“Que os sentimentais se lamentem e deem os seus gemidos: mais conflitos! Mais diferenças internas! Ainda mais polêmicas! Nós responderemos: jamais se formou uma social-democracia revolucionária sem o contínuo surgimento de novas lutas.”
Lenin
O incômodo na esquerda causado pelo texto anterior foi bem maior que eu esperava. Apesar de eu ter exposto várias diferenças entre stalinismo e nazismo, muitas pessoas afirmaram que eu os igualei. Isso mostra que o debate está anuviado. Escrevo este primeiro texto na tentativa de deixar o debate mais nítido, desfazer algumas confusões (não todas, são muitas), apresentar fatos e argumentos e reafirmar que o regime stalinista foi uma ditadura sanguinária.
Este texto não se dirige aos stalinistas fanáticos, mas aos marxistas das várias matizes que negam o caráter ditatorial do regime stalinista. Denomino-os, sem intenção de ofender, de negacionistas. Sei que muitos destes odeiam Trotsky. Muitas vezes seu nome é trazido à discussão por quem busca se esquivar da questão central: o regime stalinista. Por isso, não citarei seu nome exceto para criticá-lo.
Quem quer criminalizar quem?
Ao contrário de acusações feitas, sou terminantemente contrária a qualquer criminalização do stalinismo. O stalinismo é que defende a criminalização de quem pensa diferente, não eu. Sou, sim, a favor da criminalização de discursos de ódio, de apologia à violência e de ameaça. Isso é muito diferente de defender qualquer ponto de vista, por mais estúpido que ele seja. Defenderei a liberdade de expressão até a morte, afinal, é sobre isso que estamos falando.
A quem apenas acredita em algo que considero equivocado, a única “punição” que ofereço são meus contra-argumentos.
Nem fatos, nem boatos
Quando os negacionistas respondem a versão liberal mais tacanha, aquela das propagandas dos EUA na Guerra Fria, os fatos estão do lado dos primeiros. Os exageros, os números absurdos e a ausência de evidências para sustentar as alegações anticomunistas mais estereotipadas convencem apenas pessoas desinformadas, sem a cultura do ceticismo e da crítica.
Agora, geralmente, quando posta a questão se o regime stalinista cometeu graves crimes contra a humanidade, negacionistas se veem incapazes de responder essa pergunta. Se apresentam qualquer versão dos fatos com base em estudos históricos, ela os trai. Se apresentam boatos, é fácil contestar com fontes sérias. Solução: abandonam o materialismo. A discussão fica no abstrato. Muitos rodeios, várias manobras, as linguiças são enchidas até estourar.
Justiça seja feita: a arte de tergiversar não é exclusiva deles.
Karl Marx dizia que é preciso partir da Terra para ir aos Céus. Nessas discussões, parte-se dos Céus para ficar nos Céus, é tanta nuvem que fica difícil enxergar um pedaço de chão.
Anti-stalinismo = anticomunismo
O argumento nas nuvens mais utilizado é igualar a caracterização do regime como ditadura com a ideologia anticomunista. Ainda que você defenda a Revolução Russa, eles distorcem seus argumentos para colocá-los no mesmo nível do anticomunismo mais tacanho.
Justiça seja novamente feita: a arte de colocar todos os adversários “no mesmo saco” não é exclusiva deles.
Ora, se rejeitar o stalinismo é igual a rejeitar o comunismo, então stalinismo é a única forma de comunismo. A maioria dos negacionistas não afirmam isso, mas é um pressuposto deste argumento, uma alienação. Isso remete à ideologia criada pelo próprio stalinismo de que este não existe, apenas o “marxismo-leninismo”. Convenhamos, este foi também um erro de Trotsky, que negou a existência do trotskismo.
Essa ideologia bizarra transforma Lenin num semideus e suas ideias numa Bíblia. Não podemos revisar absolutamente nada? Engraçado: em vida, todos os bolcheviques discordaram dele e, na morte, ficaram disputando quem era o “leninista autêntico”.
Nem mesmo a aplicação das ideias de Lenin pode ser feita sem uma interpretação delas. O mundo se transforma a todo momento e mesmo os eventos que se repetem como farsa são muito distintos da tragédia original. É muita arrogância alguém afirmar que sua interpretação é “legítima”, ou seja, é igual à que Marx ou Lenin faria. Também é oportunista: Lenin, de seu sarcófago, não pode confirmar nem refutar.
