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MUNDO

Noam Chomsky: “Há razões para o otimismo”

Por John Nichols, do Catalyst. Tradução de Rogério Freitas 

7 de dezembro é, como Franklin Delano Roosevelt nos explicou em 1941, “uma data a qual se viveria na infâmia”. É também o aniversário de Noam Chomsky. Quando o ataque japonês a Pearl Harbor ocorreu, Chomsky tinha treze anos de idade. Como resultado de uma série de discussões que tivemos antes e depois de seu nonagésimo aniversário, em 7 de dezembro de 2018, esse detalhe de sua infância é particularmente significativo para o homem que em muitos sentidos definiu a compreensão moderna do que é ser um intelectual público comentando sobre questões globais na época de sua adolescência. A entrevista a seguir foi conduzida por John Nichols em coordenação com a Catalyst. Chomsky aborda a ascensão da extrema direita hoje, relacionando-a ao fascismo entre guerras, e então passa para uma discussão mais ampla sobre a conjuntura.

John Nichols JN- Quando você tinha dez anos de idade, escreveu um pequeno artigo sobre suas preocupações sobre a ascensão do fascismo. Você estava escrevendo após a queda de Barcelona no regime fascista de Francisco Franco nos últimos dias da Guerra Civil Espanhola. Os americanos que lutaram naquela guerra, como membros da Brigada Abraham Lincoln, foram desacreditados como “antifascistas prematuros”, ao ousarem erguer armas contra os aliados de Hitler e Mussolini antes da entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, em 8 de dezembro de 1941. Aos dez anos de idade você se alinha aos antifascistas. Você se lembra do artigo?

Noam Chomsky NC – O artigo foi para o jornal do quarto ano da escola. Eu era o editor e o único leitor e pelo que me lembro talvez minha mãe. Por sorte ela não salvou nada do jornal. Tenho certeza que seria bastante embaraçoso para mim. Tudo de que me lembro é a primeira frase a qual descreve meu pensamento na época: “a Áustria caiu, a Checoslováquia caiu, Toledo caiu e agora  Barcelona também”. 

Eu estava escrevendo depois da queda de Barcelona, ​​em fevereiro de 1939 e pareceu na época que a disseminação do fascismo era inexorável. Nada iria parar isso. O artigo descrevia o que estava acontecendo no mundo, algo assustador. Eu tinha idade suficiente para ouvir os discursos de Hitler nos comícios de Nuremberg – sem entender as palavras, mas era fácil perceber o tom daquilo. Você podia ver o que estava acontecendo enquanto essa praga se espalhava por toda a Europa e parecia não ter fim.

Quando o regime em Barcelona desmoronou, isso não foi apenas o fim do estado democrático liberal espanhol, mas, para mim, o mais importante, foi o fim da revolução social [A Guerra Civil Espanhola] não foi apenas uma simples guerra entre o fascismo e a democracia liberal; houve uma incrível revolução social em grande parte da Espanha e foi esmagada pelos esforços conjuntos dos comunistas, dos fascistas e das democracias liberais. Eles não concordaram muito entre eles, mas concordaram que a revolução social tinha que ser esmagada. Barcelona foi apenas o último símbolo naquele momento. As pessoas simplesmente fugiram para a França quando podiam escapar.

JN – Ficou claro para você que uma guerra maior estava chegando?

NC – Bem, como eu disse, parecia impossível de ser parado. Isso ia se espalhar por toda a Europa, pelo mundo. Aprendi muito mais tarde que os planejadores de políticas dos Estados Unidos já estavam se reunindo: o Departamento de Estado e o Conselho de Relações Exteriores – além de grupos trabalhando sobre como seria a guerra e o período pós-guerra.

 

Nesta altura em 1939, eles já estavam antecipando que a guerra terminaria com uma divisão entre dois mundos: um dominado pelos EUA e outro dominado pelos alemães. Esse foi o cenário. Então, minha percepção infantil não era totalmente irrealista.

JN – Sua percepção foi influenciada por sua própria experiência crescendo na Filadélfia?

