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BRASIL

Educação no governo Bolsonaro em seis atos. A universidade na mira do capital e do ódio ao conhecimento

Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação (COLEMARX)

A autonomia da universidade no Brasil é quase sempre desrespeitada pelos governos. Tal situação se dá pela fragilidade das bases de conformação da universidade pública no Brasil. Criada para forjar indivíduos capazes de governar, foi se adaptando às necessidades do desenvolvimento nos marcos das condições de capitalismo dependente, ou seja, de forma a permitir que o rumo de suas pesquisas e da formação ofertada estivesse de acordo com os interesses do capital. Tal quadro foi consolidado no período da ditadura empresarial-militar, momento em que a expansão dos cursos de pós-graduação  consolidou um robusto parque de pesquisa no país que, no entanto, devia atender aos projetos de desenvolvimento do governo. Para tanto, a cada Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) criado, era solicitado um Plano Nacional Brasileiro de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PBDCT) indicando que a produção científica e tecnológica, que sempre esteve em sua maior parte dentro das universidades públicas, deveria atender às demandas do desenvolvimento pensadas pelo governo, confirmando características heterônomas. Ainda assim, a universidade pública seguiu seu curso. E mesmo diante de imposições heterônomas, a universidade pública se espalhou pelo país, criando a possibilidade de formação em nível superior e se sustenta apesar dos ataques que vem sofrendo, em particular a partir da década de 1990, quando a política neoliberal se materializou como paradigma de governança e do exercício do poder. Um dos principais motivos que garante a existência da universidade pública e suas possibilidades científicas é o fato de ter sido considerada um investimento público e sustentada sobre o tripé ensino, pesquisa e extensão, o que permitiu a conformação de uma comunidade científica respeitada nacional e internacionalmente. 

Esta universidade se encontra hoje na mira de um governo que faz questão de demonstrar ódio ao conhecimento. Em seis meses de gestão, os dois ministros que ocuparam a cadeira da Educação demonstraram um profundo ressentimento por não terem conseguido compor a comunidade científica e culpam os demais por sua incapacidade, inclusive criando uma ideia de que toda a comunidade comungaria de algo definido por eles como “marxismo cultural”. O que se pode perceber é que os membros deste governo não conseguem respeitar a pesquisa realizada com rigor científico se ela não atender a seus desejos, como demonstrado no caso da demissão do presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

O presidente eleito e seus ministros não perdem oportunidade de desferir ataques morais à universidade e à sua comunidade. Inverdades, como a afirmação de que a universidade pública não produz pesquisa, só podem ser proferidas por quem não a conhece ou age por má-fé na tentativa de desmoralizar o ensino superior. Inquestionavelmente é a universidade pública a responsável pela produção de quase a totalidade da pesquisa realizada no país.

O atual ministro da Educação, Abraham Weintraub, definiu como “balbúrdia” o que se faz na universidade pública e foi seguido por uma campanha nos aplicativos de mensagens instantâneas com fotos que tentavam desmoralizar a universidade (fotos estas que sequer retratavam a universidade brasileira). Para complementar, o governo ainda anunciou sua intenção de deixar de investir nos cursos de ciências sociais e humanas por considerá-los irrelevantes para o país, já que não seria possível obter resultados que possam proporcionar produtos para o mercado, isto é, que possam gerar lucro com rapidez. 

Ainda durante o governo Temer, reitores foram perseguidos. No caso da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o processo resultou no suicídio do reitor e em um processo arquivado por não haver encontrado nenhum indício de irregularidade. O atual governo buscou dar um tom ainda mais perseguidor ameaçando os reitores com um “Lava Jato da Educação”. Por óbvio as redes de mensagens instantâneas atuaram divulgando falsas informações sobre enriquecimento ilícito de reitores.