Em nome do Pailetariado
“Porque nós já provamos que socialismo, trocadilho e liberdade podem conviver.”
Marcelo Adnet imitando Guilherme Boulos.
Alguns negacionistas argumentam que Stalin acreditava estar defendendo o proletariado. Como se os ditadores da realidade fossem iguais os estereótipos que vemos nos filmes: aquele vilão que quer poder, dinheiro e faz tudo pelo próprio interesse. Estudar o que Stalin pensava sobre seus atos é interessante para psicólogos e psicanalistas. O que isso tem a ver com este debate? Bem, não sei.
Vejam essa argumentação de Paulo Leminski:
“Stalin, até o fim, levou a vida ascética dos Bolcheviques. Nunca sentou num trono, nem usava coroa. Sempre se vestiu com sobriedade monacal, militar. E, se teve prazeres, foram os prazeres do exercício do poder quase ilimitado. Mas sempre exerceu esse poder em nome de uma ideia, a construção de uma sociedade que seria, intrinsecamente, melhor do que o inferno da mais-valia do mundo capitalista que cercava a Rússia, “fortaleza sitiada”, onde se forjava o novo homem, a nova sociedade, hoje, “a ditadura do proletariado”. Que o diga a extraordinária coerência de propósito dos trinta anos de sua tirania. Suas medidas eram rigorosamente pautadas por motivações ideológicas. Não mandou matar Bukhárin porque não gostava dele. Bukhárin representava a direita do partido. E perseguiu Trotsky implacavelmente, porque Trotsky liderava a “oposição à esquerda”. Não era um homem, nem o coração de uma ideia, mas o cérebro de uma máquina implacável, aquela máquina que Lenin e o próprio Trotsky tinham começado a montar, um dia.” (1)
Isso não importa, mas concordo que Stalin e muitos dos que o apoiaram estavam convencidos de que suas ações libertariam o proletariado. Penso que a certeza de estar certo é uma característica comum à maioria dos tiranos. Pessoas humildes costumam ter dúvidas.
Leio a citação acima como a descrição de um homem extremamente poderoso e fora de controle. Fiquei atônita pois, no livro em que encontrei esse trecho, ele é apresentado como uma “compreensiva apreciação” de Stalin. (Ahm?)
Parece que o livro veio de um mundo paralelo ou de uma história de ficção.
Nikolai Yezhov, outro “cérebro” de uma “máquina implacável”
O infame “braço de ferro de Stalin”, mesmo condenado à morte, também parecia bem convencido, até jurou lealdade a Stalin antes de ser executado. Yezhov, chefe da NKVD (a polícia política) perseguiu os suspeitos de serem oposição. Sob sua chefia ocorreu a mais sangrenta fase do Grande Expurgo, com centenas de milhares de mortes. Todos eram supostamente “trotskistas”. Derramou tanto sangue que a imagem do regime ficou manchada. Era necessário um boi de piranha.
Está disponível parte dos interrogatórios em russo (2) e traduzido em inglês (3) e o discurso final no julgamento, em inglês (4). Demorei a crer na veracidade dessas fontes, parecem extraídas de um filme. Outras, porém, confirmam vários fatos e, sinceramente, quase tudo que leio daquela época é tão estranho que parece ter sido inventado, especialmente os discursos oficiais. Como a citação do Leminski.
Nos últimos pedidos de Yezhov, o primeiro foi ter uma morte rápida e indolor. O quinto e último:
“Peço que Stalin seja informado que eu nunca, na minha vida, decepcionei politicamente o partido, de fato conheço milhares de pessoas que sabem da minha honestidade e modéstia. Peço que Stalin seja informado que tudo que aconteceu comigo foi simplesmente a confluência de circunstâncias e não podemos excluir a possibilidade de que os inimigos que eu negligenciei podem ter uma mãozinha nisso também. Contem a Stalin que eu devo morrer com seu nome em meus lábios.” (5)
O canalha morreu de joelhos! Confessou seus crimes sob a mesma tortura que ele aplicava em suas vítimas, jurou lealdade a Stalin e declarou que “negligenciou inimigos”, ou seja, deveria ter matado ainda mais!
