Um velho provérbio popular eternizado no samba de Martinho da Vila diz que “sol e chuva é casamento de viuva”. Por volta das oito horas da manhã, tomava um café preto e do lado de fora de casa o sol já esquentava, mas ao mesmo tempo, o céu derramava um pouco de água. Era uma manhã de viúva, como costuma dizer minha mãe.
No celular, para acompanhar o café, tocava Quem mora lá?, do pernambucano Diomedes Chinaski. O tom de certa forma sombrio, melancólico e angustiante da música, assim como sua letra que diz: “Péssimo emocionalmente, vendo fantasmas normalmente, pensamentos suicidas naturalmente”, me lembrou de uma conversa que tive no dia anterior durante uma reunião sobre políticas de segurança pública. O tema era o suicídio de jovens negros.
Naquela manhã de viúva fiquei a pensar sobre um tipo de violência silenciosa e muitas vezes invisibilizada. É um fato que no Brasil a juventude negra é a maior vítima da violência. A cada 100 assassinatos, 73 são de pessoas negras. Um número assustador, um verdadeiro genocídio. Mas além desta violência, existe outra realidade igualmente assustadora sobre a morte de jovens negros no nosso país.
De 2012 a 2016 o número de suicídio entre crianças e jovens negros de 10 a 29 anos aumentou 12%, sendo a terceira causa de morte nessa faixa etária atrás da violência e dos acidentes de trânsito. São 5,8 jovens negros que tiram suas vidas a cada 100 mil. Em comparação, no mesmo período em que o indício de suicídio entre os jovens negros aumentou, entre os brancos da mesma faixa etária diminuiu.
Esta dura realidade foi apresentada ano passado pelo Ministério da Saúde, por meio da cartilha Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros, que utilizou o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), para obter os números.
O estudo mostrou também que entre os jovens do sexo masculino negros a chance de tirarem suas vidas é 60% maior que entre os jovens brancos.
O Ministério da Saúde aponta que o racismo é um dos principais motivos deste números. A cartilha afirma que “o racismo causa impactos danosos que afetam significativamente os níveis psicológicos e psicossociais de qualquer pessoa e pode levar a diversas consequências, inclusive às práticas de suicídio”.
O racismo afeta a vida de uma pessoa de muitas formas. Desde o sentimento de não pertencimento, de exclusão, de não aceitação de si, além questões como a discriminação aberta e a invisibilidade social. Não é de se surpreender com o fato de muitos jovens negros se sentirem inferiores e incapazes desde questões básicas a mais amplas do cotidiano. Este jovem negro, que passa a construir sua própria identidade durante aquela faixa etária da vida, muitas vezes a constrói a partir de um entendimento de que ser negro é ser feio, inferior, menos valorizado, e isto se reflete em momentos diversos do restante da vida desse jovem. A identidade e percepção que cria sobre si faz com que esse jovem tenha um processo de sofrimento e de adoecimento muito maior, podendo chegar a cometer o suicídio.
Meus demônios ganharam hoje. Me desculpe
Neusa Santos, ativista anti-racista e autora de Tornar-se Negro suicidou-se aos 23 anos. Ela deixou somente um bilhete escrito: “Meus demônios ganharam hoje. Me desculpe”.
A dor que muitas vezes não aguentamos se mistura com a dor que sentimos por estarmos decepcionando outras pessoas. Pedimos desculpas por não aguentar essa dor, nos culpamos por senti-la. A morte de Neusa nos faz refletir sobre o mito de que os “negros precisam ser fortes e são sempre resistência”.
Este é somente mais uma das figurinhas que nós negros carregamos ao longo da vida. Somos fortes, resistimos ao longo dos anos. E e ser forte, na vida de muitos significa não ceder, esconder a dor e tapas as feridas. Ser forte é se mostrar bem quando às vezes só se quer esconder e pedir colo, ser forte para muitos é não chorar. E tudo isto nos faz extremamente mal.
Na maioria das vezes, eu pelo menos, me sinto culpado por estar chorando. O sentimento de falha vem junto com de fraqueza por estar cedendo quando a crise de ansiedade toma conta. É um sentimento sufocante. Ao longo da vida aprendemos que deveria guardar todas as mágoas, esconder as dores e agonias, e deixar quieto para ver o que acontece. Normalmente elas crescem e crescem, passam a dominar. Acredito que assim como eu outros jovens negros também tenham de medo de falar sobre suas dores e de expor.
O cansaço constante, a fadiga, a apatia, o esgotamento que toma conta do corpo, as lágrimas que caem escondida, o medo de sair de casa e encarar o mundo fora da cama, são coisa que infelizmente são cada vez mais comuns nas nossas vidas. Um eterno desamparo, uma perturbação ininterrupta, uma dor momentaneamente duradoura, passam a fazer parte do dia a dia.
Noites sem dormir. Choro aparentemente sem motivo. Falta de apetite. E novamente o cansaço. A sensação de culpa por se sentir cansado, por dormir demais, por não ser ativo. A sensação de culpa por se sentir mal com qualquer atitude mais ríspida de outra pessoa, qualquer coisa que dê errado, por errar demais, por não ser forte o suficiente.
