathay Pacific que entraram em greve. O sindicato não divulgará a lista. Estima-se que 300.000 ou 400.000 pessoas participaram da greve. No final de agosto, houveram protestos bem sucedidos a cada dois ou três dias. Mais pessoas marcharam do que em julho e ainda as mobilizações continuam.

Em 12 de agosto, houveram mais ocupações de grandes proporções no Aeroporto, por exemplo. Isso provocou uma resposta muito defensiva do Partido Comunista. O PC enviou a polícia armada para a fronteira, cerca de 10.000 policiais. Este foi apenas um show – já existe um enorme regimento de soldados em Hong Kong, composto por quase 8.000 policiais chineses, ao lado do governo de Hong Kong. Se Pequim quiser reprimir, usará o que está disponível.

Em termos de composição do movimento, é notável que os partidos políticos não tenham desempenhado nenhum papel de liderança. Eles apenas desempenham um papel logístico, fornecendo conhecimento jurídico e fortalecendo uma frente civil unida. A frente envolve sindicatos e ONGs, além de partidos políticos. A frente recebeu as marchas nos últimos dois meses. Sem isso, os jovens radicais se veriam muito isolados. Não devemos subestimar o papel da frente civil, mas ela não ofereceu liderança política. Espera-se sempre que os jovens radicais levem a resistência a um nível superior de luta.

Os jovens radicais, cerca de 5.000 a 10.000, principalmente estudantes, estão prontos para combater a polícia. É difícil determinar os números corretos, mas existem milhares de jovens preparados para usar a força. Outros milhares de jovens não estão prontos para estar na frente de batalha, mas estão prontos para apoiar os radicais. Isso torna o movimento dinâmico. Jovens de apoio fornecem viseiras, capacetes, água e assim por diante. Suas inclinações políticas são variadas e é raro eles ingressarem em organizações políticas. Eles são jovens – com ensino médio e superior. Eles realmente acreditam na democracia, mas têm uma compreensão rudimentar da política. Eles podem ser xenófobos em relação aos chineses do continente, mas isso ainda não se tornou um programa ou perspectiva. Ao mesmo tempo, muitos jovens pensam que é importante conquistar os chineses do continente e convencê-los das cinco exigências. Portanto, existem posições contraditórias.

O terceiro componente são os localistas xenófobos, que antecederam o Movimento dos Guarda Chuvas de 2014. Essa corrente está enfraquecida desde 2016. A mídia ocidental ama essas pessoas, mas suas organizações são pequenas, não mais que duas ou três dúzias, ou no máximo abaixo de 100, mas sua política ainda é perigosa porque a sociedade de Hong Kong sempre foi de direita, e as pessoas podem adotar a idéia de que os habitantes da região continental são o problema e devem ser expulsos.

O quarto componente refere-se ao setor do trabalho: as organizações trabalhistas não são grandes em Hong Kong. 5 de agosto foi uma greve relativamente bem-sucedida, mesmo desarticulados. Os sindicatos de Hong Kong geralmente não organizam greves políticas, mas agora se fala de uma terceira greve no início de setembro.

Finalmente, a questão da chamada intervenção estrangeira. Se você olhar para o movimento em si no quotidiano verá que há acusações de que são controladas ou financiadas pelo governo dos EUA. Você tem dois milhões de pessoas indo para as ruas. Você tem pessoas insultando a polícia, chamando-as de porcos. É tolice dizer que eles são controlados por qualquer poder estrangeiro.

A situação agora entrou em um impasse. É muito claro que Pequim não quer perder essa batalha. O governo Lam perdeu toda a autonomia, mas também não se retirará de cena facilmente. Ao mesmo tempo, as pessoas estão sendo mais reprimidas. Todavia, isso pode sem dúvida, se transformar em uma situação revolucionária. Pode, se centenas de milhares de cidadãos e trabalhadores comuns se fundirem com a juventude radical e combaterem a polícia ao mesmo tempo. Entraríamos então em uma situação revolucionária. Mas isso não é fácil. Hong Kong é muito pequena para combater Pequim e muitas pessoas sabem disso. E o movimento não é bem organizado e a consciência é muito crua.

No entanto, o movimento é significativo por várias razões. Primeiro, representa o surgimento de uma nova geração. Uma nova geração que cresceu depois que o governo chinês assumiu o controle de Hong Kong. Dá uma nova energia à política de Hong Kong. A nova geração é mais radical. O fato de eles usarem a palavra “revolução” é muito interessante. Minha geração teme a revolução, e é por isso que nossa geração não tem chance alguma. Mas agora vemos uma geração simpática a revolução. E eles são jovens e jogam pedras na polícia por esta revolução. Isso é muito bom, embora também caótico. É uma chance e um desafio.

A segunda razão é que esse movimento representa um choque entre duas visões de Hong Kong. Uma é a visão de Pequim e a outra é a das pessoas comuns. O governo de Pequim sempre tratou Hong Kong como uma cidade inteiramente econômica. Eles queriam roubar Hong Kong de sua identidade política e Hong Kong não desempenha nenhum papel na política. Isso é compreensível, já que Hong Kong é a única cidade na China com liberdade de expressão e liberdade de partidos políticos. Mas o contraditório é que é precisamente isso que politizou a população, inicialmente apolítica, de Hong Kong. A enorme politização de Hong Kong não se deve à intervenção estrangeira, mas o Partido Comunista ajudou a impulsioná-la.

Terceiro, há um choque de duas visões dentro de Hong Kong – as pessoas comuns e as da classe alta e magnatas. Trinta anos atrás, a classe média compartilhava a mesma visão que os magnatas. Contrariando a visão de Pequim, a classe média de Hong Kong aspirava uma forma liberal de capitalismo para a ilha. Nos últimos 30 anos, os magnatas não se comprometeram com essa visão. Eles foram defensores da visão de Pequim do capitalismo totalitário. Portanto, há um conflito.

Finalmente, a crise de Hong Kong simboliza as tensões da ascensão da China. No meu livro, China’s Rise: Strength and Fragility (A ascensão da China: força e fragilidade), argumento que a China contém contradições: é forte, mas também traz enormes fraquezas. Hong Kong expõe a fraqueza da China. A China é uma sociedade do tipo 1984 (referência ao livro de George Orwell, 1984, NdT). É realmente difícil fazer mudanças lá porque a sociedade é muito dura. Mas Hong Kong é diferente e é uma fraqueza importante.

Este artigo foi publicado originalmente em Red Flag.

Sobre o autor:

Au Loong Yu foi um dos membros fundadores do Globalization Monitor, Hong Kong, e também faz parte do seu conselho editorial. Ele foi co-autor de dois livros chineses sobre a reforma da China e sobre o livre comércio e a globalização. Principal autor do livro Women Migrant Workers under the Chinese Social Apartheid e autor de No Choice but to Fight – A documentary on battery women workers’ struggle, (Globalization Monitor), forthcoming.

[1] No dia 4 de setembro os manifestantes de Hong Kong conseguiram uma vitória parcial, pois a lei de extradição foi revogada pelo governo de Carrie Lam.

Marcado como:
Hong Kong