Pular para o conteúdo
MUNDO

Quatro elementos sobre a situação atual de Hong Kong

Escrito por: Au Long Yu (chinês). Traduzido para o inglês por Felix Fong. Traduzido para o português por Marcio Musse

Não havia nada de novo na conferência de imprensa do Liaison Office (1) do dia 29 de julho. Este apenas repetiu a mesma mensagem da declaração emitida no dia 21 de julho – condenando os manifestantes e apoiando a administração de Carrie Lam. No entanto, os fatos que não são mencionadas pelo Liaison Office hoje é que são dignos desta nota. O movimento de oposição continuou aumentando suas ações na semana passada, mas o Liaison Office não mudou nada! O que dizer do Exército de Libertação do Povo (PLA) (2) ou de outros meios de dissuasão? Nenhum deles foi mencionado hoje.

Pequim conspira com o Reino Unido e os EUA

De um ponto de vista do pragmatismo, a utilização do PLA não é realmente necessária nesse momento. Atualmente, a intensidade da violência juvenil radical é desproporcionalmente baixa, e a polícia altamente militarizada de Hong Kong é capaz de lidar com isso com facilidade. No entanto, a decisão de Pequim de não usar meios de dissuasão é porque Pequim tem um objetivo de médio prazo diferente, a saber, continuar a usar Hong Kong como um importante meio de expansão global até o momento em que Xangai conseguir alcançar tal posição. A implantação do PLA nesta fase levaria a uma ruptura prematura entre Pequim e o Ocidente, o que dificultaria tal objetivo.

Pequim declara que a oposição em Hong Kong está em conluio com forças estrangeiras. Curiosamente, a implementação por Pequim da política  ‘um país, dois sistemas’ em Hong Kong sempre foi criticada pelos maoístas do continente como sendo de direita e pró-imperialista. Recentemente, o website do continente Hongqi (Bandeira Vermelha) publicou um artigo criticando a Lei Básica do Partido Comunista Chinês (PCCh) em Hong Kong por ser muito flexível para o Ocidente, especialmente a cláusula que permite ao Tribunal de Última Instância de Hong Kong (HKCFA) contratar juízes estrangeiros. Na opinião desses maoístas, isso é quase traidor. (3) De fato, o chamado “um país, dois sistemas” de Deng Xiaoping é menos uma promessa de conquistar os corações e mentes dos cidadãos comuns de Hong Kong – aos olhos de Pequim, essas pessoas nunca tiveram importância. O principal objetivo de Deng era justamente conspirar com as forças britânicas e americanas de modo a usar Hong Kong como uma alavanca não apenas para modernizar a China, mas também para direcioná-la para o capitalismo. É por isso que a Lei Básica permite, entre todas as promessas da autonomia de Hong Kong, contratar juízes britânicos e australianos – não apenas porque Hong Kong é “a galinha dos ovos de ouro”, mas também porque manter o sistema antigo inalterado é condizente à política de Pequim de se comprometer com o Ocidente em relação a Hong Kong para ajudar a sua própria “Reforma e Abertura”. Foi por isso que o PCCh firmou um compromisso histórico com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos.

Além das razões mencionadas acima, há mais um fator em ação por trás da política de Pequim em relação a Hong Kong. O Reino Unido governou Hong Kong por quase 150 anos, enquanto a América começou a exercer sua influência em Hong Kong após a Segunda Guerra Mundial. Portanto, Hong Kong não é apenas um lugar onde o Ocidente tem interesses, mas também um lugar completamente permeado pelas presenças britânicas e americanas. Quantas evidências da corrupção de altos funcionários do PCCh foram obtidas pela Comissão Independente Contra a Corrupção (ICAC) de Hong Kong? E quanto foi obtido pelas agências de inteligência europeias e americanas? Quantos servidores públicos de alto escalão preferem, política e culturalmente, a instituição britânica (mesmo que apenas colonial) sobre o regime do PCCh? Essas considerações fazem com que Pequim opte por agir com cautela em Hong Kong. Infelizmente, os editores do Bandeira Vermelha do continente não conseguem entender o dilema dos líderes do PCCh.

O exemplo mais recente de conluio entre Pequim e os EUA foi relatado pela Reuters – o comandante da guarnição do PLA de Hong Kong garantiu, de forma proativa, a um alto funcionário do Pentágono que o PLA não iria interferir nos assuntos de Hong Kong. Por que Pequim precisa divulgar seus segredos militares aos imperialistas americanos? É porque atualmente Pequim não tem boas cartas nas mãos, mesmo que queira jogar o jogo da competição hegemônica com os EUA. Ficou provado que Xi Jinping se superestimou e, como resultado, a China acabou sendo a mais prejudicada na atual competição sino-americana, especialmente após o início da guerra comercial.