No entanto, os ataques contra a universidade não foram só morais ou ameaçadores. O segundo ministro aliou a tentativa de desmoralização com um primeiro corte de verba, no início de maio. Foi suspenso o repasse de 30% das verbas discricionárias, que são as responsáveis pelo funcionamento estrutural das instalações e por uma parte da assistência estudantil. No fim do semestre foi anunciado mais um corte, agora de 348 milhões, situação que provavelmente irá inviabilizar o funcionamento de muitas universidades ainda em 2019.

A autonomia universitária também foi atacada. O governo determinou de forma unilateral a suspensão de gratificações de chefias técnicas. De valores mais baixos, estas gratificações complementam o salário de servidores que além de suas tarefas cotidianas assumem a coordenação de alguma setor administrativo ou acadêmico, o que por óbvio aumenta o seu trabalho. O governo também tomou pra si, retirando do poder das reitorias, a indicação das pró-reitorias que a partir de julho de 2019 deverão ser indicadas pela Casa Civil. Além de não respeitar o resultado das consultas e nem o resultado dos conselhos universitários, órgãos de poder máximo nas universidades, para definição de reitores em diversas universidades, o governo ainda indicou uma servidora da Agência Brasileira de Informação (Abin) para cargo comissionado de assessoria na reitoria da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). 

Os cortes se estenderam à pós-graduação. O edital de pesquisa da Chamada Universal do CNPq de 2018 já aprovado e que envolvia 2516 bolsas de várias modalidades, foi suspenso. A Capes teve 4.798 bolsas cortadas. As bolsas dos Programas de Excelência – Proex – foram reativadas e segue a ameaça de que bolsas para os programas 3 e 4 não serão distribuídas a partir do próximo ano, confirmando o critério meritocrático. 

A composição do Ministério, pelo menos na área do ensino superior, é um importante indicador do interesse pela a educação pública. O ministro é economista e sua principal atuação foi no mercado financeiro. O chefe da Secretaria de Educação Superior – Sesu -,  Arnaldo Barbosa Lima Junior, também economista, foi diretor de Seguridade da Fundação de Previdência Complementar dos servidores federais – Funpreap-exe. E o responsável pela Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior – Seres -, teve a sua formação e a sua atuação profissional realizada no setor privado da educação no interior de São Paulo, mas é o único que tem alguma experiencia no setor, já que foi diretor do Desenvolvimento da Educação em Saúde da Sesu -, entre 2016 e 2018. Os atuais presidentes do CNPq, da Capes e da Finep vieram de  instituições militares. 

Para fechar o semestre, durante o recesso do meio do ano, o governo lança a proposta mais aterrorizante para as universidades públicas, o Future-se. A proposta, apresentada com ares pirotécnicos que pareciam mal inspirados em Steve Jobs em suas apresentações de novos produtos da maçã estadunidense, altera profundamente a estrutura da universidade pública. Sua elaboração ignorou os setores representativos da gestão e da ciência, assim como da comunidade universitária. A Andifes, entidade representativa dos gestores das universidades públicas, o Andes-SN e Fasubra e a UNE, entidades que representam os docentes e técnicos e estudantes, e as entidades representativas da comunidade científica, como a SBPC e a ABC, não foram participadas da proposta antes de sua apresentação pública.

A proposta gesta um futuro trágico para as universidades públicas. Um patrimônio construído com investimento financeiro e científico durante mais de 100 anos está ameaçado em se transformar num produtor de inovação para empresas em troca de recursos para o seu sustento. Por óbvio, o processo de aproximação entre a universidade e a empresa não começou agora. O modelo implantado durante os governos do PT criou um novo padrão no financiamento e, por conseguinte, um padrão da pesquisa realizada nas universidades. O par ciência e tecnologia foi sendo substituído pela tríade pesquisa, desenvolvimento e inovação, tarefa que deveria ser desenvolvida nos centros de pesquisas de empresas se, no Brasil, a burguesia se importasse em investir na construção de um parque de pesquisa próprio.  

