Em busca da causa perdida: sobre o que não fazer

Paulo César de Carvalho

Paulo César de Carvalho, o Paulinho, é bacharel em Direito (USP), mestre em Linguística e Semiótica (USP), professor de Língua Portuguesa (lecionou na ECA-USP) e autor de materiais didáticos de Gramática, Redação e Interpretação de Texto. Publicou seis livros de poesia, constando em antologias literárias no Brasil e em Portugal (como em É agora como nunca, da Companhia das Letras, organizada por Adriana Calcanhoto). Compositor, tem canções gravadas por diversos músicos da cena contemporânea. Foi militante da organização trotskista Convergência Socialista.

Antes de construir, é preciso conhecer aquilo de que se dispõe.
(TROTSKY, Leon,
Questões do modo de vida. São Paulo: Sundermann, 2009, p. 31).

 

1 – DE VOLTA PARA O PASSADO

 

Publiquei recentemente dois artigos na minha coluna no Esquerda Online, que integram a série intitulada Como chegamos à Era dos Bolsonauros. Preparando o terceiro, fui surpreendido com uma mensagem do Valério Arcary, informando-me que os camaradas da Causa Operária já haviam feito uma crítica aos textos, sem esperar pela conclusão. Conhecendo-os de velha data, quando iniciei a militância trotskista nas fileiras do Alicerce da Juventude Socialista (colateral do movimento estudantil da saudosa Convergência Socialista), não podia realmente me surpreender com o que li. Tendo perdido a inocência juvenil há muito tempo, sei de cor estes versos de Paulo Leminski, morto um ano após eu ter começado a estudar Marx, Engels, Lênin e Trotsky: “o novo/ não me choca mais/ nada de novo/ sob o sol/ apenas o mesmo/ ovo de sempre/ choca o mesmo novo”. Foi nessa época também que conheci o Valério (citado no meu artigo e na réplica), que conquistou de pronto o meu respeito intelectual, pela sólida formação teórica, pelo rigor metodológico, pela precisão das caracterizações e grande experiência política. Separados desde a expulsão da Convergência (organização fundadora do PT) em 1992, não tendo ingressado no PSTU (fundado em 1994), só reencontrei Arcary no MAIS, um quarto de século depois, militando juntos hoje na Resistência, uma das correntes que fazem parte do PSOL.

Voltando à “causa” deste artigo, com o perdão do trocadilho (rima, mas não é solução, como disse Drummond), permitam-me tomar-lhes o tempo com mais digressões de caráter pessoal. É que quando o velho companheiro me enviou o link da crítica, foi-me inevitável voltar no tempo. Como uma espécie de “madeleine” proustiana, o texto me evocou a memória do seminário Trotsky: Passado e Presente do Socialismo, organizado pelo historiador Osvaldo Coggiola na USP, em 1990, no 50⁰ aniversário do assassinato do chefe do Exército Vermelho. Ainda muito jovem e, portanto, inexperiente, naquele momento da vida em que os humores pueris – os hormônios em ebulição – não raro nos induzem ao tão nocivo comportamento sectário, como se já adquirindo “anticorpos” para combater a terrível “doença infantil do comunismo” (se não me falha a memória, conheci a obra de Vladimir Ulianov e aprendi o significado do termo “sectarismo” simultaneamente), aproximei-me de uma banquinha da Causa Operária. Apesar das nossas divergências, respeitando os camaradas trotskistas da corrente petista adversária, recordo que comprei ali um pôster de Trotsky com trechos de seu emocionante “Testamento”, uma camiseta com a reprodução reduzida do cartaz e o livro O marxismo do nosso tempo, assinado pelo líder bolchevique. 

Passados trinta anos, infelizmente o pôster se perdeu em uma das repúblicas em que morei, mas ainda conservo as outras duas relíquias. Depois do longo hiato sem militar organizadamente, lembro que vesti com orgulho a camiseta – resistente às intempéries do tempo – na primeira reunião com os camaradas do MAIS. Em busca do livro perdido entre os incontáveis que acumulei desde então, ao abri-lo, conferi emocionado que estavam na folha de rosto, um ao lado do outro, os autógrafos de dois ilustres palestrantes daquele já balzaquiano Seminário: o do histórico trotskista brasileiro Edmund Muniz e o do neto de Leon, Esteban Volkov, com os quais conversei tão breve quanto timidamente. Junto desta obra, encontrei também o volume Trotsky Hoje, em que Coggiola reuniu uma série de artigos de ilustres convidados às várias mesas do simpósio. Relendo o depoimento de “Seva” Volkov, estava sintomaticamente grifado este trecho do Testamento do avô: “Minha fé no futuro socialista da humanidade não é menos ardente na velhice. Contrariamente, é mais firme do que o foi na minha juventude” (Trotsky Hoje, organização Oswaldo Coggiola. São Paulo: Ensaio, 1994, p. 319). 

