No último parágrafo do artigo anterior, citamos uma emblemática passagem do ensaio Aonde vai a França?, que Trotsky escreveu há 85 anos. À época, no quadro de grave crise econômica do “entreguerras”, o descrédito da política reformista da social-democracia, a suicida tática esquerdista do stalinismo e a rejeição aos partidos tradicionais de direita abriram espaço para a extrema direita. A história comprovou a combinação desastrosa desses elementos através da ascensão do fascismo ao poder na Alemanha, em 1933. O diagnóstico de Leon, vale sublinhar, é de 1934: dois anos depois, a derrota da Guerra Civil Espanhola faria do general Franco o terceiro nome do triunvirato macabro, ao lado de Hitler e Mussolini (que inaugurou o famigerado regime, em 1921). Enfim, bem guardadas as diferenças históricas, pode-se afirmar também, como base material de análise, que “atualmente em todos os países vigoram as mesmas leis: as da decadência capitalista”. Aos que têm olhos de ver e ouvidos de ouvir, mas não enxergam nem escutam as obviedades (como diria o mestre barroco Padre Vieira), quem sabe apresentando alguns dados concretos, de fontes insuspeitas para os não marxistas, seja possível despertá-los do sono letárgico.
Antes, porém, antecipando-nos à previsível réplica dos detratores, acusando de anacrônica a alusão a Trotsky, com o propósito de persuadir os “inocentes de boa-fé ” (na expressão de Lênin) de que a voga fascista está morta e enterrada nos frios arquivos históricos, lembramos que a tragédia de Mussolini, Hitler e Franco (para não dizer também o nome maldito de Salazar) pode se repetir como farsa (para não esquecer a “profecia” de Marx). Atualizando os termos da analogia, passamos a palavra a Michael Löwy, um dos mais respeitados sociólogos contemporâneos, no artigo sugestivamente intitulado A extrema direita: um fenômeno global: “Nos últimos anos, a extrema direita reacionária, autoritária e/ou fascista tem estado em ascensão em todo o mundo: ela já governa metade dos países do mundo. Entre os exemplos mais conhecidos, estão Trump (Estados Unidos), Modi (Índia), Orbán (Hungria), Erdoğan (Turquia), Daesh (Estado Islâmico), Salvini (Itália), Duterte (Filipinas) e agora Bolsonaro (Brasil). Mas, em vários outros países, temos governos próximos a essa tendência, mesmo que eles não tenham uma definição tão explícita: Rússia (Putin), Israel (Netanyahu), Japão (Shinzō Abe), Áustria, Polônia, Birmânia, Colômbia e assim por diante” (publicado na International View Point e no Esquerda Online).
Para compreender, enfim, a emergência desses regimes autoritários, em que pesem as diferenças entre os governos, deve-se considerar, em primeiro lugar, o agravamento da crise econômica do capitalismo, confirmado pelos alarmantes dados da dramática realidade social. Conforme os números divulgados no último Fórum Econômico Mundial de Davos, a diferença entre o salário de um executivo e o de um trabalhador “mediano” cresceu 970% nas últimas quatro décadas: ou seja, a proporção da desigualdade passou de 30 para um, em 1978, para 321 para um, em 2018. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), houve um significativo aumento no número de pessoas passando fome no mundo, que subiu de 815 milhões de indivíduos, em 2016, para quase 821 milhões em 2017. Outras referências inequívocas do aumento do abismo social para os que ainda não acreditam na degeneração do capitalismo: enquanto os 10% mais ricos ganham o equivalente a US$ 104 milhões por hora, os 3,8 bilhões mais pobres da população perdem US$ 20 milhões por hora. Esses dados, vale registrar, são da OXFAM (Oxford Committee for Famine Relief – Comitê de Oxford de Combate à Fome).
De fato, como assinalou Trotsky (no mesmo ensaio citado no nosso primeiro artigo), “se os meios de produção continuam em mãos de um pequeno número de capitalistas, não há salvação para a sociedade. Ela está condenada a seguir de crise em crise, de miséria em miséria, de mal a pior (…)”. Não é preciso maior esforço intelectual, enfim, para constatar o óbvio: conforme os dados comprovam, a burguesia continua conduzindo “a humanidade à bancarrota”. Infelizmente, refletindo sobre todos esses profundos problemas, e tendo consciência de que o socialismo, como solução, se coloca num distante horizonte, parecendo hoje tão improvável, o mundo assiste em desespero à proximidade da barbárie. Para não dizer que não falamos das flores (com o perdão do trocadilho com a canção de protesto de Vandré), como bem sintetizou Rosa Luxemburgo, eis a dramática questão: “socialismo ou barbárie”.
Se isso ainda não basta para confirmar a decadência do cruel modo de produção capitalista, lembramos também àqueles que, piores do que São Tomé, mesmo vendo a barbárie não creem na desgraça, algumas das muitas consequências nefastas da exploração desmedida dos recursos naturais. Segundo o relatório da agência ambiental da ONU, publicado em 2017, a poluição da natureza é responsável direta por aproximadamente 25% de todas as mortes de seres humanos nos quatro cantos do planeta: para ser mais preciso, isso significa a assombrosa soma de 12,6 milhões de pessoas. Desse montante, 6,5 milhões morrem devido à poluição do ar: em 80% dos centros urbanos, grife-se, a qualidade do ar não atinge os parâmetros de saúde estipulados pelas Nações Unidas. Aliás, por terrível coincidência estatística, 80% do esgoto mundial é despejado no meio ambiente sem tratamento. Isso sem entrar em detalhes sobre o vertiginoso e catastrófico aumento do aquecimento global, provocado fundamentalmente pela tão absurda quanto irresponsável queima de combustíveis fósseis.