O Future-se pode ser visto como o somatório dos anseios neoliberais de retirar a responsabilidade do Estado para com a universidade pública, transformando ciência e tecnologia em pesquisa, desenvolvimento e inovação e estimulando, desta forma, a captação de recursos a partir desta transformação. É muito preocupante que esta proposta surja no momento em que a universidade se encontra em situação bastante precária por conta da  Emenda Constitucional 95, dos cortes já aplicados e sendo vítima do ressentimento de membros do governo e da disseminação do ódio ao conhecimento. 

Decerto o empresariado sabe que não haverá resistência de nenhum setor deste governo para o seu intuito de abocanhar o fundo público. O programa do governo para as universidades prevê que haja investimentos de aportes do MEC, de renda conseguida com aluguel e venda de imóveis públicos, da captação de recurso por meio da venda de serviços para empresas em fundos de investimentos, que terão organizações sociais no comitê gestor dos fundos. 

Vale lembrar que gerir a universidade por meio de organização social não é uma ideia nova, tendo sido apresentada pela primeira na contrarreforma do Estado no governo de Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990, e foi arquivada em função da resistência de seus servidores (técnicos e docentes) e estudantes. No entanto, as políticas neoliberais elaboradas procuram flexibilizá-la, incutindo a ideia na comunidade acadêmica e na sociedade em geral da necessidade de diversificação das fontes de investimentos, buscando formas de aproximação com o setor privado e facilitando, assim, a sua expansão no ensino superior por meio do financiamento das pesquisas.

Neste momento, está em curso um violento desmonte do Estado. A ganância do capital intenciona abocanhar todo o patrimônio do Estado por meio da compra direta por preço irrisórios, como foi o caso da BR Distribuidora ou da usurpação do fundo público. A população é convencida de que não tem nada a ver com isso. Não é à toa que no Future-se foi retirado de pauta, momentaneamente, o pagamento de mensalidades, tentando abstrair a concretude da relação direta da privatização. 

O governo de Bolsonaro está numa cruzada contra direitos e determinado a entregar o patrimônio público ao capital. De fato, estas políticas não se tratam inteiramente de uma novidade. A opção por uma parceria subordinada feita, desde sempre, pelas frações burguesas locais condena o país a uma corrosão crônica das possibilidade de um projeto autônomo de desenvolvimento. Calcados nesta parceria, nenhum projeto de desenvolvimento pode mobilizar os recursos naturais e humanos de forma a proporcionar descobertas cientificas e tecnológicas que atuem no sentido de superar os problemas a que os povos estão submetidos.  Este contexto impõe que a produção científica esteja atenta a atender as demandas do mercado e para tanto as políticas aplicadas devem, a depender do grau de interesse do capital, aplicar medidas que potencializem a exploração e a dependência.  

Sem dúvida este governo está empenhado em manter e ampliar a dependência e a exploração dos trabalhadores. As frações burguesas locais não têm nenhum interesse em que o seu capital gere desenvolvimento no país. Os setores mais interessados em negociar com o governo são os representantes do capital financeiro e o que lhes interessa é abocanhar o fundo público.

A universidade pública é o espaço de construção do conhecimento. Independente de vontades alheias, permite a crítica e, por este motivo, se torna um empecilho para o avanço de projetos entreguistas e fundamentalistas. O ódio ao conhecimento e a ganância do capital puseram a universidade em sua mira. Seguramente o projeto de destruição da universidade pública encontrará resistência. Mas, é necessário definir o inimigo para usar as armas corretas nesta luta. Este governo que destila ódio ao conhecimento, que entrega as riquezas do país ao capital, atua numa cruzada conservadora aliado a setores neopentecostais que estimulam o fundamentalismo e têm recrutado um exército para difundir inverdades, por meio de mensagens instantâneas, e aterrorizar os que pensam diferentes. De nosso lado é preciso entender o que está em jogo, os nossos direitos compõem um cardápio de interesse do capital, assim como o patrimônio estatal e nossa liberdade.