Enfim, todos esses fragmentos memorialísticos me foram despertados no intervalo entre a recepção da mensagem do Valério e a leitura da crítica da Causa Operária ao meu artigo. Ao chegar ao ponto final do ataque, confesso que, se estes fossem os últimos camaradas a representar a tradição revolucionária do trotskismo, eu não poderia certamente afirmar que na velhice “a minha fé no socialismo (…) é mais firme do que foi na minha juventude”. Nessa sinistra máquina do tempo em que me vi obrigado a viajar tantos anos para não me perder no presente, é como se pudesse ouvir o protesto inflamado do velho Leon reverberando a fúria indignada do velho Marx: “Semeei dragões, mas a colheita deu-me pulgas”. É como se escutasse o “bobo” shakespeariano dizendo ao Rei Lear: deve ser muito difícil chegar à velhice antes de atingir a sabedoria. É como se o moralista La Rouchefoucauld me soprasse duplamente no ouvido, para não duvidar nem olvidar (com a bênção do trocadilho): “Não há quem no primeiro pendor da idade não dê a conhecer por onde seu corpo e seu espírito devam fraquejar”. 

Refletindo sobre o passado, o presente e o futuro do socialismo e da minha trajetória militante, entre os “dragões” semeados e as “pulgas” (en)colhidas, lembrei o poeta Blake: “Como o ar ao pássaro e o mar ao peixe, o desprezo ao desprezível”. A moral da história me volta sob a forma de uma pergunta retórica: não seria muita tolice responder a uma crítica desprezível? Em outras palavras, aceitar o duelo verbal com a Causa, sabendo ser mais tolo o oponente, não seria prova de ser ainda pouco sábio? Se é verdade que não sou tão velho, e ainda perco tempo em busca de uma causa perdida, é fato também que não sou tão tolo a ponto de não admitir a tolice de replicar a quem é ainda menos sábio. 

Se foi um velho dirigente quem redigiu a crítica, vale para ele o que o bobo da corte disse ao Rei Lear. Se foi um jovem quadro da (des)organização, precisa adquirir ainda muita experiência para não abrir tão fácil a guarda no embate. Enfim, qualquer que seja o meu interlocutor neste insólito ringue, o fato é que não tenho qualquer ilusão de convencê-lo. Serve-me de justificativa para a tréplica, pois, o interesse em mostrar aos camaradas menos experientes da Resistência o que não devem fazer num debate para não beijarem a lona: se este texto se prestar ao menos a ajudar na formação de novos quadros para a luta, não terei perdido tempo escrevendo a vocês. Assim sendo, para concluir, devo agradecer à Causa pelo nobre papel de “sparring” a que se prestam aqui. Vamos, então, ao confronto, camaradas.

 

2 – DE VOLTA PARA O FUTURO

Para começo de conversa, gostaria de explicitar um curioso artifício enunciativo: a crítica da Causa Operária me nomeia como autor dos dois artigos, mas seu alvo, evidentemente, é a Resistência, explicitamente citada no subtítulo. Explicando melhor a manobra linguística, de acordo com a teoria da argumentação, há uma diferença entre o “interlocutor” a quem o enunciador de um discurso se dirige diretamente, e o “auditório”, isto é, o público a quem indiretamente pretende atingir. Em outros termos, simulando polemizar com “Paulo César de Carvalho”, a Causa dissimula que a polêmica, na verdade, é com a Resistência: eu sirvo apenas de pretexto; o alvo, de fato, é a organização “rival”. Prova disso é o subtítulo da réplica dos “causídicos” a todos nós: O Golpe de Estado e a “resistência”. Utilizando o nome próprio como substantivo comum e entre aspas, o propósito do trocadilho, obviamente, é ironizar tanto a nossa “análise concreta da situação concreta” (para não dizer que não falamos de Lênin) quanto a linha política para enfrentá-la. Entrando na brincadeira com os nomes próprios das organizações, enfim, deixemos as “causas” das grandes divergências entre nós para depois. O título desta minha tréplica, aliás, deixa isso bem evidente já na paródia ao clássico de Marcel Proust: Em busca da causa perdida é uma tragicômica viagem Em busca do tempo perdido entre tantos reiterados equívocos dos que jamais aprendem com os erros. 

