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BRASIL

Poderes em choque? As afinidades eletivas entre Executivo e Congresso

Faíscas entre Maia e Bolsonaro desviam o olhar de um grande acordo institucional

Gustavo Rotte, de São Paulo (SP)
Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, durante votação da reforma da Previdência.

Há um certo tempo, ao menos a partir da queda de braço que começou com as negociações da Reforma da Previdência, temos escutado movimentos ruidosos que levam invariavelmente à caracterização de uma crise institucional.

Por um lado, Rodrigo Maia critica o corte na educação feito pelo ministro da pasta, Abraham Weintraub, diz que o governo é uma “usina de crises”; que não se preocupa com os mais pobres; critica posturas antidemocráticas do governo dizendo que “o setor privado não investe em ditaduras”; e, por fim, defende Glenn Greenwald das acusações e ameaças de Bolsonaro em nome da “liberdade de expressão”. Nesses casos e noutros, se porta, em nome do Câmara que dirige, como um defensor da sensatez, da liberdade e da democracia.

No outro espectro, Bolsonaro aprofunda como pode, nos limites dos instrumentos institucionais de que dispõe o Executivo, suas promessas ideológicas contra indígenas, educação, cultura, natureza, vítimas de tortura e todo o resto do seu rol de vítimas, presentes e futuras. O que mudou nos últimos dias foi a intensidade e a franqueza das declarações, que se coadunam com a destreza das ações retrógradas realizadas pelo governo. A um só tempo, ele louva a violência de Estado realizada pela ditadura e preenche a comissão de mortos e desaparecidos com militares reacionários. Do mesmo modo, nega o ataque às reservas indígenas ao mesmo passo que prepara a autorização para o garimpo em suas reservas.

Tudo isso dá mostras do atual estágio de consolidação das ideias e forças políticas do país. Em primeiro lugar, Bolsonaro declama verborragicamente as barbáries que legitimam a seus eleitores a institucionalização das ideias que serviram como suporte ideológico de campanha. Desse modo, a dinâmica que tinha tons de caos no início do governo, com idas e vindas de decisões e nomeações ao sabor da aprovação ou desaprovação das redes sociais, cedeu lugar a uma decisão absoluta, que diz e faz tudo o que quer até que seja limitado pelo que acabou se tornando um poder moderador, o STF. Em segundo lugar, o tribunal nunca teve tanta força na expressão de suas decisões para as direções do Estado, o que mostrou ao voltar atrás algumas medidas de Bolsonaro, como a mudança da Funai e a ameaça em revogar a portaria de Moro. Em terceiro, o Congresso aponta os dedos para as palavras feias de Bolsonaro em nome da proclamação de ideias das revoluções burguesas do séc. XVIII. Na comédia ideológica representada pelos poderes, cada um tem seu papel antagonista.

Seja como for, a convulsão institucional acima pode ser descrita como profunda crise institucional, uma cisão paralisante sem promessa de resolução. Isso seria verdade se não fosse algo nesse quadro que foge à moldura: a contrapelo das rusgas institucionais, a história é inteiramente outra, e um grande acordo institucional pragmático avança a pauta econômica.

O Congresso, que com Temer já havia aprovado a Reforma Trabalhista, agora aprova a Reforma da Previdência e, logo mais, será a vez da Reforma Tributária. De seu lado, o Executivo aprofunda paulatinamente a privatização de setores estratégicos da economia, como a privatização de distribuidoras e subsidiárias da Petrobrás e, recentemente, a possibilidade da privatização da própria Eletrobrás.

Por mais que se utilize do adiamento das reformas como ferramenta de poder, Maia sabe que não poderá prescindir delas. Tanto é assim que sua ameaça não é “não cumprirei o que Bolsonaro quer”, mas “cumprirei só quando eu quiser”. Bolsonaro, por outro lado, não se preocupa tanto quanto poderia em levar os louros pela reforma – sabe que afinal será aprovada e sabe que seus efeitos negativos podem recair sobre Maia sem problemas. Sob esse prisma, como diria o nosso excelente Roberto Schwarz, “sem prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de mãos dadas”. 

No fim, é como se houvesse uma divisão de tarefas com a qual se leva adiante o desmonte do Estado, cada qual segundo seu papel na divisão dos poderes. Assim, enquanto trocam farpas, a presidência se concentra em aprofundar a estrutura da dominação política e o legislativo leva adiante, sem ameaças, a dominação econômica.

Note-se que a própria figura de Guedes, a princípio um nome técnico para as ações econômicas, assume o lado do exagero ideológico nessa comédia. Publicamente, ele só aparece de quando em quando para sugerir as propostas mais delirantes de desregulamentação total da economia – tão radicais quanto impraticáveis, dada a relação de dependência entre capital e Estado. Nesse sentido, ele acaba se alinhando à alucinação bolsonarista.

Essa talvez seja a atual falsidade ideológica atual. Não a de Bolsonaro, que defende claramente o que pensa, sem precisar se referir à noção alguma de direitos; também não a falsidade cínica do Congresso, que, se tropeça nos obstáculos do liberalismo clássico citados acima, é pela razão única da conjuntura política que favorece um projeto de poder que se fantasie desse discurso. A falsidade ideológica do nosso presente está na aparente oposição entre esses polos, uma contradição aparente que impede que se identifique, ao fim e ao cabo, o nexo causal entre opressão, exploração e capital.

Assim, o capital se reproduz sem a perda de se associar diretamente à figura de Bolsonaro enquanto este reafirma as bases de dominação essenciais para seu sistema econômico, bases que parecem a uma leitura superficial motivos extra-econômicos ou “simplesmente identitários”. Se o pano de fundo da história do Brasil é o modo de produção baseado na escravidão de negros e indígenas, e, se, nesse processo, se cristalizou desde a colônia uma estrutura social patriarcal e patrimonialista que tem como pré-condição a reprodução social por meio do trabalho – doméstico e/ou precário e/ou informal – da mulher, os passos dados pelo Legislativo e Executivo parecem levar ao mesmo lugar. Não à toa, uma das alas fortes do Congresso que conduziu a Casa do impeachment até aqui é a bancada Bala, Bíblia e Boi (BBB) – eles têm clareza de seus interesses.

Com a fala de um verdadeiro representante do capital, as máscaras dão lugar ao sorriso frio, anticínico, do verdadeiro realismo. Ao comentar o elevado nível de desemprego, o presidente do Itaú Unibanco, Candido Bracher, afirma: “Isso deixa a situação macroeconômica do Brasil tão boa quanto nunca vi na minha carreira (…). Tudo isso que me faz ser otimista no curto e médio prazo”.