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Colunas

A ofensa e a mensagem da extrema-direita no poder

Aderson Bussinger

Advogado, morador de Niterói (RJ), anistiado político, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ e diretor da Afat (Associação Fluminense dos Advogados Trabalhistas).

A recente e ofensiva declaração do presidente Jair Bolsonaro de que tem conhecimento de como desapareceu o ex-estudante da Faculdade de Direito da UFF e militante político Fernando Santa Cruz e ainda que teria sido este assassinado pelos próprios companheiros de esquerda, – versão absolutamente desmentida por documentos oficiais e o pelo atestado de óbito do desaparecido fornecido pelo Estado brasileiro – além de revelar uma total ausência de humanidade, execrável moralmente, é também mais um alerta e confissão do quanto o presidente da República não tem compromisso com o regime democrático e o Estado de Direito. Isso fica patente em pronunciamentos com este, no qual debochadamente é incapaz de sequer respeitar sentimentos familiares mais profundos, além de tratar com naturalidade o crime juridicamente imprescritível de desaparecimento forçado.

Em verdade, este  recente comportamento faz parte de uma notória sequência de declarações e atitudes, desde quando exercia o cargo de deputado. Confira ao menos dez exemplos:

  1. Cuspiu no busto na Câmara dos Deputados, em homenagem ao ex-deputado Rubens Paiva;
  2. Zombou das atividades de busca dos guerrilheiros desaparecidos do Araguaia;
  3. Debochou dos trabalhos de exumação das ossadas encontradas em ala clandestina do cemitério de Perus, em São Paulo;
  4. Homenageou diversas vezes, inclusive no impeachment, o Coronel Brilhante Ustra, notório torturador;
  5. Na Presidência da República, comemorou o aniversário do golpe militar de 1964;
  6. Reduz e corta recursos orçamentários dos órgãos encarregados de apurar a memória e verdade sobre a ditadura;
  7. Nomeia para a Comissão Nacional de Anistia seu ex-assessor de gabinete, que atuava nos tribunais judiciais contra as concessões de anistia a perseguidos políticos;
  8. Indicou diversos oficiais do Exército para compor a Comissão de Anistia encarregada de julgar os casos;
  9. Difama, calunia e busca desqualificar os defensores de direitos humanos no Brasil;
  10. Segue negando a tortura durante o regime militar, o que o STF reconhece como fato incontroverso em centenas de julgamentos, com provas e documentos do Exército, Marinha e Aeronáutica;

 

Bolsonaro, através desta última declaração, apenas repete o mesmo do exatamente o mesmo: além de adepto de regimes autoritários, possui incomum desprezo pelos familiares de mortos e desaparecidos políticos causados pelo regime militar de 1964.

Mas para além da ofensa, cabe destacar a mensagem principal que ecoa em tais declarações: a ideia-base de apagar da memória do povo a ocorrência de uma ditadura militar no Brasil, sobretudo das novas gerações nascidas na década de 1980, e incutir a ideia de que democracia seria sinônimo de corrupção, “mal do populismo”, e, de outro lado, regimes militares, ditaduras, estes sim, constituiriam a pretensa solução para os problemas do país. Uma visão sob a roupagem discursiva de “antissistema”, na qual o “sistema” é representado pelo vigente regime democrático, e a salvação consistiria na redenção de todos os males sociais através da assunção do poder pelos militares. 

Via de consequência, por que chorar ou respeitar a morte do jovem Fernando Santa Cruz e de tantos outros que lutaram pela democracia, se esta consiste exatamente no “mal” a ser combatido e extirpado? Declarações como esta recente ofensa à família Santa Cruz, dita pelo detentor do mais elevado e importante cargo do Estado brasileiro, longe de ser apenas uma ofensa ao presidente da OAB Federal e seus familiares, – o que por si só já seria abominável – constitui uma política pensada e deliberada de propaganda e agitação, falsificação histórica e exaltação de métodos dos regimes autoritários, como o desaparecimento forçado.

Essa política vem ganhando forma jurídica em Projetos de Lei, Medidas Provisórias e Decretos que, em todas as áreas de competência estatal, vem propondo e, em alguns casos, já plenamente efetivando.

Com efeito, no MEC, está em andamento um vasto projeto de redução das liberdades democráticas nas instituições universitárias; buscam cercear o debate politico e plural através de projetos como o “Escola sem partido”, promovem a disseminação de escolas militares cujo eixo de ensino consiste na disciplina e pensamento monolítico, alardeado como “sem viés de esquerda”.

Através de mecanismos de financiamento, introduz a censura sobre as atividades artísticas de maneira geral, com foco no cinema; realiza o controle e “filtro” políticos das pesquisas como vem ocorrendo em relação ao INPE, IBGE, e Fiocruz, com o afastamento de pesquisadores, cientistas e uma diretriz de limitar a divulgação dos resultados das pesquisas, levantamentos de dados realizados; tentativa de extinção ou limitação de conselhos onde as sociedade civil tem assento, como na área de política nacional de drogas e também segurança pública; aumento de penas, encarceramento em massa e limitação das prerrogativas de defesa jurídica, através da regulamentação definitiva da prisão antes de esgotados todos os recursos legalmente cabíveis.

Isto tudo ainda somado à promoção da imparcialidade e cerceamento dos direitos individuais de defesa e também de liberdade de imprensa, através da ação de seu ministro da Justiça que sabidamente é autoritário e parcial, conforme demonstrou na condenação e encarceramento (antes de esgotados todos os recursos da defesa) do qual foi vítima o ex-presidente Lula.  

Concluindo, evidencia-se que a lista de medidas pró-autoritarismo no Brasil realmente é grande e cresce exponencialmente, mesmo nos detendo apenas às medidas que se relacionam aos ataques à democracia. Se alguém diz defender o regime democrático, mas até agora ainda alegava alguma dúvida ou menosprezava o projeto autoritário em marcha no Brasil, creio que, a partir destas últimas declarações de Bolsonaro, não possuirá mais motivos para duvidar ou então como justificar sua omissão ante o governo, salvo, evidentemente, se estiver auferindo lucros ou alguma outra vantagem pessoal do Estado.