NC – Foi conectada com experiências locais. Nós passamos a ser a única família judia em um bairro predominantemente alemão e irlandês. Irlandeses odiavam os ingleses, alemães gostavam dos alemães e assim por diante… eu me lembro bem de festas com cerveja quando em Paris o regime caiu. As crianças do bairro foram para uma escola jesuíta local. Odeio pensar o que era ensinado lá, mas elas saíram delirantemente antissemitas da escola. Levava algumas horas para essas crianças se acalmarem para que você pudesse jogar bola na rua.  

Por isso, combinou experiências pessoais, que, aliás, nunca mencionei aos meus pais. Eles não tinham ideia sobre isso até o dia de suas mortes. Naquela  época você não falava com seus pais sobre essas coisas. Isso é pessoal. Mas foi uma combinação dessas coisas que levaram a esse [artigo].

JN – Com a experiência de comentar sobre o fascismo por oitenta anos, qual é o entendimento de onde estamos hoje? Há uma grande discussão sobre fascismo e ameaças fascistas. Pilhas de livros estão sendo escritas sobre o assunto. Como devemos pensar sobre o que está acontecendo agora?

NC – Bem, estou um pouco relutante em usar a palavra “fascismo”. É usado de forma bastante frouxa agora. É usado para se referir a qualquer coisa horrível. Mas o fascismo realmente significava algo nos anos trinta. De fato, vale a pena lembrar que mesmo a opinião liberal tinha uma espécie de apreciação moderada do fascismo. Assim, por exemplo, Roosevelt descreveu Mussolini, o fascista original, como “aquele admirável cavalheiro italiano”.

Os fascistas haviam conseguido esmagar o movimento trabalhista e a esquerda social-democrata e comunista, e isso era algo em que a opinião do Ocidente era bastante favorável. Os industriais ocidentais e o Departamento de Estado em 1937 descreviam Hitler como moderado e George Kennan, nosso consul em Berlim na época, e mais tarde um dos estadistas mais respeitados do pós-período, estava escrevendo de Berlim dizendo que não deveríamos ser muito duros com esses caras. Há coisas erradas com eles, mas eles estão fazendo algumas coisas que são muito boas, então provavelmente podemos nos dar bem com elas. 

O fascismo foi entendido como algo diferente naquela época. Não era algo horrível. Tinha uma política social e econômica específica. Era para ser um estado poderoso que coordenaria todos os setores da sociedade. Seria um estado de dominação; os negócios floresceriam, mas sob o controle de um estado poderoso. O trabalho seria entendido como um subsidiário desse sistema geral. Não é o que chamamos de fascismo hoje.

JN – Qual é o seu entendimento do que as pessoas chamam de fascismo hoje?

NC – O que é chamado de fascismo hoje é algo podre. 

JN – Essa é uma definição ampla.

NC- Definição ampla.

JN – Existe algum lugar, quando você olha ao redor do mundo atualmente  [e eu sei que você faz isso] onde você vê ameaças emergindo em termos concretos?

NC – Bem, eu acho que o Brasil talvez seja o caso mais extremo agora. O Brasil está nas mãos do novo presidente [Jair Messias Bolsonaro]. Bolsonaro assumiu a presidencia. O Brasil, como você sabe, teve uma horrenda ditadura militar: tortura, assassinato. Bolsonaro elogia a ditadura militar. Na medida em que ele critica, ele diz que a ditadura militar no Brasil não matou pessoas suficientes. Para ele a ditadura no Brasil deveria ter sido como a da Argentina, a qual teve o pior desse tipo de estado de segurança nacional neonazista. Eles mataram 30.000 pessoas.

Tem havido um golpe, um golpe de direita acontecendo no Brasil há vários anos. O primeiro momento disso foi o impeachment totalmente fraudulento da presidente Dilma Rousseff [antiga líder do Partido dos Trabalhadores]. Quando Bolsonaro votou pelo impeachment, ele dedicou seu voto ao principal torturador do regime militar, que havia sido pessoalmente responsável pela tortura de Dilma Rousseff. Esse é o tipo de pessoa que está lá.

As políticas de Bolsonaro são essencialmente para acabar com a população indígena, para vender totalmente o país. Seu ministro da Economia, Paulo Guedes, é um ultra neoliberal da Escola de Chicago, que trabalhou no Chile sob o regime de Pinochet, e tem como objetivo, como ele disse: privatizar tudo, vender todo o país para investidores estrangeiros. Ele quer abrir a Amazônia para a exploração de mineração e para o agronegócio: uma espécie de sentença de morte para o mundo, já que a Amazônia é um dos principais pulmões do mundo.