Como estamos falando em “títulos”, ainda na antessala da polêmica de fundo, não é demais corrigir a citação ao título da minha série, só para soltar os punhos: os colegas, iniciando já sem atentar para os detalhes, transcreveram-no Como chegamos à era dos Bolsonaros?, em vez de Como chegamos à Era dos Bolsonauros?. Certamente não preciso explicar-lhes que o neologismo “Bolsonauro” é um trocadilho entre o sobrenome de Jair e o substantivo “dinossauro”, indiciando de cara o enorme retrocesso que este desgoverno reacionário significa. Infelizmente não posso nomear o displicente articulista a quem coube a tarefa de me criticar: considerando a enunciação coletiva do texto, pois, devo puxar a orelha da direção do partido, que não percebeu o erro flagrante anunciado em letras garrafais.

Esse aparente “pequeno deslize” (nem vou comentar o outro errinho: “era” não é “Era”), meus incautos camaradas, é muito sintomático: a linguagem da crítica de vocês é dura, “engessada”; os enunciados são construídos em tom protocolar, “cartorário”; o estilo é impessoal, “sem brilho”. Considerando que o discurso dos nobres epígonos, em sua totalidade, é padronizado, “mecânico”, que usam as palavras apenas como “vasos para o conteúdo” (como diria o poeta Augusto de Campos), com exclusiva função referencial, não é de estranhar, portanto, que o articulista de muitas cabeças não tenha percebido o recurso poético empregado no título da série. 

Enfim, antes de apontar os problemas no plano do conteúdo da insossa crítica aos meus artigos, gostaria de lembrar-lhes, como leitores de Marx e Trotsky, que ambos, além do conhecido rigor teórico e da precisão de análise da realidade, eram reconhecidos também por seu cuidado com o plano da expressão, donos de um estilo literário personalíssimo. Se é verdade, pois, que “o estilo é o homem”, conforme o célebre aforismo de Buffon, a análise da réplica me faz concluir que a falta de estilo é mais um indício de que o escriba deve ser de fato um autômato. 

Não sei se o fraco articulista sem nome, que repete frases-feitas em linha de montagem de estereótipos pseudo-revolucionários, leu as didáticas observações de Leon sobre a tarefa que lhe foi confiada: em todo o caso, se estudou a lição, de todo modo não soube aplicá-la nas poucas linhas que rabiscou. Reprovado na prova, precisa se dedicar muito mais, relendo estes sábios ensinamentos do velho bolchevique: “Os nossos jornais devem satisfazer não só a curiosidade mais nobre, mas também a curiosidade natural; precisam apenas elevar o nível dessa curiosidade, apresentando e esclarecendo os fatos de forma adequada. Os artigos e as pequenas notícias desse gênero têm sempre e em toda parte grande sucesso. Ora, não se vê isso quase nunca na imprensa soviética. Alguém diria que faltam para esse tema os especialistas literários necessários (…). O leitor necessita de que manifeste nele o interesse, ainda que nem sempre saiba exprimir esse desejo.” (TROTSKY, Leon, Questões do modo de vida. São Paulo: Sundermann, 2009, p. 24).

Para ilustrar o que não se deve fazer, a fim de que uma coluna não se pareça com as “colunas de Hércules da ignorância” (com o perdão do duplo trocadilho leninista), citarei alguns trechos da réplica da Causa Operária. Tentando me guiar pelas calejadas mãos de Trotsky para “abrir caminho através da dura carapaça do obscurantismo e da ignorância”, quero mostrar que os meus adversários, além de escreverem mal, do ponto de vista do “estilo”, também não sabem interpretar texto. Indo direto ao ponto, enfim, peço aos leitores, na condição de árbitros desta insólita polêmica, que vejam bem, em primeiro lugar, o que foi criticado pelos “causídicos”, para então conferirem o que realmente estava escrito nos meus artigos. Com a palavra, o acusador:

Se por um lado a eleição de Bolsonaro não foi obra do acaso, nem ignorância dos eleitores, ela foi fruto da vontade de um grupo político – mais precisamente o setor da burguesia nacional representado por empresas como Havan, Centauro, Condor, entre centenas de outras. Na última hora largou a direita tradicional (representada principalmente pelo PSDB) e colocou majoritariamente suas fichas em Bolsonaro, abandonando as demais candidaturas da direita, que sem o apoio da burguesia tiveram uma votação residual (Alckmin, Meirelles, Marina, Álvaro Dias, etc). (…) Essa abordagem omite que os golpistas realizaram a maior fraude eleitoral da história ao condenar, prender e cassar Lula e colocar a extrema direita fascista no controle do processo eleitoral.