Entre as diversas facetas que o racismo atua na nossa vida, uma das mais esquecidas e negligenciadas é no campo afetivo. Falamos sobre educação, violência, salários, representatividade, e esquecemos o quão o racismo atinge nossa afetividade. E é nela que muitas vivências do racismo, assim como toda estrutura racista da sociedade afetam nossa saúde mental num aprisionamento silencioso. Não falamos de nossas dores, não nos sentimos confortáveis para tal, pois afinal temos que ser “fortes” e “resistentes”.
É preciso reforçar, que no Brasil o racismo nos mata de muitas formas, e a violência racista nos atinge em diversos momentos. Seja quando nossa voz é silenciada, quando nos é ensinado a não falar sobre o que dói, e a esconder nossas feridas, a guardar nossos sentimentos e nos autoflagelar.
Mas se a minha dor enquanto indivíduo é também a “nossa dor” enquanto grupo social, já que muito dela é fruto de algo comum, como essa estrutura racista, a melhor solução para enfrentarmos essa dor, que é “tão minha” mas ao mesmo tempo “tão nossa”, é o compartilhamento. Nada que é coletivo pode ser tratado como meramente individual. Nós jovens negros temos problemas parecidos, porque temos muitas semelhanças em comum, em nossas vidas, em nosso passado, em nossa pele e em nossas dores. A melhor opção para lidar com esta última é dividi-la, para nos fortalecermos.
O mundo sem arte é mudo, a arte transforma o mundo
Felizmente tem sido possível ver nos últimos anos o crescimento de importantes figuras que servem como referências para adolescentes e jovens negros falarem sobre depressão e temas como suicídio.
O rapper baiano Baco Exu do Blues, em sua música En Tu Mira fala da relação dele com a depressão. O já citado Chinaski trata da questão em diversas e suas músicas, entre elas em Cancer. Outro que fala sobre o tema é Raffa Moreira em Print. Alguns como MC PK e Dj Caique já trataram do tema em entrevistas.
O rap de certa forma sempre tocou no tema da depressão e suicídio. Notorious B.I.G um dos maiores rappers de todos os tempos, escreveu Suicideal Thougths (Pensamentos suicidas em português). A letra da música é extremamente forte, nela BIG conversa com um amigo sobre os problemas da vida e sua vontade de se matar, mas ao mesmo tempo que suas falas são um pedido de socorro para o amigo do outro lado do telefonema.
O grupo Racionais Mc´s, talvez o maior precursor do ritmo no Brasil, tratou sobre temas como depressão e angústias que decorrem a vida dos moradores da periferia em diversas de suas letras. Seja em Mágico de Oz, ou em Fórmula Mágica da Paz, ou em Jesus Chorou, entre outras, o grupo tratou do tema direta ou indiretamente.
O rap, e o hip hop, assim como a música e a arte no geral, são importantes meios que jovens negros da periferia encontram para expressar suas dores e lamentações.
O racismo e as necessidades de políticas públicas
É preciso pensar como o poder público, nas mais diversas esferas, assim como nós, ativistas anticapitalistas e socialistas, podemos intervir nesse quadro.
É preciso combinar políticas públicas de combate ao racismo, como ações afirmativas, além da valorização, apoio e visibilidade de projetos culturais e sociais que buscam intervir na vida do jovem negro. É crucial que as nós tenhamos desde a infância acesso a referências positivas sobre nossa história, sobre nossos antepassados. Isto ajuda na construção de nossa identidade. Passamos a ver o local de onde vimos com outro olhar. Sentir prazer e orgulho por ser quem é pode ser um importante aliado na luta contra o racismo. O jovem negro precisa sentir pertencimento e ter referências negras como forma de auto-afirmação.
Além destas políticas públicas outras medidas precisam ser efetuadas, como uma verdadeira democratização da comunicação, pondo fim dos oligopólios midiáticos, e fortalecendo as TV´s e rádios comunitários. A melhoria do sistema de ensino, com a escola sendo um lugar da realização do pensamento crítico e que permita a implementação de programas de cultura nas escolas.
No fim, estes avanços só serão possíveis com uma série medidas estruturais no campo de um capitalismo periférico como o brasileiro, precisam ser tomadas. A luta contra o racismo para ser vitoriosa, precisa ser uma luta contra o capitalismo.
As nossas vidas importam. O primeiro passo para tentar lidar com isso é assumir que nossa saúde mental é importante e que muitos de nós temos que aprender a lidar diariamente com a depressão. Precisamos nos permitir a ser fracos, buscar ajuda profissional e apoiar uns aos outros, e no fim, vencer.
Existem dias que apenas sobreviveremos, em outros que realmente conseguimos viver. Existirão dias viúva, dias de sol, dias de tempestades, e dias nublado. E no fim de todos estes, nosso objetivo é dizer que vencemos e vivemos.
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