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MUNDO

Cartas de Londres – 5. Lembrar a escravidão negra transatlântica para que nunca mais aconteça. O Museu Internacional da Escravidão em Liverpool

Robério Paulino, de Londres

A função da educação é ensinar a pessoa a pensar intensamente e a pensar criticamente. Inteligência mais caráter – esse é o objetivo da verdadeira educação.
Martin Luther King Jr.

Estamos no ano 1630 no Brasil. Ele tem apenas 15 anos, mas já trabalha duro de sol a sol como escravo nas lavouras de cana de açúcar sob vigilância de cruéis capatazes, em um engenho na capitania que seria depois o atual estado de Pernambuco. Sua jornada de trabalho é intensa, extenuante, a alimentação muito rala e, nas quentes e superlotadas senzalas, as condições de moradia são degradantes. As mortes são tão frequentes que pouco geram choro, mas antes um misto de resignação e revolta. Como Olaudah Equiano uns 100 anos depois, um dos líderes da luta pelo fim da escravidão na Inglaterra, ele também chegara à América ainda criança, com sua mãe, mas logo dela foi separado, ao ser vendido para outro engenho, e provavelmente nunca mais a verá.

No navio negreiro que os arrancou da África que nunca mais veria, viu um primo seu ser jogado ao mar ainda vivo, por estar doente, para não contaminar o restante da “carga”. Eventualmente, outros que se rebelassem contra a tripulação podiam ter a mesma sorte, como castigo, para dar exemplo aos demais do preço da desobediência. Nesses momentos, a maioria dos cativos acorrentados chorava, protestava ou clamava por clemência contra aquela atrocidade, sem sucesso, rangendo os dentes de justo ódio enquanto eram levados de volta ao porão e o navio se afastava do castigado, deixado a morrer no meio do Atlântico. Uma cena similar foi mostrada por Steven Spielberg em seu filme Amistad.

Como os demais escravos jovens, muitas vezes ele já pensara em fugir, mas nas conversas à noite na senzala era alertado pelos mais velhos dos perigos de se evadir num território desconhecido e, portanto, hostil para os africanos. Ouvia que muitos fugitivos morriam ou terminavam voltando famintos, feridos e assustados e sabia que, quando recapturados, eram submetidos a castigos dos mais cruéis. Mas alguns poucos não voltavam e haviam rumores que se agrupavam em locais desconhecidos e distantes, livres do alcance dos senhores de engenho e seus de capitães do mato. Nunca desistiu de seu sonho e anos depois ajudou seu filho a fugir para a liberdade e juntar-se a Zumbi no Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, na divisa de Pernambuco com Alagoas, aproveitando a perturbação nos engenhos causada pela segunda invasão holandesa no Nordeste da colônia.

Essa pequena história fictícia poderia bem lembrar um pouco da história da escravidão no Brasil e em todas as Américas, com todo sofrimento que causou a milhões de indivíduos escravizados, arrancados de suas terras para fazerem a riqueza das potências imperialistas europeias no novo continente. A motivação desta carta nasceu de minha visita ao Museu Internacional da Escravidão em Liverpool, meu primeiro destino na cidade, lembrando também de minhas aulas de Formação Econômica do Brasil.

Minha expectativa ao avançar em direção ao norte da Grã-Bretanha era encontrar um país mais conservador, branco e formal, mas constatei que, como Londres, Liverpool é felizmente uma cidade igualmente globalizada em sua composição racial e nos seus costumes, culta e relativamente politizada, com uma comunidade negra muito ativa, uma grande Chinatown, muitos muçulmanos e indianos e gente de todo lado do mundo. Lembremos que Liverpool foi por excelência o grande porto da Revolução Industrial na Grã-Bretanha. Por aqui chegava todo algodão que vinha das Américas e ia às fábricas de Manchester, que fica no interior, e saia grande parte dos tecidos com os quais a Inglaterra inundou o mundo. Entre essas duas cidades surgiu também a primeira ferrovia do planeta.

Como outros desastres humanos, a história da escravidão transatlântica é uma essencial, trágica e dolorosa experiência humana que precisa ser contada e recontada para que nunca seja esquecida e jamais volte a acontecer. Essa é a função daquele museu, cuja visita procuro aqui dividir um pouco com os leitores dessa carta, recorrendo para isso propositalmente a muitas fotos, para partilhar com todos um pouco da experiência.

