O golpe que derrubou Dilma Rousseff fortaleceu no país os setores reacionários, que se sentiram à vontade para, sem pudores, disputar a hegemonia no interior das frações burguesas, e na sociedade brasileira. A origem social e o caráter político dessa nova direita – sem qualquer relação com os movimentos sociais – permitiria (vem permitindo) ao seu líder, Bolsonaro, a aplicação de um ajuste estrutural necessário à resolução da crise econômica para o capital, mas que os tradicionais representantes (partidos e candidatos) do próprio capital não pareciam ter condições de levar a cabo. O projeto do atual governo, que combina ultraliberalismo econômico e reacionarismo político-cultural, inclui a luta em torno ao próprio papel do Estado, em especial no que diz respeito à sua política social.[1]
Nas atuais condições, de crise econômica profunda e da aparente incapacidade de recuperação da acumulação de anos anteriores por meios das formas e arranjos políticos “convencionais”, coloca-se para o capital a exigência da aplicação de um ajuste estrutural tão atroz que parece só poder se efetivar por meio de um novo regime político, cada vez menos democrático. Destarte, a crescente blindagem da democracia (DEMIER, 2017) aparenta ser um elemento fundamental para realização desta nova reestruturação capitalista no Brasil. Assim, no campo político e ideológico, verificamos, também em nosso país, a conformação de uma nova razão do mundo (DARDOT e LAVAL, 2016).
O desgaste do regime democrático-eleitoral, com o uso pelos conservadores do tema da corrupção, e a crise provocada pelo neoliberalismo levaram ao fortalecimento da ofensiva social, política, econômica e ideológica sobre a classe trabalhadora, e saídas autoritárias para resolução de conflitos. São medidas que tentam construir um consentimento que avalize a retirada de direitos conquistados, os quais são apresentados como a razão da crise econômica e decadência moral da sociedade.
A nosso ver, diferentemente do que alardeiam os defensores da tese da “cortina de fumaça”, a verborragia reacionária do governo e as diatribes proferidas por seus ministros não podem ser vistas como manobras diversionistas que, nessa perspectiva, cumpririam apenas o papel de desviar a atenção da sociedade (e a possível resistência de setores desta) para pautas morais, culturais e comportamentais, de modo que a agenda econômica governamental (em especial, as contrarreformas) possa ser efetivada sem muita contestação.
A partir de uma perspectiva de totalidade, pensamos, do contrário, que o conteúdo ideologicamente moralista e, sobretudo, machista expresso nas declarações de expoentes do governo é parte constituinte e necessária de um projeto político que, visando à aplicação de uma plataforma ultraneoliberal, propõe uma reconfiguração regressiva das relações sociais no Brasil. Em outras palavras, dizemos que, diante da imposição de uma austeridade orçamentária brutal e de uma violenta ofensiva contra os direitos em geral, as nefastas consequências sociais provocadas por esta agenda política (aumento da desigualdade, do desemprego, da pobreza, dos adoecidos, jovens e idosos desassistidos, entre outras) requerem, do ponto de vista da eficácia da dominação burguesa, uma nova formatação no trato da questão social, em especial no que concerne à política social, e, ainda mais particularmente, à assistência social.
Nesse sentido, combinada à difusão de “modernas” ideologias mercadológicas, típicas da “cultura de crise” neoliberal, como o individualismo, a concorrência, o empreendedorismo dos cidadãos-consumidores e a filantropia empresarial (MOTA,1995), verifica-se uma intensificação de ideologias conservadoras e retrógadas, sobretudo no que diz respeito ao papel social destinado à mulher, tomada como um sujeito centralmente voltado para as tarefas do lar, cuidados com a família e, se possível, dedicado à atividades de caridade e outras formas de voluntariado. Desse modo, longe de se excluírem, essas ideologias “avançadas” e “atrasadas” constituem, para nós, um arsenal cultural necessário ao novo modelo de dominação burguesa que se pretende estabelecer, o qual, por sua vez, parece ser necessário à nova forma de acumulação capitalista no país, ultraneoliberal, financeirizada e cada vez mais alimentada pela despossessão e espoliação de direitos (HARVEY, 2013). Portanto, remontando à dialética marxiana, pode-se dizer que a forma politicamente reacionária e culturalmente conservadora do governo Bolsonaro é uma forma necessária ao conteúdo de um projeto econômico ultraneoliberal para o país.