JN – Fale sobre como Bolsonaro chegou ao poder.

NC- A forma como ele foi eleito é bastante significativa. Devemos prestar atenção a isso. Nós veremos mais disso em nossa próxima eleição nos EUA. É um tipo de experimento. A primeira coisa que fizeram foi ir atrás da pessoa que iria ganhar a eleição. Julgando pelas pesquisas, Lula da Silva – ex-presidente que presidiu um período que o Banco Mundial chamou de Década de Ouro do Brasil, com redução substancial da pobreza, abertura de oportunidades educacionais para minorias, para outras pessoas – fez políticas bastante eficazes. Muitos erros também, mas ele foi de fato, provavelmente a figura política mais respeitada do mundo. Ele também estava apoiando o papel do Sul Global e seu esforço para escapar do legado do colonialismo, que ainda era muito severo.

Então, o que eles fizeram com Lula da Silva, que estava à frente nas pesquisas, [foi colocá-lo] na cadeia por vinte e cinco anos, em confinamento solitário. Ele não podia ler nada e nem fazer declaração. Minha esposa, Valeria, e eu o visitamos na cadeia. Vinte e cinco anos de solitária, isso é essencialmente uma sentença de morte. Mas, crucialmente, ele não tinha permissão para fazer uma declaração – ao contrário dos assassinos no corredor da morte nos EUA, que têm permissão para falar. Seu neto favorito morreu e depois de muitas negociações eles permitiram que ele comparecesse ao funeral por uma hora, mas não podia dizer nada… Se ele sobreviver, vai ser incrível. Ele é definitivamente o prisioneiro político mais importante do mundo.

JN – Você observou que houve pouca atenção às circunstâncias de Lula na maioria dos meios de comunicação dos EUA. Ou, realmente, para Bolsonaro. Isso faz parte de um problema mais amplo com a mídia dos EUA que não cobre o mundo? Mas você está especialmente preocupado com a negligência do que está acontecendo no Brasil.

NC – Bolsonaro é o mais próximo de algo como o fascismo – não no sentido técnico, mas no sentido de amargo, vicioso, profundamente autoritário e brutal.

JN – Como ele chegou ao poder não é apenas perturbador em si mesmo. É uma indicação de como a política está mudando em todo o mundo.

NC- A forma como a eleição foi ganha – e é isso que eu tinha em mente ao dizer que poderíamos pensar – é por uma incrível campanha nas mídias sociais, que é a única coisa que a maioria dos brasileiros tem como fonte da chamada “informação”. Você sabe, WhatsApp? Foi inundado com as mais inacreditáveis ​​mentiras, distorções, invenções sobre as coisas supostamente hediondas que o PT, a oposição, faria… Suspeito que na nossa próxima eleição, na qual Bernie Sanders está concorrendo [contra Trump na eleição de novembro] será o que você vai ver acontecer. Estes são os tipos de acusações que você não pode responder. Você sabe, é apenas nojento, feio, vilificação. Já está começando por exemplo com as acusações da direita sobre o “socialismo”.

Notei que, no discurso do Presidente Trump sobre o Estado da União, havia um longo solilóquio sobre o socialismo e, claramente, que se tornou uma grande pedra de toque para muitas das críticas de pessoas dentro do Partido Democrata. Há um punhado de socialistas democráticos que se levantaram no Partido Democrata: Bernie Sanders, Alexandria Ocasio-Cortez, Rashida Tlaib e outros. E assim há uma realidade lá que nós temos pela primeira vez em muito tempo: um aumento de uma presença democrático-socialista aliado ao nosso discurso.

JN – Você poderia falar sobre como o presidente e alguns de seus aliados políticos podem se aproveitar deste termo?

NC- Bem, devemos ter em mente que os EUA  é um país muito isolado, cultural e intelectualmente. Quer dizer, no resto do mundo, socialista é um termo normal. Comunista é um termo normal. As pessoas podem ser comunistas, o Partido Comunista pode participar de eleições. Ser socialista é apenas ser uma espécie de pessoa moderna. Aqui nos Estados Unidos, o socialismo é uma palavra de maldição – então, chamar alguém de socialista significa que ela seja um monstro total, como um nazista, talvez como Stalin. Mas isso é exclusivo dos Estados Unidos.