Por falar nisso, considerando o grave contexto de crise econômica e esgotamento dos recursos naturais, vale chamar a atenção dos ingênuos para os espúrios interesses das potências imperialistas no “ouro negro”: a ambição pelo controle do petróleo, por exemplo, está na origem de guerras como as do Iraque e do Afeganistão, bem como é o que serviu de pretexto para a intervenção americana no conflito da Síria e para as reiteradas ameaças de Trump de invasão da Venezuela. A propósito, retomando a análise do governo Bolsonaro, vem bem a calhar nesse quadro a lembrança do “pré-sal”, cuja descoberta colocou o Brasil entre os dez países com as maiores reservas e produção de petróleo. As recentes visitas do presidente brasileiro aos Estados Unidos e a Israel, em clara demonstração de subserviência neocolonial, tiveram por objetivo a entrega das riquezas tupiniquins aos abutres do grande capital, dando sequência à deplorável política de desnacionalização do setor.
Sem aprofundar esse relevante tema, para não desviar o foco da crítica mais ampla à “Era dos Bolsonauros”, aproveitamos para recordar também que, diante da desesperadora situação climática mundial, o estúpido chanceler Ernesto Araújo atribuiu a necessidade de medidas urgentes contra a elevação da temperatura a um complô do “marxismo cultural”, justificando – nesses termos insólitos, em inconsistente argumentação – a defesa da saída do Brasil do Acordo de Paris, que propõe medidas imprescindíveis de redução dos danosos gases de efeito estufa. De novo, comprova-se a absoluta docilidade do presidente asinino ao reacionário governo de Trump, que abandonou o acordo em 2017. Aliás, é bastante sintomático também este depoimento do primitivo vassalo do imperialismo à emissora de rádio Jovem Pan, no retorno da viagem à terra do Tio Sam (rima, mas não é solução, como diria Drummond): “Quando estive agora com Trump, conversei com ele que quero abrir para ele explorar a região amazônica em parceria. Como está, nós vamos perder a Amazônia, aquela área é vital para o mundo”.
Para quem viu a imagem do Jeca Jair intimidado ao lado do Pato Donald, sem balbuciar uma palavra sequer, porque não saberia falar mais do que “yes” em inglês servil, parece piada a afirmação “conversei com ele”. Sem abrir a boca, mas abrindo as pernas para o “grande porrete” americano, essa “parceria” só poderia mesmo ser lida como disfarce eufemístico para o “estupro” inevitável da Amazônia. Quem acreditaria, não sendo muito boçal, que realmente seria preciso fazer acordo com o lobo para não perder as ovelhas? Há de se convir que só um energúmeno argumentaria que seria necessário entregar o que é “vital para o mundo” para um agente tão nocivo, que representa um risco visivelmente mortal à humanidade. Enfim, para não perder a deixa, salvando ao menos um pouco de bom senso das terríveis garras dinossáuricas, a alusão metafórica a “agente nocivo” e “risco mortal” tem aqui, na verdade, sentido literal (novamente, a rima está longe de ser solução).
Esclarecendo aos que têm olhos de ver mas insistem em não enxergar, isso significa que, na “Era dos Bolsonauros” à qual a desgraçada “máquina do tempo” nos fez regredir 60 milhões de anos em seis meses, houve um espantoso aumento de 42% de agrotóxicos liberados para uso na lavoura, em relação ao mesmo período do ano anterior. Se tomarmos como base que, em 2010, foi autorizada a utilização de 18 pesticidas, e que o “plano de merdas” deste desgoverno já permitiu o emprego de 197 substâncias tóxicas no plantio, no cômputo geral, a estatística é assustadoramente trágica: de lá para cá, o aumento da química cancerígena foi de 922%. É imprescindível não esquecer também, para agravar ainda mais o triste prognóstico, que já foram acatados pelo Ministério do Meio Ambiente mais 365 pedidos de autorização para o uso criminoso de venenos ao livre dispor dos assassinos insaciáveis do mórbido agronegócio.
Para se ter noção do ponto a que o país chegou depois da fatídica eleição do quadrúpede reacionário, compreendendo no estômago o amargo significado de seu projeto político de “terra devastada” (com o perdão do trocadilho com o poema de T. S. Eliot), quem não está abençoado por “Deus acima de tudo”, tendo o sagrado direito de morrer bem alimentado, apesar de bem envenenado, está condenado à morte de fome. Aliás, já que mencionamos os números da fome no mundo para ilustrar a decadência do capitalismo, explicando a disseminação dos diversos governos reacionários – como praga – aos quatro cantos da Terra, finalizamos este artigo com dados verde-amarelos. Para deixar felizes os “patriotários” (atualizando o neologismo de José Paulo Paes, para a tristeza do poeta), vale registrar os números divulgados pelo relatório internacional O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2018. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), há 5,2 milhões de pessoas passando fome na “Pátria Mãe Gentil”.
Para que os analfabetos políticos funcionais enxerguem o drama, é bom desenhar: levando em conta que a população do Uruguai é de 3,5 milhões de pessoas, há um Uruguai e meio de famintos sobrevivendo nesta inóspita “Era dos Bolsonauros”. Alguém tem dúvida de que Trotsky continua certo ao afirmar que a burguesia “não é capaz de assegurar ao povo nem o pão nem a paz”?
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