Em números de mortes que causou, essa gigantesca tragédia talvez só seja superada nas Américas pelo verdadeiro holocausto ocorrido contra a população indígena originária que, segundo estudos mais recentes, foi morta em mais de 90% pelas armas, mas especialmente pelos germes trazidos pelos europeus, contra os quais eles não tinham defesa. Quem quiser conhecer melhor essa história, recomendo vivamente aqui mais uma vez a leitura de Armas, germes e aço, de Jared Diamond, um livro essencial para entender nosso mundo. Como se pode ver pela Tabela e figura abaixo, em torno de 10 milhões de escravizados desembarcaram nas Américas nos navios negreiros entre 1500 e 1870, sendo que desses, somente o Brasil recebeu 4 milhões de indivíduos. Não se leva em conta aqui os inumeráveis mortos na travessia do Atlântico por doenças, maus tratos ou castigo.

O tráfico negreiro operava numa relação direta com a acumulação de capitais na economia açucareira no Brasil e outros países e, no sul dos EUA e no Maranhão, em estrita ligação com o capital da indústria têxtil que demandava o algodão para as fábricas inglesas. Muitos, dos dois lados do Atlântico, enriqueceram imensamente com ele. Boa parte dos capitais acumulados na Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco até o século XIX, por exemplo, vieram desse comércio infame. Em suas salas, o museu de Liverpool busca retratar o lucrativo negócio da escravidão, com sua terrível história de sofrimento e crueldade, mas também lembrar a história de lutas, de coragem, insurreições, rebeliões, a maioria delas desconhecida.

Tão grande quanto o sofrimento dos escravos foi a luta pela liberdade, pelo fim da escravidão. As rebeliões negras foram inúmeras nas Américas. Em toda história da civilização, a história da luta pela liberdade foi sempre uma saga de resistência, sacrifício e coragem.

Desde os anos 1500 com certeza, houve resistência e tentativas de organizar pequenos Estados-território livres da escravidão na América. Em 1649, houve uma forte revolta dos negros em Barbados contra os brancos escravistas. Em 1663, explodiu outra grande conspiração dos escravos em Gloucester County, na Virgínia. Em 1712 outra insurreição negra ocorreu em Nova Iorque. Essas lutas cruzaram os séculos XVIII e XIX, culminando com uma grande onda de rebeliões simultâneas na Virgínia, Jamaica, Barbados, Guiana Britânia e Brasil por volta de 1820-30. Entre 1789 e 1816, ocorreram mais de 30 insurreições negras nas Américas. Sob pressão e por um cálculo econômico, de que estava perdendo em seus negócios para outros países como Portugal e Espanha com sua manutenção, em 1807 o parlamento britânico aboliu a escravidão em suas colônias.

Particularmente dramática foi a Revolução Haitiana (1791-1804), a primeira insurreição negra vitoriosa nas Américas, que literalmente incendiou o Haiti e suas fazendas de cana, também conhecida por Revolta de São Domingos, um conflito brutal na colônia francesa de Saint-Domingue, que conduziu precocemente à eliminação da escravidão e à independência do Haiti, tornando-o a primeira república governada por líderes de origem negra. Infelizmente, a destruição da economia açucareira, com o incêndio dos engenhos, ao não ser esta substituída por outra fonte de geração de riqueza, manteve o país e a população em grande pobreza. Mas não há bem maior que a liberdade: antes ser pobre e livre, que escravo.

No museu em Liverpool também está registrada a história de Zumbi do Palmares, por aqui conhecido também como Black Spartacus. Por uma questão de justiça, deveria estar também no museu o nome de Dandara. Ao contrário do que sempre escondeu a História oficial brasileira até recentemente, a resistência em Palmares também foi heroica e pioneira no Novo Mundo. O primeiro registro histórico conhecido que faz menção ao Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, na divisa de Pernambuco com Alagoas, data de 1597, mas há alguns historiadores que afirmam que ele pode ter surgido ainda antes.

Durante os anos 1600, Palmares, na verdade uma confederação de vários quilombos, que chegou a ter 20.000 moradores, resistiu e venceu militarmente várias expedições de portugueses e holandeses para destruí-lo, com técnicas de guerra apuradas para a época, só tendo sido finalmente derrotado em 1694, pelas tropas de milhares de jagunços de Domingos Jorge Velho, que precisou usar até mesmo canhões para vencer a resistência dos quilombolas.

Muitos de nós talvez não tenhamos noção de que uma aglomeração de 20.000 pessoas era algo imenso para os padrões do século XVII. Poucas cidades no Brasil colonial tinham tal população, mesmo no século XIX. O Quilombo dos Palmares foi na verdade um proto-Estado livre, nos primórdios do Brasil, que deveria merecer mais espaço na História do país. Há dez anos, subi a pé a escarpada Serra da Barriga, em União dos Palmares, para ver de perto o sítio do Quilombo e levar meu tributo a esse símbolo precoce e heroico de luta pela liberdade nas Américas.