Antes de apresentar as provas para desmenti-los, é importante esclarecer que os caros detratores começaram a réplica mencionando os dois textos que publiquei, apesar de não citarem nenhum trecho do último. Aliás, vale ressaltar que na crítica há mais trechos meus do que propriamente palavras dos franzinos adversários. Indo direto ao ponto, enfim, desarmo os argumentos dos tolos amadores com passagens, respectivamente, do primeiro e do segundo artigo, que sintomaticamente foi “esquecido”:

Apesar da surpreendente recuperação do PT, com a transferência de uma parcela significativa dos votos de Lula para Fernando Haddad, o candidato reformista foi derrotado. (PARTE 1)

Nesse contexto bem desfavorável, evidentemente não haveria mais espaço para governos de conciliação de classes: o golpe parlamentar-judiciário deixou isso bem claro, varrendo do cenário o reformismo petista. A prisão da maior liderança popular, que encabeçava as pesquisas eleitorais, bem como o cerceamento à sua liberdade de expressão, proibido de dar entrevistas para não interferir no resultado do pleito, indicavam que a burguesia precisava de um governo de “puro-sangue”: para aprofundar a exploração, aprovando o imoral ‘pacote de maldades’, era urgente neutralizar as vozes contrárias. (PARTE 2)

Certamente não é necessário “desenhar” para que o leitor de bom senso constate as evidências: fazê-lo, a esta altura, seria subestimar a sua inteligência. Quanto aos camaradas desta “causa perdida” (não peço perdão pelo trocadilho), pode restar dúvida ao leitor se as impropriedades das furiosas objeções foram provocadas mais por ignorância ou por má-fé. Se é certo que há ignorantes de boa-fé e maledicentes bem instruídos, é certo também que a combinação dos dois traços negativos é desastrosa, conforme se nota na réplica “sem medula e osso nessa geleia geral” (ah, Décio Pignatari, o nível piorou muito entre os polemistas da esquerda). Em português bem claro, sinto afirmar ao leitor que a qualidade sofrível da crítica e o descaso com a verdade resultam da soma da ignorância com a má-fé. Pergunto ao maldoso crítico desmiolado qual abordagem é que está omitindo o quê? Não está óbvio que meu artigo sublinha a “fraude eleitoral”? 

Outra questão relevante que o parvo autor desconsiderou: o desgaste do “lulismo” é bem menor do que o do “petismo”, não é mesmo? Se a relação dos eleitores fosse partidária, programática, não faria diferença ser Lula ou Haddad o candidato, vocês hão de convir. Mais um exemplo da estreiteza analítica do míope articulista: o diagnóstico de que a derrota dos partidos tradicionais de direita se deveu à falta de recursos financeiros é de uma pobreza franciscana. É risível o argumento de que Meirelles e Alckmin tenham sido derrotados porque foram abandonados pela burguesia: isso negligencia o enorme peso da classe média empobrecida pela crise, que girou à extrema direita, bem como dos trabalhadores que ficaram ainda mais pobres, desiludindo-se com o projeto reformista. É muito revelador, pois, que a Causa Perdida não tenha sequer mencionado a caracterização de Trotsky no fundamental ensaio Aonde vai a França?. Ou que tenha apenas citado os nomes de Valério Arcary e Henrique Canary, sem fazer ao menos uma rasteira análise dos trechos que citei dos textos de ambos, para justificar a menção jocosa aos meus camaradas. 

Enfim, paremos por aqui: tudo isso seria mais cômico se não fosse tão trágico. Aliás, lembrando Marx, a tragédia das polêmicas de trinta anos atrás, quando os conheci, se repete hoje como farsa. Ao míope articulista, que não enxerga um palmo à frente do nariz de Pinóquio, deixo a última porrada com Trotsky: “Para realizar projetos grandiosos, é preciso dispensar grande atenção aos menores detalhes”! 

PS: Não perderei mais tempo com vocês, caricaturas do trotskismo!