Veja Bernie Sanders. Suas posições não teriam surpreendido [o ex-presidente Dwight] Eisenhower. Você volta e lê as declarações de Eisenhower, quando ele sugeriu que qualquer um que questione o New Deal não pertence ao nosso sistema político. Ou que qualquer um que pense que os trabalhadores devam ter a oportunidade de formar livremente sindicatos – e devam retornar a serem massas amontoadas e patéticas do passado – simplesmente não fazem parte do mundo civilizado.

JN – De fato, Eisenhower pronunciou o discurso de “Cruz de Ferro”, em 1953, no qual ele disse que todo avião de guerra que construímos poderia ser dinheiro a  ser usado para construção de escolas. Isso soa muito parecido com um Bernie Sanders.

NC – O país se moveu muito para a direita durante o período neoliberal, desde os anos Reagan – os anos Carter-Reagan. Então, quando essas pessoas que se autodenominam “socialistas democráticos” aparecem, elas voltam essencialmente a uma tradição que é bem parecida com o New Deal. É muito saudável, penso eu, mas não tem nada a ver com socialismo ou com o sentido tradicional da palavra. Lembre-se do que o socialismo significava uma vez. O socialismo significava, no mínimo, o controle sobre a produção pela força de trabalho, o controle sobre outras instituições pelos participantes, o controle democrático sobre todo o sistema social e econômico.

[A maioria dos proeminentes socialistas democráticos na política americana contemporânea] não está reivindicando isso. Eles estão chamando isso o que na Europa seriam medidas social-democratas moderadas – o que para os Estados Unidos é muito importante. Então, acho que é uma coisa muito boa. Mas será banalizado com tiradas de infamia, demonização e denúncia. Você pode ter certeza disso. E o que aconteceu no Brasil, penso eu, vale a pena ser visto como uma espécie de modelo experimental do que pode vir.

JN – Se, por acaso, Bernie Sanders for indicado para presidente dos Estados Unidos, qual é o sentido de como essa campanha pode ser jogada? Correndo o risco de fazer de Noam Chomsky um comentarista… o que você acha que aconteceria?

NC – Eu acho que ele vai ser submetido – e isso é verdade se ele concorre ou se  qualquer outra pessoa como ele concorre – a uma campanha muito cruel, vulgar sobre mídia social, através de notícias, radio etc. Lembre-se de que todos esses instrumentos foram tomados pela extrema direita. Eu não sei se você ouve rádio? Eu escuto de vez em quando. Isso é realmente chocante. Quero dizer, isso faz a Fox News parecer liberal, sabe? E isso atinge muitas pessoas. Rush Limbaugh tem audiência de 20 ou 30 milhões de pessoas, dizendo-lhes por exemplo que existem – qual é a sua famosa frase? Instituições que existem com base no engano: governo, mídia, academia e ciência. Ele está dizendo às pessoas: não acreditem em uma palavra que provenha destas instituições. Coisas como esta estão atingindo uma grande parte da população americana.

JN – Você sempre nos lembrou que as elites colocaram grande energia em restringir e estreitar o discurso político.

NC – O ativismo social é considerado pela classe política e empresarial como um câncer. Se ficar maligno, eles pensam: você tem que pará-lo à força. Mas é muito mais rentável, no caso de um câncer, preveni-lo. E [existem] todos esses meios para impedir o surgimento de movimentos sociais organizados que desafiarão os eventos que estão ocorrendo.

Desviar a atenção das pessoas para outras direções é outra maneira de fazer isso. Então, você sabe, há [mensagens de Trump e seus aliados] sobre as hordas de estupradores, assassinos, terroristas prestes a invadir a fronteira, nos atacar e nos destruir. Ok, então eles querem que prestemos atenção nisso e não ao fato de que nossos salários reais não aumentaram em trinta anos, que estamos perdendo benefícios, que o sistema político está entrando em colapso ou ainda, que todo ato feito pelo governo é um ataque à força de trabalho e aos pobres. A mensagem é: “Não olhem para isso. Olhem para esses caras atravessando a fronteira. Preocupem-se com seus filhos ou qualquer outra coisa”. 