No museu em Liverpool estão também registrados tributos a grandes figuras da luta pelo fim da escravidão ou contra a segregação, como Olaudah Equiano, Martin Luther King e Nelson Mandela, ao lado de muitos outros. Mesmo após o fim da escravidão em todos os países do mundo, a batalha por igualdade de direitos ainda não foi vencida e não é fácil.

Nos EUA, a luta contra a escravidão motivou reações furiosas dos escravistas, com o surgimento no Sul dos Estados Unidos de grupos como a Ku Klux Klan, fundada em 1866 no Tennessee, na sequência da derrota do sul no conflito contra o norte. Entre 1825 e 1860, mais de 100.000 escravos tiveram que escapar dos estados sulistas em direção ao norte usando um caminho secreto, a Underground Railroad.

A sangrenta Guerra Civil nos EUA, entre 1861 e 1865, a que mais matou nas Américas, que opôs o norte mais liberal capitalista e industrial ao sul agrário e escravista, tinha também como um de seus panos de fundo a continuidade ou não da escravidão e, em grande medida, a definição do que se estenderia para o oeste do país, se o modelo agrário, latifundiário e escravista do sul ou o capitalismo liberal industrializante e mini fundiário estabelecido no norte. Em um exercício de história contrafactual, alguns historiadores chegam a afirmar que se o sul escravista tivesse vencido aquele conflito, ou EUA provavelmente seriam até hoje um país tão atrasado quanto o Brasil.

Mesmo depois de expulsas da América no século XVIII e na primeira metade do século XIX, as potências europeias ainda empreenderam outra onda de colonização no mundo na segunda metade dos anos 1800. Partilharam o que ainda não estava colonizado na África e na Ásia. Depois da Segunda Guerra Mundial, no entanto, aproveitando-se do enfraquecimento das potências europeias, as colônias africanas e asiáticas lutaram e conseguiram sua independência. Mas em muitos deles, a segregação racial continuou, como na África do Sul, onde a resistência contra o apartheid imposto pela minoria branca tornou-se um símbolo da luta mundial por igualdade racial. Nelson Mandela, um dos líderes dessa luta, recebe destaque no Museu.

Nos EUA, mesmo com a vitória do norte na Guerra Civil em 1865 e o fim da escravidão, a segregação não acabou. Os negros não eram reconhecidos como cidadãos com direitos iguais. A mentalidade escravista, racista e de vingança continuou no sul derrotado. Entre 1882 e 1950, a Ku Klux Klan matou por linchamento 4.000 negros. Já em 1932, esse grupo reunia 1 milhão de membros formais, com apoio de outros milhões.

Neste contexto, já nos anos 1960, emerge o movimento Black Power e se insere a luta de Martin Luther King e Malcolm X, depois assassinados por extremistas supremacistas brancos. Eles também têm sua história registrada no museu. King, como Malcolm X, tinha muito claro que os Direitos Civis para os negros não seriam concedidos voluntariamente, sem muita luta.

O Museu relembra ainda muitas outras figuras de destaque mundial de origem negra, como Desmond Tutu, Cassius Clay, Obama, Gilberto Gil e Pelé.

A longa exposição termina apontando que a luta por igualdade de direitos está longe de terminar, afirmando que uma política de reparações ainda se faz necessária, porque não é possível igualar os ainda hoje desiguais em termos socioeconômicos e de oportunidades. Essa é a lógica que está por trás das políticas de cotas raciais no Brasil e que gera tanto ódio na direita brasileira.

A função central do museu de Liverpool, como já disse ao início, é não deixar esquecer o monumental crime que foi a escravidão transatlântica negra. Infelizmente, no Brasil, o maior destino dos escravos nas Américas, ainda há pouca consciência sobre a questão e existem poucos museus sobre o tema. Há um bom museu em Salvador, mas no Rio de Janeiro, Recife e São Luís, por exemplo, faltam grandes e educativos museus sobre o tema, que sirvam de educação às novas gerações, fundamentalmente para as crianças. Talvez possam surgir por iniciativa de alguns parlamentares de esquerda.

A escravidão negra transatlântica é um desses gigantescos crimes da história humana que deve ser sempre lembrado para que nunca volte a se repetir. Como o massacre contra a população indígena das Américas, que pode ter matado até 20 milhões de indivíduos, ou o holocausto que assassinou 6 milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial, ela deve ser sempre lembrada e relembrada para que nunca mais aconteça. Tão importante quanto não deixar esquecer o saldo negativo desse processo, no entanto, é lembrar a tenaz história das lutas contra a escravidão, cada uma das milhares de vidas perdidas, dos líderes e dos anônimos, heroicamente empenhadas na luta pela liberdade nas Américas.

Londres, 19/08/2019

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