Em defesa das causas perdidas: o direito de Cajueiro e a violência do mais forte


Publicado em: 15 de agosto de 2019

Brasil

Saulo Pinto Silva, de São Luis (MA)

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

Brasil

Saulo Pinto Silva, de São Luis (MA)

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

Compartilhe:

Ouça agora a Notícia:

Eles alegam que reagiram pela violência da população: quando na verdade, não podemos esquecer os cartazes que carregam antes da ‘violência’

Há uma lição filosófica antiga, indicada por Henry Thoreau, que diz que o direito básico daqueles que são oprimidos é lutar contra leis injustas. O paradoxo é o próprio problema: como podemos cumprir leis injustas, quando a lei e o direito se dividem aqui? A questão dramática é que a lei se purifica na neutralidade axiológica cínica e o direito sacrossanto opõe o direito dos mais fracos ao direito dos poderosos. Como se sabe, a força define. 

O embaraço na situação da comunidade do Cajueiro – localizada na zona rural de São Luís/Ma – é que o governo Flávio Dino revela, de um lado, sua impotência (e escolha) política diante dos interesses do socialismo capitalista chinês e, por outro, a banalização da “terapia de choque” contra os oprimidos. A esquerda não pode oferecer o poder estatal autoritário-burocrático como alternativa à violência do capitalismo privado de mercado. A experiência com o “socialismo real” já fora feita e, sua tragédia subjacente, é que precisa ser pensada como um retumbante fracasso. O que a China faz hoje é combinar o que de pior há no capitalismo e no socialismo: capitalismo liberal predatório e autoritarismo violento socialista. Não é estranho que, para remover uma pequena comunidade secular de pescadores, o governo do Maranhão se valha do “choque de capitalismo” liberal com o discurso de desenvolvimento, inclusão social e a miríade de geração de empregos etc., mas também o uso da violência legal para afligir uma comunidade desarmada e sem forças proporcionais de reação. Flávio Dino aqui foi leitor de Weber ao aplicar o monopólio da violência legítima do Estado contra uma população oprimida e vulnerável. Para ser um leitor de Marx e da ideia reguladora comunista, seria necessário sabotar a ingerência da repressão ilegítima do Estado em razão do direito dos oprimidos.

A violência praticada contra a comunidade de Cajueiro não é apenas desmedida, como tem sido dito com alguma insistência, ela é truculenta e uma violência de classe. Num pêndulo entre a chantagem de stalinistas liberais chineses e uma pequena comunidade de pescadores, o governo do Maranhão não poderia titubear, ou melhor, deveria utilizar do seu poder discricionário oriundo do próprio sufrágio para proteger a comunidade vulnerável dos capangas e da empresa grileira em ofensiva contra esta população. Aqui temos supreendentemente uma renovação da soberania popular. Por mais estranho que pareça, Flávio Dino agiu aqui como um estadista neoliberal, quando toma a ideologia fatídica do “não posso fazer nada” diante dos interesses territoriais de acumulação por espoliação chinês, entregando o território, violando o direito dos oprimidos e submetendo-se politicamente aos interesses do capital chinês. É o que podemos chamar, na falta de melhor hipótese reguladora, de grilagem estatal. 

Assim, a cumplicidade está justamente no cumprimento de uma decisão judicial que, valendo-se do direito do mais forte, expropria centenas de pessoas de seu território. Alguém poderia alegar que se trata de poucas pessoas afetadas, e que os próprios acontecimentos históricos traduziriam as lembranças de ontem em esquecimento. O cumprimento da decisão judicial despolitiza o antagonismo fundamental e a tradução dele na forma do conflito justo. As lembranças da violência repressiva inculcam em esquecimento que o socialismo e comunismo são ideias reguladoras de uma vida superior, pautadas nos princípios da justiça, da igualdade, da solidariedade e da soberania popular.   

A lição que temos hoje é: quando entregamos os princípios coletivos da justiça dos oprimidos para a neutralidade cínica do direito e das leis, sobram a “normalidade” da violência legal e da repressão truculenta do direito do mais forte. Podemos discutir teorias e proposições políticas em torno de qual a melhor alternativa aos problemas que temos hoje. O que não podemos fazer é formular respostas como se fossem universais. Apenas os verdadeiros problemas são universais. Todas as respostas possíveis são particulares. O verdadeiro problema aqui no Maranhão hoje é o direito à vida e garantia da dignidade dos despossuídos, ou seja, é a luta contra a obscenidade do desigualitarismo. A inscrição da emancipação política dos oprimidos se mantém de maneira inegociável, isto é, “que ninguém será rejeitado”: um governo democrático de esquerda não pode produzir mais sofrimentos e humilhações. Em defesa das causas perdidas somente pode significar hoje, liberdade para Lula, mas também liberdade para o povo do Cajueiro. Uma liberdade particular não pode obliterar a opressão dos outros. A liberdade é uma razão universal, pois ela ou é para todos, ou não é para ninguém.    

 

*Saulo Pinto Silva é professor do Departamento de Economia da UFMA


Contribua com a Esquerda Online

Faça a sua contribuição