De início, traçar um fio condutor das ações e programas das políticas educacionais é tarefa complexa, mas também condição fundamental para se opor a este projeto de nação que vem se delineando no campo educacional. Partindo do pressuposto de que a educação não é um terreno neutro, há diante de nós uma acirrada disputa na qual os rumos educacionais estão sendo reconfigurados, a contragosto dos setores progressistas. A questão central é: o que há em comum entre as “novas” políticas educacionais do governo Bolsonaro?
No emaranhado de inúmeras ações, o processo vital de resistência está na identificação de uma coluna de sustentação na qual o governo se inspira e preconiza uma agenda que será capaz, não apenas de dar continuidade, mas, sobretudo, de dar uma nova face à educação no país com requinte de perversidade. O eixo central capaz de ligar as diversas políticas educacionais em voga é o deflagrar de um antigo projeto: a privatização da educação pública no Brasil, esta levada às últimas consequências ao desconsiderar as demandas educacionais tanto dos profissionais da educação quanto da sociedade em geral, potencializando as mazelas econômico-sociais, a extirpação do princípio de igualdade, a naturalização da pobreza e a conformação com a desigualdade social.
Dentre as ações, discutimos a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), a Política de Alfabetização e a Base Nacional Curricular da Formação de Professores (BNCFP).
A BNCC foi homologada em um palco de tensões e conflitos políticos entre diferentes atores do campo educacional, com destaque para o Movimento Pela Base (MPB). Entretanto, é importante destacar o caráter antidemocrático e excludente da BNCC por querer impor uma agenda educacional que está intimamente relacionada ao movimento denominado “empresariamento” da educação, no qual grupos de empresários organizados na fundação Todos Pela Educação (TPE) e outras similares com a mesma finalidade (como a Fundação Lemann). Assim, tomam decisões unilaterais acerca dos rumos educacionais, desprezando a participação popular ou fazendo uso dela para endossar interesses do setor privado.
Desde a posse do novo presidente, em meio a algumas situações conturbadas no MEC, a continuidade ao Programa de apoio à implementação da BNCC (ProBNCC) demorou a ser anunciada. Somente em abril de 2019 este programa foi renovado para que estados e municípios seguissem com a revisão dos currículos e a formação continuada. Para tanto, foram liberados R$ 36 milhões para a etapa da Educação Infantil e do Ensino Fundamental e R$ 69 milhões para o Ensino Médio.
É nesse contexto que a privatização vem se configurando como um verdadeiro mecanismo de apropriação do fundo público, objeto de constante disputa entre as frações burguesas. O Ministério da Educação (MEC) hoje possui uma função muito clara: a de gerir a educação dentro dos marcos ultraliberais. É um liberalismo exacerbado que está corroendo as bases de sustentação do próprio Estado Democrático de Direito (ironicamente tão caro aos liberais).
Destaca-se em nossa discussão o debate sobre as propostas de alterações do FUNDEB. Em reunião realizada no dia 06 de maio de 2019, o Ministério da Educação em parceria com o Ministério da Economia, recebeu os ditos “especialistas da educação”, vinculados ao Banco Mundial, UNESCO, Todos Pela Educação e INSPER, para debaterem possíveis alterações na estrutura do fundo. Ressalta-se que a atuação dessas instituições e movimentos representa, como apontado acima, interesses vinculados a setores empresariais e do capital em seu sentido amplo, estando em conflito com os preceitos de uma educação pública de qualidade socialmente referenciada.
Nesse sentido, por meio do contato próximo com as referidas instituições, o Ministério da Educação tem indicado um aumento progressivo da complementação dos recursos da União de 10% para 15%. As propostas apresentadas por instituições como Banco Mundial e INSPER visam permitir ao novo fundo repassar recursos públicos para instituições privadas em todas as etapas da educação básica, em detrimento de ações que visem o fortalecimento da educação e, principalmente, da escola pública. Não obstante, foi sugerido ao MEC adotar medidas de desregulamentação na aplicação dos recursos do FUNDEB, que poderia acarretar numa não obrigatoriedade de aplicação dos atuais 60% do fundo para o pagamento dos professores da educação básica.
Tais discussões estão em processo e ainda não há uma proposta definitiva. Apontamos que diante das movimentações do governo Bolsonaro no âmbito da educação não causaria estranheza que se chegasse a uma proposta de renovação do FUNDEB que promova medidas de transferência de recursos públicos a instituições privadas e que retroaja em relação a ações de valorização dos profissionais da educação, pois, conforme indicado pelo próprio ministro da Educação, Abraham Weintraub, em sua primeira apresentação no MEC, “o piso nacional é importante, mas gera pressão fiscal em estados e municípios, precisamos buscar uma solução”. Tratando-se de um governo e de um Ministro da Educação que constantemente se opõe à educação pública e desrespeita os profissionais da educação é de se esperar que a solução a que ele se refere se traduza em posturas de indiferença em relação a questões que estão demarcadas no Plano Nacional de Educação e na legislação brasileira.
No projeto de desmonte do Estado brasileiro na área social, especificamente no que se refere à educação, destaca-se o sistema de avaliações externas como mais uma ação que apresenta mecanismos de controle por meio do qual é possível responsabilizar as escolas – e não o poder público – pelo sucesso ou fracasso escolar. Portanto, apesar da propaganda positiva em torno da unificação das diversas siglas existentes, e até mesmo conflitantes entre si, a finalidade do “novo” SAEB, “que de novo não tem nada”, é dar invisibilidade aos dispositivos legais que muito podem contribuir para a aceleração do processo de terceirização dos serviços públicos educacionais, deflagrando, como já foi explicitado, um amplo e antigo projeto de privatização da educação pública brasileira.