Existem meios muito concretos para distrair as pessoas. Eles foram desenvolvidos por muitos anos e são em  grande parte produzidos pela indústria da publicidade – uma das mais poderosas do país – e estão sendo aplicados agora para evitar que pessoas como você, especialmente os jovens, tenham a “ideia errada”, de se organizar, de serem ativos e fazer os tipos de coisas que Ocasio-Cortez está fazendo. Eles tentam de alguma forma impedir que você inicie qualquer tipo de coisa. 

JN – Eles não parecem estar indo muito bem nisso, porque Ocasio-Cortez, se tiver razão, tenha mais de 3,3 milhões de seguidores no Twitter. Ela e as outras parlamentares que foram eleitas para o Congresso estão se tornando estrelas políticas. Existe um fenômeno lá. A pesquisa mostra que pessoas com menos de trinta anos têm opiniões positivas sobre o socialismo democrático – pelo menos em oposição ao capitalismo, como é praticado atualmente. Bernie Sanders concorreu a presidencia muito bem em 2016 e parece estar muito bem agora, na medida em que se aproxima as eleições de 2020. Então, não há alguma evidência de que os progressistas estão surgindo? Que uma mudança está ocorrendo?

NC – Bem, eu colocaria do outro jeito. É por causa dos efeitos da era neoliberal que você está percebendo essa reação. Há uma reação em todo o mundo e é em duas direções. Às vezes é apenas alguma coisa que você está descrevendo. Às vezes é neofascista mesmo.

Há uma questão real agora sobre o caminho a seguir. Na Europa, nos Estados Unidos, e em alguns outros lugares há um tremendo aumento de raiva, amargura, ressentimento. E a questão é: o que ocorrerá?

Do ponto de vista das elites políticas e financeiras do mundo, a estratégia da atenção centra-se realmente em: “estupradores atravessando a fronteira”. Do ponto de vista de Ocasio-Cortez, ou Bernie Sanders, o desejo é que seja pautada a questão social e políticas econômicas que foram instituídas e que estão marginalizando as pessoas, colocando-as de lado, minando o sistema político.

Então isso é uma luta nos Estados Unidos e em toda a Europa também. Mas a raiva e a amargura estão presentes e os diferentes [atores políticos] querem que ela seja focalizada de maneiras opostas. Alguns querem que você desvie a atenção das causas, para que eles possam controlar você melhor. Outros querem que você preste atenção às causas, assim você pode fazer algo. Esta é uma grande luta que está se formando em grande parte do mundo. Quero dizer: o sistema capitalista assumiu uma espécie de forma selvagem nos últimos trinta ou quarenta anos. As pessoas estão sofrendo e estão irritadas, e estão reagindo.

A questão é: como as pessoas vão responder? A esse respeito, é um pouco como nos anos 1930. Poderia ter ido em outras direções. Assim, por exemplo, nas décadas de 1920 e 1930, haviam movimentos ativistas e movimentos social-democratas muito animados, comunistas e outros movimentos de esquerda. Haviam também movimentos fascistas em ascensão. E havia uma pergunta: quem vai ganhar? Infelizmente, sabemos como isso terminou. Eu não acho que é tão dramático hoje, mas é similar estruturalmente.

JN – O grande parlamentar britânico, Tony Benn, disse que nos anos 1930, quando ele era jovem e olhava ao redor do mundo, havia países que poderiam ter ido em qualquer direção. Benn disse que uma das grandes coisas que aconteceu foi que os Estados Unidos conseguiram um Roosevelt, enquanto que em outros países, figuras muito mais perigosas e destrutivas chegaram ao poder. Agora, nos encontramos em uma era diferente, mas certamente um momento muito turbulento. Estamos há trinta anos na globalização, que está mudando tudo sobre como nos relacionamos com o mundo, estamos há vinte anos em uma revolução digital que está mudando tudo sobre como nos comunicamos, estamos oito a dez anos em uma revolução de automação que está começando a mudar a forma como trabalhamos. As pessoas são claramente abaladas por tudo isso. Meu sentimento é que o Partido Democrata nos Estados Unidos não forneceu muitas respostas sobre como lidar com essas mudanças. É uma avaliação justa?