Assim, para além de uma cortina de fumaça, as declarações misóginas de Damares Alves (ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos), assim como o primeiro-damismo carola de Michelle Bolsonaro – defensora contumaz de um voluntariado[2] – podem ser compreendidas como práticas necessárias à viabilização da agenda econômica contrarreformista do governo.
A desresponsabilização do Estado no cuidado com crianças e idosos, como se sabe, atinge de maneira diferente homens e mulheres, negras e brancas. O fim do Estado como provedor de direitos sociais, a negação de direitos civis básicos a pessoas transexuais e às mulheres, assim como o racismo estrutural, são elementos funcionais para desumanização e desvalorização do trabalho de determinadas pessoas. É projeto do governo Bolsonaro aumentar os patamares de exploração no Brasil, e para isso manter níveis diferenciados e racializados de exploração são necessários. Assim, a naturalização ideológica de papéis sexuais, ao mesmo tempo que busca a destruição de laços de solidariedade entre potenciais aliados reforça os ataques do capital.
A constante profusão de narrativas governamentais (e seus aliados digitais) em que mulheres, negros, LGBTs, ambientalistas e movimentos sociais em geral são apresentados como inimigos internos, como responsáveis pela degeneração social, contribuem para a construção de um consenso conservador, baseado nos valores tradicionais dos “cidadãos de bem” e da “família brasileira”, a qual passa a ser responsabilizada pelos serviços de proteção que gradativamente deixam de ser oferecidos pelo Estado.
É importante destacar também que essas ideologias conservadoras que ganham força a cada dia se contrapõem diretamente – e mesmo podem ser vistas também como respostas – à nova onda feminista, da qual emergiram autoras cujos trabalhos oferecem subsídios para entender o papel da mulher nesta nova configuração da acumulação capitalista. Indo além das formulações típicas da burocracia stalinista, as teóricas da reprodução social, superando as visões que reduziram o capitalismo às relações propriamente econômicas, essas autoras feministas recuperam a perspectiva marxista que concebe o modo de produção capitalista como uma totalidade, cuja persistência depende da contínua reprodução de relações sociais, o que coloca a importância não só de vários tipos de trabalho (trabalho improdutivo, trabalho não-pago etc.), assim como também de aspectos coercitivos e culturais.[3] Segundo Cinzia Arruzza, uma dessas autoras feministas:
“A noção de reprodução social, nessa perspectiva, tem o sentido de destacar a centralidade do trabalho de manutenção da vida e de reprodução da próxima geração como uma parte do trabalho necessário no interior de todo o processo de reprodução societal. Sob o capitalismo a maior parte desse trabalho é executado no interior da unidade familiar, mas esse não é necessariamente sempre o caso. Ademais, dentro do capitalismo, a porção desse trabalho que é executado seja no interior da família, seja pelo Estado na forma de bemestar, ou pelo mercado, varia de acordo com as circunstancias históricas específicas” (ARRUZZA, 2017, p.41)
Assim, se, por um lado, a burguesia busca aumentar a cota de trabalho sob responsabilidade da família, de modo a aumentar a lucratividade do capital, por outro, o movimento feminista busca resistir à desobrigação do Estado com as áreas sociais. A disputa em torno ao caráter da assistência social é, portanto, um exemplo desta luta atual.