Conspiração secreta para tomar o poder é exposta

Pequim também tem um truque melhor do que usar o PLA. Isto é, para continuar a permitir que o Liaison Office tome o poder do Governo da Região Administrativa Especial de Hong Kong. Sob a liderança do Liaison Office (ou do Comité de Trabalho de Hong Kong-Macau), existem dezenas de milhares de membros do PCCh (estimativas são de 80.000 a 350.000  (4)]) e dezenas de milhares de espiões, informantes, mafiosos e aliados (sob o seu ‘trabalho de frente única’) que se submeteram ao PCCh. Deve haver muitos outros funcionários do governo de Hong Kong que também se tornaram agentes da PCCh. O plano de Pequim é esvaziar o governo de Hong Kong e transformá-lo em um fantoche. Acha que esse truque pode enganar o povo de Hong Kong e os estrangeiros. Embora este truque seja jogado secretamente, ocasionalmente ainda podemos observar alguns pequenos sinais. Em 2016, por exemplo, o ICAC (5) viveu uma grande mudança em sua direção e alguns altos funcionários se demitiram.

O atual movimento anti-extradição é também um espelho revelador de monstros, que permite a todos verem a mão negra do Liaison Office e como este comanda diretamente a polícia de Hong Kong e a máfia local. Pequim acredita que, enquanto controlar Hong Kong secretamente, a oposição se dissipará gradualmente. No entanto, não esperava que essa conspiração também pudesse se tornar a fonte do caos: embora o Liaison Office tenha o poder de fato sem assumir qualquer responsabilidade, a administração de Carrie Lam precisa assumir todas as responsabilidades, mas não tem o poder de fato. Nas cidades chinesas, o mesmo tipo de relacionamento define o secretário do partido e o prefeito, embora dentro de um contexto muito diferente. Mas isso não pode funcionar em Hong Kong, onde existe liberdade de imprensa. O que aconteceu com Carrie Lam nos últimos meses é uma prova – como chefe do governo da SAR (Região Administrativa Especial), ela cometeu tantas gafes e se tornou motivo de chacota, o que lhe custou toda a credibilidade e legitimidade para governar.

Isso nos leva a um segundo ponto: o festival de fantoches do Liaison Office finalmente motivou um grande número de funcionários do governo a se levantar e a lutar, na retaguarda da revolta das massas. Até agora, funcionários públicos de 44 departamentos governamentais, incluindo mais de 100 da hierarquia mais graduada (grau de Diretores Administrativos), criticaram Carrie Lam por seu abandono de função. Essas pessoas já devem estar cientes de como o Liaison Office permeia o governo de Hong Kong.

Hong Kong é pequeno, mas tem muito potencial

O segundo ponto nos leva ao terceiro ponto: os atos rebeldes dos funcionários públicos encorajam ainda mais o movimento popular, agora atingindo do nível mais baixo aos níveis médio e superior da sociedade. A manifestação de 27 de julho em Yuen Long foi outro marco da desobediência civil – mais de 200.000 pessoas ignoraram a proibição da polícia, quando o movimento deu mais um passo em direção a uma revolta. Uma situação semelhante ocorreu no dia seguinte na ilha de Hong Kong. Quando a maioria dos cidadãos pró-democracia decidem deixar de apenas apoiar as ações da juventude radical contra a polícia para juntar-se a eles, o momento da revolta pode chegar. Esta transição para a próxima fase não é fácil para a maioria das pessoas, porque todos sabem que um grupo de tigres selvagens em Pequim está a observá-los. Hong Kong é pequena demais para ser capaz de derrubar o governo da SAR, afinal de contas.

No entanto, a sutileza da questão é que há mais de um tigre em Pequim. É por isso que eu digo “um grupo de tigres”. Não importa o quão poderoso seja Xi, as outras facções do PCCh ainda estão lutando contra ele no escuro. Como resultado, apesar de ser pequena, Hong Kong tornou-se palco de um grande jogo que vale muito a pena assistir.

A quarta característica da situação atual é que ela expõe todos os múltiplos jogadores que estão participando neste jogo simultaneamente. Além do povo de Hong Kong que está lutando contra o fantoche de Pequim, há a Grã-Bretanha, a União Européia, o governo de Hong Kong, o Liaison Office, todas as entidades políticas e econômicas do continente que têm interesses diretos ou indiretos em Hong Kong. e as distintas frações, adversárias, na cúpula do PCCh. Ainda é cedo para prever o vencedor. Embora Hong Kong seja pequena, está em uma posição muito especial, que possui um potencial único interno e externo, que as cidades comuns não tem. Se alguém souber como usar essa influência, é possível gerar um grande terremoto.

29 de julho de 2019

 

 

NOTAS

Nota do autor: Este ensaio é uma versão ligeiramente editada de seu original chinês, publicado no Taiwan Apple Daily.

1 –  Órgão oficial do governo chinês na administração local de Hong Kong

2 – Forças armadas do governo da China

3 – http://www.hongqi.tv/mzdxueyuan/2019-07-17/15772.html

4 – 中共在香港》,江關生,天地出版社,香港,2012,下卷,326頁。

5 – Comissão Independente Anti Corrupção de Hong Kong

Marcado como:
Hong Kong