NC – Bem, temos que lembrar que as duas partes reconstruíram ao longo de linhas bastante diferentes no início dos anos 70. Naquela época, houve uma grande mudança em todo o sistema socioeconômico. Passamos de um período de liberalismo encorporado, capitalismo arregimentado, onde as medidas do New Deal ainda estavam essencialmente governando a política. Agora este foi um período de enorme crescimento. O período de maior crescimento na história Americana os anos 50 e 60. Às vezes é chamado de “Idade de Ouro do Capitalismo”. Era o crescimento igualitário em termos proporcionais. Houve conquistas em direitos civis e outros aspectos dos direitos humanos.

Isso acabou no início dos anos 70. Há uma regressão, o chamado período neoliberal seguiu direções muito diferentes e as partes mudaram. O Partido Democrata mantinha uma espécie de coalizão desconfortável entre racistas democratas sulistas e trabalhadores e liberais do norte. Isso desmoronou no momento do movimento dos direitos civis.

A próxima estratégia [alavancada pelo presidente Richard Nixon e seus assessores políticos] foi tentar pegar os elementos racistas do sul e trazê-los para o Partido Republicano. Enquanto isso, os democratas mudaram. Eles se baseavam, pelo menos em parte, na classe trabalhadora e mantinham algum compromisso com os interesses e valores dos trabalhadores. Na década de 1970 isso mudou. Os democratas simplesmente abandonaram a classe trabalhadora, entregando-a essencialmente a seu inimigo de classe. Isso foi o que aconteceu de fato. O último suspiro do Partido Democrata, de seu tipo de liberalismo moderado, foi o projeto de Emprego Completo da Humphrey-Hawkins, que o Congresso aprovou em 1978, mas que Carter o enfraqueceu. Depois disso, não há sequer um gesto para a classe trabalhadora. Portanto, a classe trabalhadora foi essencialmente abandonada.

JN – Abandonada pelos democratas, enquanto que os republicanos tentaram atrair pelo menos alguns dos seus votos.

NC – Os republicanos conseguiram capturar a classe trabalhadora principalmente pela técnica do desvio da atenção. E ainda está conseguindo. Mas nem sempre funcionou assim. É interessante quando Obama apareceu. Ele conseguiu os votos da classe trabalhadora. Muitos trabalhadores que votaram em Trump também votaram em Obama. Eles acreditavam na conversa sobre esperança e mudança. Mas eles rapidamente descobriram que não se veria uma real mudança e nem esperança.

Lembre-se do socorro aos bancos após o crash de 2008. A legislação do Congresso para esse socorro tinha duas questões: ou socorrer os criminosos que o criaram, as instituições financeiras ou ajudar as vítimas, pessoas que perderam suas casas – ou seja, seus lares foram destruidos porque a economia despencou e assim por diante. Bem, você poderia ter adivinhado qual parte ia ser socorrida. Na verdade, o inspetor-geral do Departamento do Tesouro, Neil Barofsky, ficou tão indignado com isso que escreveu um livro interessante sobre o assunto [Bailout: An Inside Account of How Washington Abandoned Main Street While Rescuing Wall Street]. 

Mas os trabalhadores puderam ver o que estava acontecendo. A reação foi: “Estamos sendo jogados para os lobos. Eles não se importam com a gente. É apenas balela”. Então a próxima coisa que você faz é votar em seu inimigo de classe, Trump, que está fazendo tudo o que pode para controlar os trabalhadores vendo se consegue manter algum tipo de base. Tudo isso você sabe, apelando ao discurso dos “estupradores ” ou dos “assassinos” ou alguma coisa coisa do tipo. 

Mas esta é uma situação muito desconfortável. E pessoas como Bernie Sanders, Ocasio-Cortez e outros estão tentando trazer o Partido Democrata de volta, de fato, para o que uma vez foi – mas sem a pedra de mira dos democratas do Sul, que era um problema muito sério para Roosevelt e o New Deal e até o Movimento dos Direitos Civis.

JN – Você vê isso como um momento de crise política?

NC – Na verdade, vamos enfrentar uma crise constitucional. Se você olhar o que está acontecendo agora, apenas olhe para os números, até agora, os estados com cerca de 25% da população dirigem o Senado – a mais importante das instituições…. O Senado é dominado por membros que representam principalmente um setor rural, tradicional, mais antigo, notadamente supremacista branco, muito religioso que está diminuindo demograficamente. Mas eles vão tentar manter seu poder. Agora é quase certo que isso levará a uma crise constitucional. E observe que não pode ser alterado nada por nenhum meio constitucional. Não pode ser modificado porque eles têm poder suficiente para bloquear qualquer tipo de possivel alteração.