Ao que tudo indica, o governo Bolsonaro está em vias de criar sua própria concepção de assistência social. Há um empenho governamental, sobretudo no âmbito ideológico, em se apagar a política pública de assistência como um direito, propugnando a substituição da assistência pelo assistencialismo, a partir da ampliação do trabalho caseiro, solidário e voluntário, no qual predomina a força de trabalho feminina. Conforme afirmou Ana Elizabete Mota em recente palestra na Escola de Serviço Social da UFRJ, no momento em que há um aumento do desemprego, e que a política estatal de assistência, em vias de desfinanciamento, se mostra insuficiente para atender a uma população cada vez mais degradada, nota-se o avanço de um voluntariado de novo tipo, substituindo as políticas públicas justamente quando mais se precisa delas. Assistimos, portanto, à intensificação da filantropia ancorada em uma visão conservadora e patriarcal da mulher, da família, e da moral.
O avanço dessas ideologias bolorentas, nos marcos de uma onda conservadora, parece estar resultando no retorno de uma visão conservadora sobre o próprio serviço social, isto é, no retorno de uma visão doméstica, feminina e voluntária da assistência social, significando, de certa maneira, justamente no quadro de um “moderno” ultraneoliberalismo financeirizado e digital, uma espécie de reaparição das “arcaicas” protoformas da profissão, em um curioso e atual exemplo concreto da lei do desenvolvimento e combinado de Trotsky[4]
Esse ultraneoliberalismo põe em xeque até mesmo o papel que a assistência social teve na construção do consenso nas décadas de 1990 e 2000. Nos parece que a tese apresentada por Mota, da expansão da assistência social em paralelo à mercantilização da seguridade social, pode ser atualizada, visto que nem mesmo essa mediação parece ser mais possível diante da necessidade de um novo patamar de exploração.
O novo projeto ultraneoliberal no Brasil atual parece, assim, exigir não apenas a privatização da seguridade social, mas também o corte dos recursos destinados às políticas sociais sobrantes, inclusive às políticas constitucionais de assistência social e às políticas governamentais de caráter focalizado e compensatório. Nesse processo, para o capital, se faz necessário a derrota de todos os setores que representem algum grau de resistência à consolidação desse novo padrão de acumulação. O retorno do papel da mulher, e um novo tratamento da questão social, parecem vir a se combinar com o novo modelo de organização da vida social pretendido pela nossa classe dominante.
Referências:
Arruzza, Cinzia. “Funcionalista, determinista e reducionista: o feminismo da reprodução social e seus críticos”. Cadernos Cemarx n.10, 2017, p. 38-58.
BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política social: fundamentos e história. São Paulo : Cortez, 2008.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2017.
____. “A lei do desenvolvimento desigual e combinado de León Trotsky e a intelectualidade brasileira”. Outubro n°. 16. São Paulo, 2008, p. 75-107.
HARVEY, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço social em tempo de capital fetiche: capital
financeiro, trabalho e questão social 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008.
LÖWY, Michael. “A teoria do desenvolvimento desigual e combinado” in Outubro, n. 1, 1998, p. 73-80
MOTA, Ana Elizabete. Cultura da crise e seguridade social: Um estudo sobre as tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo: Cortez, 1995.
[1] Sobre o histórico da política social no Brasil, ver (BEHRING e BOSCHETTI, 2008).
[2] “Michelle Bolsonaro propõe que trabalho voluntário desempate concursos”. Folha dirigida, 28 de agosto de 2019 (https://www.folhadirigida.com.br/noticias/concurso/especial/michelle-bolsonaro-propoe-que-trabalho-voluntario-desempate-concursos) (acessado em 29/08/2019).
[3] A noção de reprodução social, aliás, é um aspecto teórico fundamental para a própria discussão do Serviço Social, como já demonstraram importantes autores como IAMAMOTO (2008).
[4] Quanto a este conceito de Trotsky, ver (LOWY, 1999) e (DEMIER, 2008).
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