A partir da mudança atual, o SAEB incorporará a Provinha Brasil, mas continuará avaliando o 3° ano do Ensino Fundamental. Ou seja, recuando na proposta inicial de antecipação do fim do ciclo de alfabetização, devido ao temor com relação à queda nos índices educacionais, em um jogo de forças entre o protagonismo da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e atores do governo que divergem ideologicamente, como grupo que se coloca contrário à postergação do fim do ciclo de alfabetização e que também faz críticas à base comum curricular.
Cabe ressaltar que por razões distintas postergar a alfabetização nos termos colocados é negligenciar uma demanda legítima por parte da classe trabalhadora. Especialistas na área defendem a difusão do letramento que prevê o uso social da língua (da leitura e da escrita) em oposição ao método fônico (reducionista). Contudo, o Secretário de alfabetização do MEC, Carlos Nadalim, afirma ser o letramento o grande vilão da alfabetização. O discurso do ministro vai ao encontro da rejeição das concepções críticas do processo de ensino e aprendizagem, pois o pensamento crítico é capaz de trazer à tona, no ambiente educacional, conflitos de várias ordens.
O SAEB também trará um questionário a ser respondido pelos profissionais das creches e pré-escolas. Não há outra análise a ser feita senão dizer que o objetivo central é entregar todo o percurso da educação básica à iniciativa privada. Os governos subservientes ao capital não toleram um Estado comprometido com as causas sociais e as avaliações externas precisam ressoar o discurso hegemônico de enfraquecimento da escola pública para assim expô-la como um lugar de péssima qualidade (vide alinhamento entre qualidade e mercado promovido pelos intelectuais defensores das reformas educacionais em voga) e como um espaço inapropriado rumo à construção de indivíduos tidos como empreendedores em potencial. Ademais, a Educação Infantil configura-se como um lucrativo mercado ainda a ser explorado economicamente.
Contudo, é justamente no terreno da disputa por narrativas que se faz presente o protagonismo de professores, alunos, ativistas políticos, mídia alternativa etc. Existe uma guerra (em constante movimento) travada no seio da sociedade civil e no aparelho de Estado, pois a natureza do conflito no momento atual é de ordem hegemônica. No campo da moralização política, tem-se então o autoritarismo como forma de governo encampado pela figura de Bolsonaro, cerceando a liberdade por meio de uma pauta regressiva que visa à desaceleração da resistência social e à deformação da juventude.
No bojo das políticas educacionais, a formação de professores ganha contornos ainda mais constrangedores com a formulação de uma Base Comum Curricular da Formação de Professores (BNCFP). O documento, formulado na gestão do ex-presidente Michel Temer e encaminhada ao Conselho Nacional de Educação – CNE – em dezembro de 2018, retorna ao MEC por solicitação do Ministro da Educação Vélez Rodríguez (no cargo entre janeiro e março/2019), objetivando a revisão por parte da nova gestão.
No entanto, passados sete meses do governo Bolsonaro, ainda não houve nenhuma divulgação por parte do MEC sobre a revisão do documento, o que não significa seu abandono. Podemos estar ante um maior alinhamento entre políticas de avaliação e curriculares para professores e alunos, além é claro da elaboração de materiais didáticos que se configurem como modelos nas mãos de professores “bem treinados”.
No discurso das políticas educacionais, naturaliza-se que as Bases, uma voltada ao currículo da Educação Básica e outra à formação de professores, oferecerão o conjunto de conhecimentos requeridos pela sociedade em geral, como que atendendo uma agenda de todos. No entanto, essas Bases asseguram uma pauta permanente, investindo na formação do capital humano em conformidade com interesses da classe dominante. Assim, ao certificar o docente formado dentro desta lógica, que enaltece a “prática pela prática”, também a sala de aula será palco de uma reprodução de currículos voltados à manutenção de mão de obra para o mercado.
Esse documento defende a formação de professores em três dimensões: conhecimento profissional; prática profissional e engajamento profissional, além de vincular o currículo das licenciaturas (incluindo-se a Pedagogia) ao currículo presente na BNCC da Educação Básica, restringe possibilidades de formação plena. Ou seja, o futuro professor deverá aprender aquilo que será “passado” em sala de aula, desconsiderando saberes e demandas e contextos específicos porque presentes de diferentes formas nas escolas brasileiras.
A BNCFP reafirma assim o caráter reducionista e pragmatista cunhado nos processos formativos em todos os níveis de ensino. Nessa perspectiva, o documento se coloca contra o conhecimento científico sobre a formação de professores e sobre a escola básica brasileira, além do desprezo de propostas advindas de demandas formativas e da realidade concreta das escolas públicas em sua pluralidade de ideias, concepção pedagógica e da autonomia universitária.
Assim, entendemos que a construção de uma Base para formação de professores, ancorada em documentos que a antecedem: Diretrizes Curriculares Nacionais (2015), BNCC (2017), avaliações centralizadas, programas e ações supletivas do MEC, além de outros implementos pelos Estados e Municípios, intenciona “regular”, “conformar” e “formatar” a educação nacional nos moldes do grande capital. Nessa perspectiva, o discurso enaltece a educação como posição estratégica no desenvolvimento sustentável do país. Ou seja, trata-se da produção de um discurso que desqualifica a educação e, em especial, a formação e o trabalho do professor, pois desconsidera o saber científico sobre o tema, bem como de qualquer preocupação que leve em conta as condições de trabalho oferecidas aos estudantes e profissionais da educação.
Por isso, é fundamental questionar/problematizar políticas educacionais materializadas em documentos cujas proposições/programas/ações tem aprofundado a “dualidade educacional estrutural”, bem como restringido o acesso ao conhecimento historicamente acumulado, com reformas curriculares que varrem para fora as disciplinas não diretamente úteis ao mercado, conforme discutido no “Ato 2”.
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