JN – Eles têm o poder de bloquear emendas democratizantes. Mas você se preocupa com as alterações favorecidas pelas elites.

NC – Você deve observar com muito cuidado as emendas. O mais cruel dos lobbies empresariais, e na minha opinião o mais forte deles, ALEC, o Conselho Legislativo de Intercâmbio Americano, está [trabalhando] para conseguir que legislaturas estaduais concordem com uma emenda constitucional que estabelecerá um limite orçamentário equilibrado no governo federal. O que significa um limite de orçamento equilibrado? Significa que você acaba com todos os programas de bem-estar. Você acaba com qualquer coisa que beneficie pessoas comuns. É claro, você mantém o orçamento do Pentágono na estratosfera – e sem dúvida você mantém grandes subsídios para o agronegócio, energia e instituições financeiras. Mas, esqueça a segurança social, a saúde ou a educação. Então, isso é um orçamento equilibrado. Então, você pode ver essas coisas acontecendo nos estados que têm orçamentos equilibrados.

Há uma grande luta de classes acontecendo logo abaixo da superfície. Pedaços e partes dela são visíveis, mas isso vai levar a uma grande crise no futuro próximo.

JN – No entanto, muito disso é descoberto, ou sub-coberto, em nossa mídia. Você consome muita mídia e tem ideias de como obter informações de fontes inesperadas.

NC – Você pode ler os artigos na imprensa de negócios dizendo que os grandes bancos, os maiores bancos estão aumentando seus investimentos em combustíveis fósseis. Isso é muito interessante. É quando você lê essas coisas que você começa a pensar. Veja, coloque-se na posição de Jamie Dimon, CEO do JPMorgan Chase. Ele sabe tudo o que sabemos sobre o aquecimento global e seus efeitos extremamente perigosos e iminentes. Mas ele ainda está investindo dinheiro não apenas na extração de combustíveis fósseis, mas também no mais perigoso dos combustíveis fósseis: as areias asfálticas canadenses.

Então, o que ele pensa? Bem, se você raciocinar sobre isso, não é muito complicado. Ele tem duas escolhas. Uma escolha é fazer exatamente o que ele está fazendo: tentar aumentar o lucro para o JPMorgan. A outra escolha que ele tem é se demitir e ser substituído por outra pessoa que fará exatamente a mesma coisa. Este é um problema institucional profundo.

Não adianta falar sobre esses bandidos que fazem isso e aquilo. Na estrutura institucional, eles simplesmente não têm escolha, o que nos diz o que deveríamos estar olhando: a estrutura institucional. É uma daquelas coisas das quais você não quer ser desviado. Então, você lê o New York Times, aprende muito. Você lê a imprensa de negócios, o Wall Street Journal.

JN – Aos noventa anos de idade parece que você ainda está lendo tudo, absorvendo tudo, tentando influenciar o debate atual. Estamos falando de aproximadamente cinquenta anos depois da publicação de seu ensaio sobre o papel de um intelectual na sociedade. Foi republicado pela New Press como “It is the Responsibility of Intellectuals to speak the truth to expose lies”.

Nesse ensaio, você escreveu: “No que diz respeito às responsabilidades dos intelectuais, existem outras questões igualmente perturbadoras. Os intelectuais estão em posição de expor as mentiras dos governos, de analisar as ações de acordo com suas causas e motivos e, muitas vezes, com intenções ocultas. No mundo ocidental, pelo menos, eles têm o poder que vem da liberdade política, do acesso à informação e da liberdade de expressão. Para uma minoria privilegiada, a democracia ocidental proporciona o lazer, as facilidades e o treinamento para buscar a verdade oculta por trás do véu da distorção e deturpação, ideologia e interesses de classe, através dos quais os eventos da história atual são apresentados a nós. As responsabilidades dos intelectuais são muito mais profundas do que o que foi sugerido e o que eles chamam de responsabilidade das pessoas, dados os privilégios exclusivos dos intelectuais”. 

Parece-me que em toda a sua vida você se esforçou muito para cumprir esse dever. E acho que tem que haver um elemento de otimismo nisso.