Ele afirmou que confessou sob tortura. Ao ler os interrogatórios, não consigo tirar outra conclusão. Seus relatos são surreais. Trabalhou para a Polônia, para a Alemanha, juntou-se à Oposição dos Trabalhadores, sabotou o plano quinquenal, o partido, impediu pessoas de entrarem no partido, ocultou hostis, enviou para o exterior aquelas que poderiam se tornar espiões ou que não retornariam.
Às vezes, no meio de seu relato, o interrogador reclama que ele está mentindo, pois outra pessoa confessou outra coisa. Fico me imaginando nessa situação, tendo que inventar uma história maluca que se encaixe na loucura que outro desafortunado inventou para pôr fim ao sofrimento.
Outro fato pouco conhecido e muito ignorado é que, antes de ser preso, houve um “escândalo”: ele teve relações sexuais com outro homem. O ato é descrito nos interrogatórios, tanto pelo interrogador quanto por Yezhov, como “sodomia” (“muzhelozhstvom” — lê-se “mujelostva”, literalmente “marido falso”) e “pederastia” (“pederastii”).
Por esse “crime” (incluído no Código Penal de 1934) (6) ele seria condenado “apenas” à prisão, mas o “escândalo” também “manchou” sua imagem pública. Um belo bode expiatório.
Se ainda tiver estômago, veja este trecho:
“— E outra coisa. Por um longo tempo você tem escondido sua atração por homens, o que é chamado de sodomia [muzhelozhstvom]. Mas isso tornou-se público após você ter aceitado ter um vergonhoso caso com o cidadão V do Comissariado de Transporte Aquaviário, e antes disso, na presença de V, você se divertiu com a esposa dele numa cama. Você percebe a que nível você se rebaixou? Você é simplesmente um monstro, Yezhov, uma pessoa imunda e pervertida. Tenho nojo de olhar para você.
— Naquele dia, eu estava muito bêbado…
— O que é isso? Uma justificativa?
— Não, mas eu não me recordo de nada. […]
— Não estou interessado nisso. […] Você deve escrever detalhadamente quando se tornou homossexual e com quem você se envolveu nessa atividade imunda…”(7)
Sinto um embrulho no estômago.
No mundo stalinista, relações sexuais consentidas eram imundícies enquanto torturas e condenações à morte eram santas. O algoz que virou vítima disse: “matei foi pouco”. Ouço por aí, como se fosse piada: “Stalin matou foi pouco”. Surreal!
O regime stalinista não pode ser chamado de ditadura
Este argumento que li em vários comentários, de várias formas, parece querer mudar a natureza do regime mudando o rótulo dado a ele. Muitos marxistas diriam que esse é um raciocínio pós-moderno. Penso que não, isso é obscurantismo.
Em “A Revolução Russa”, Rosa Luxemburgo fez críticas aos bolcheviques que não se aplicavam naquele momento, ao menos em parte. Entretanto, no que diz respeito à questão da democracia, seu raciocínio é tão certeiro que previu o que ainda viria a acontecer, criticar erros que ainda estavam para serem cometidos. Veja:
“O que temos em nosso programa são apenas alguns grandes marcos orientadores que indicam a direção em que devem ser procuradas as medidas a tomar, indicações, aliás, de caráter sobretudo negativo. Sabemos mais ou menos o que suprimir primeiro para deixar o caminho livre à economia socialista. Em contrapartida, nenhum programa socialista, nenhum manual de socialismo podem indicar de que tipo serão as milhares de medidas concretas, práticas, grandes e pequenas, que é preciso tomar a cada passo para introduzir os princípios socialistas na economia, no direito, em todas as relações sociais. […] E assim sendo, é claro que o socialismo, por sua própria natureza, não pode ser outorgado nem introduzido por decreto. Ele pressupõe uma série de medidas coercitivas, contra a propriedade etc. Pode-se decretar o negativo, a destruição, mas não o positivo, a construção. Terra nova. Mil problemas. Só a experiência é capaz de corrigir e de abrir novos caminhos. […] O que ocorre no plano político vale também para o econômico e o social. É preciso que toda a massa do povo participe. Senão o socialismo é decretado, outorgado por uma dúzia de intelectuais fechados num gabinete.
[…]
Se tudo isso for suprimido, o que resta, na realidade? No lugar dos organismos representativos saídos de eleições populares gerais, Lenin e Trotski puseram os sovietes como a única representação verdadeira das massas operárias. Mas, abafando a vida política em todo o país, a paralisia atinge também, cada vez mais, a vida nos sovietes. Sem eleições gerais, sem liberdade ilimitada de imprensa e de reunião, sem livre enfrentamento de opiniões, a vida se estiola em qualquer instituição pública, torna-se uma vida aparente na qual a burocracia subsiste como o único elemento ativo. A vida pública adormece progressivamente, algumas dúzias de chefes, partidários de uma inesgotável energia e de um idealismo sem limites, dirigem e governam; entre eles, a direção é assegurada, na realidade, por uma dúzia de espíritos superiores, e a elite do operariado é convocada de tempos em tempos para reuniões, com o fim de aplaudir os discursos dos chefes e de votar unanimemente as resoluções propostas: é pois, no fundo, uma clique que governa – trata-se de uma ditadura, é verdade, não a ditadura do proletariado, mas a ditadura de um punhado de políticos, isto é, uma ditadura no sentido puramente burguês, no sentido da dominação jacobina (periodicidade dos Congressos dos sovietes adiada de três para seis meses!). E ainda mais: tal estado de coisas engendra inevitavelmente um recrudescimento da selvageria na vida pública: atentados, execução de reféns etc. É uma lei objetiva, todo-poderosa, a que nenhum partido pode fugir.” (8)
Está aí o motivo pelo qual os stalinistas fanáticos odeiam a rosa vermelha da revolução e a taxam de “reformista”. Nada mais revolucionário do que, depois de ver tanta nuvem, enfim colocar o pé no chão, voltar à realidade, à racionalidade.
O raciocínio lógico é certeiro. A ditadura do proletariado pressupõe a participação popular na política. De que outra forma uma classe extremamente numerosa pode impor sua vontade, esta sim, de forma implacável? Inclusive contra os burocratas! Inclusive contra o Grande Homem, o suposto “cérebro”! Desta forma, ditadura do proletariado e democracia do proletariado são, no fim das contas, dois lados da mesma moeda. O regime stalinista transformou-se no polo oposto, num Estado conduzido por uma camarilha, “uma dúzia de intelectuais fechados num gabinete” que “decretam” o “socialismo”. Quem vive nas nuvens talvez queira inventar outro nome. No meu planeta, o nome disso é ditadura.
NOTAS
1 – PELLEGRINI JR, D. Minhas lembranças de Leminski. Traducao . [s.l.] Geração Editorial, 2014. Disponível em https://books.google.com.br/books?id=9tqVAwAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q=Stalin%2C%20at%C3%A9%20o%20fim%2C%20levou%20a%20vida%20asc%C3%A9tica%20dos%20Bolcheviques&f=false
2 – No link a seguir, o texto está em codificação cirílica (CP 1251), o que faz com que alguns navegadores não o visualizem corretamente. Uma alternativa é salvar o arquivo e abri-lo diretamente (aqui funcionou no mesmo navegador) ou num editor de texto. https://msuweb.montclair.edu/~furrg/research/ezhovpokazaniia.html
3 – Interrogatórios de Yezhov: https://msuweb.montclair.edu/~furrg/research/ezhovinterrogs.html
4 – Declaração final de Yezhov: https://msuweb.montclair.edu/~furrg/research/ezhovlastwords.html
5 – Op cit.
6 – Sobre a descriminalização da homossexualidade em 1922 e sua recriminalização em 1934 , ver texto “A Revolução Russa e as LGBTs” https://blog.esquerdaonline.com/?p=8247 e também o artigo HEALEY, D. The Russian revolution and the decriminalisation of homosexuality. Revolutionary Russia, v. 6, n. 1, p. 26-54, 1993.
7 – Interrogatórios de Yezhov (2 de julho de 1939). Procurar pela data com o mês primeiro: “07.02.39”.
8 – LUXEMBURG, R. A Revolução Russa. Traducao . Petrópolis: Editora Vozes Ltda, p. 91-94, 1991.
Comentários