NC – Bem, se você quiser ser otimista, pense no período em que isso foi escrito. Foi  em 1966 em uma palestra para a Hillel Foundation, na Universidade de Harvard. Foi publicado pela New York Review of Books.

Como foi esse momento em 1966? Apenas pense no que foi. Primeiro de tudo, uma das piores guerras da história estava acontecendo. Neste ponto, os Estados Unidos haviam praticamente acabado com o Vietnã do Sul. O principal historiador do Vietnã, Bernard Fall, altamente respeitado pelo governo escreveu na época que não sabia se era um estudioso vietnamita. Ele não sabia se o Vietnã sobreviveria como uma entidade cultural e histórica depois do pior e mais cruel ataque que já havia sido lançado contra uma área daquele tamanho.

Quase não houve protestos nos Estados Unidos. Eu morava em Boston, uma cidade liberal. Em Outubro de 1965 teve o primeiro dia internacional de protesto. Então, nós tentamos fazer uma passeata em Boston, ir ao Cambridge Common, o lugar onde você dá palestras. Eu deveria ser um dos oradores. O espaço foi dividido pelos contra-manifestantes, a maioria estudantes que não queriam ouvir esse tipo de conversa sobre o Vietnã. O próximo dia internacional de protesto foi em março de 1966, pouco antes de ter sido convocada, incidentalmente, logo antes da palestra ter ocorrido. Sabíamos que não poderíamos tê-la no Boston Common. Nós queríamos ter a reunião em uma igreja, ok? Na igreja de Arlington Street. A igreja foi atacada. Tomates, latas, contra-manifestantes, policiais do lado de fora. Isso é o que estava acontecendo em 1966.

E o que mais estava acontecendo no país? Bem, nós ainda tínhamos leis federais de habitação que exigiam segregação, exigiam habitação federal branca pura. E tínhamos leis de miscigenação e leis antimiscigenação tão severas que os nazistas se recusaram a aceitá-las. Quando os nazistas procuravam modelos para as Leis de Nuremberg, as leis racistas, eles olhavam ao redor do mundo. Os únicos que eles poderiam encontrar residia nas leis americanas. Mas as leis dos EUA eram severas demais para os nazistas. As leis dos EUA foram baseadas no que foi chamado de “Uma Gota de Sangue”. Então, se a sua bisavó era negra, você é negro, sabe? Isso foi demais para os nazistas. [Essas leis] ainda estavam em vigor no final dos anos 1960. Leis anti-sodomia, claro.

Não havia movimento de mulheres. As mulheres ainda não haviam sido reconhecidas pelo Supremo Tribunal como pares legais, como pessoas. Isso não aconteceu até 1975, quando [o tribunal] concedeu o direito de servir em júris federais como iguais. Nós podemos continuar…. Mas quero dizer, que o país estava muito pior do que é agora.

O que mudou? Não haviam presentes dos céus. O que mudou é que muitas pessoas, principalmente jovens, começaram a se organizar, começaram a se manter ativos, lutaram, tornaram o país muito melhor.

JN – E você acredita que isso está acontecendo de novo agora?

NC – Veja o Green New Deal da Ocasio-Cortez, que agora é uma proposta muito séria. Hoje essa proposta está bem no centro da agenda. Um ano atrás, talvez, foi ridicularizada. Como isso aconteceu? Como essa mudança aconteceu? Bem, um grupo de jovens do Sunrise Moviment sentou-se no gabinete da [Presidente da Câmara] Nancy Pelosi, [e a sua questão foi] ouvida por um par de legisladores. Logo se tornou uma grande questão. [O governador de Washington] Jay Inslee acaba de anunciar sua candidatura à nomeação presidencial democrata, com sua principal prioridade sendo o perigo da mudança climática. Este é agora um assunto sobre o qual você pode falar, você pode fazer algo a respeito. Nós não temos muito tempo. Bem, todos esses são motivos de otimismo. Muitas coisas melhoraram e foram aprimoradas por pessoas ativas, organizadas e comprometidas que trabalharam e mudaram o mundo. Esse é um motivo para ser otimista.

 

Tradução concedida pelo editor da revista Catalyst Bhaskar Sunkara
https://catalyst-journal.com/vol3/no1/there-are-reasons-for-optimism