Pular para o conteúdo
BRASIL

Que nome atribuir a uma derrota?

Por que a classe trabalhadora não concentrou as suas forças a ponto de desafiar a estrutura de poderes que se estabeleceu com o intuito de intimar a aprovação da famigerada contrarreforma da Previdência? Qual a garantia que irá desafiá-la no próximo período?

Fábio José de Queiroz, de Fortaleza, CE
Luis Macedo/Câmara dos Deputados

Deputados comemoram a aprovação

“A crueldade é o caráter das leis ditadas pela covardia,
pois a covardia só consegue ser enérgica sendo cruel.”

(Karl Marx)

O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou no último dia 10 de julho, por 379 votos a 131, o chamado texto-base da contrarreforma da previdência, que nos dias seguintes recebeu algumas ligeiras emendas, que, em última análise, não modificam o fundamental do que foi aprovado. Trata-se de uma derrota da classe trabalhadora, isto é., de um triunfo do capital sobre o trabalho. Embora a resposta à pergunta, há pouco formulada, comporte uma nítida resposta, com efeito, ela sugere outras questões, as quais pretendemos discutir ao longo deste texto. Decorre disso o truísmo do título.

Esse problema tem a sua importância, uma vez que os traumas de uma derrota tendem a favorecer a produção de leituras simples e fechadas que, em grandes linhas, não ajudam os que necessitam de exames precisos e mais completos das equações que são postas pela luta de classes em suas distintas conformações.

A derrota de 10 de julho

Os trabalhadores já passaram por provas difíceis, dentre elas a “reforma” previdenciária de FHC (1998), que atacou aos setores da classe situados no âmbito privado da economia, e a de Lula da Silva (2003), que centralizou o ataque no servidor público. Os traumas da derrota, nos dois casos, não demoraram a cicatrizar e a classe trabalhadora retomou parte do seu protagonismo. No nível mais básico, essa observação mira as apreciações, legítimas, evidentemente, mas, a nosso ver, equivocadas, que já falam de uma derrota histórica. Ainda é cedo para uma conclusão tão categórica. “Ainda estão rolando os dados”, diria o poeta.

Há de se argumentar que a situação, hoje, é diferente de 1998 e de 2003. Não há dúvida quanto à faticidade desse raciocínio, o que não quer dizer que por ser diferente, de imediato, há de se afirmar que a classe se encontra em uma espécie de coma induzido e, dificilmente, se levantará no próximo período. Apesar dos contos e lendas com referência a esse estado de prostração, de feito, esse ainda está por ser demonstrado.

Mas, por que a classe trabalhadora não concentrou as suas forças a ponto de desafiar a estrutura de poderes que se estabeleceu com o intuito de intimar a aprovação da famigerada contrarreforma da Previdência? Qual a garantia que irá desafiá-la no próximo período?

O Congresso e a mídia tomaram emprestado o desespero das pessoas para comunicar que só a “reforma” poderia retirá-las, e ao país como um todo, das condições de desespero e desamparo.

A história do dia 10 de julho é para nós, antes de tudo, a história dos meses que a precederam e como as classes e as suas organizações se conduziram no fio da navalha, uma vez que o país estava aparentemente dividido em torno da matéria, embora se admitisse uma ligeira vantagem para as posições contrárias à proposta de “reforma” da previdência. Ainda estão por serem estudados os critérios com os quais se fez pesquisa, nos últimos meses, para avaliar o comportamento das pessoas com relação ao tema. Independentemente dessa consideração de um analista francamente desconfiado, o certo é que o governo, o Congresso e a mídia tomaram emprestado o desespero das pessoas para comunicar que só a “reforma” poderia retirá-las, e ao país como um todo, das condições de desespero e desamparo. Opor-se a ela era quase uma blasfêmia. Para essas instituições, nada teria sentido se não seguisse o enredo por elas publicitado. Elas ligaram o alarme de incêndio e, de algum modo, fragilizaram a solidariedade incipiente construída pelas jornadas de março a junho do ano em curso. Nesse contexto, uma sórdida e vasta publicidade midiática ajudou a moldar as ideias necessárias à criação de um suposto consenso em torno do caráter imperativo da “reforma”.

Esse fator não pode ser desprezado no exame mais detido do célebre dia 10 de julho e de seus resultados. Acontece que ele é insuficiente para explicar o que se passou no parlamento. É preciso observar o comportamento das organizações dos trabalhadores (e particularmente, de seus líderes) e a tática política que adotaram ao longo desse período.

O processo de mobilização foi insuficiente. Uma parcela dos líderes sindicais deu prioridade à negociação em detrimento de aprofundar o plano de lutas.

Não importa quão vigorosamente demonstre a maior parte das lideranças das organizações populares e trabalhistas, nós sabemos que as mobilizações, embora indiscutivelmente importantes, não alcançaram o nível necessário para barrar o trem da contrarreforma previdenciária. A constatação, óbvia, já foi feita: o processo de mobilização foi insuficiente. Uma parcela dos líderes sindicais deu prioridade à negociação em detrimento de aprofundar o plano de lutas. Criaram uma ordem de coisas que, na prática, dividiu todo planejamento em dois momentos: primeiro, se mobiliza. Depois cessa a mobilização, e se negocia. Essa estratégia se revelou desastrosa.

Por que nos referimos às organizações populares e trabalhistas? Fazemos isso porque elas são fundações nas quais o trabalhador pode se pôr de pé e se sentir relativamente apoiado. No mais, não havia dúvida sobre o que estava em jogo e o triunfo dependia da capacidade de luta e organização e não da competência de engenhosos negociadores.

O equívoco das forças populares já se desenhara na eleição de Rodrigo Maia para presidência da câmara. O parlamentar do DEM é um quadro da burguesia brasileira e foi visto como um mal menor por uma parcela da esquerda parlamentar e de governadores desse mesmo campo. Na liderança do “Centrão” e da Câmara dos Deputados, Maia encabeçou a sacolejante vitória da bolsa e dos rentistas sobre o povo, uma vez que os ganhos de um lado significaram as perdas do outro. A ilusão em Rodrigo Maia, ontem, e a separação do plano de luta das negociações, depois, não determinaram isoladamente a derrota, mas contribuíram para o desfecho do qual todos nós somos sabedores.

O limite da crítica decorre da admissão da atitude defensiva que caracteriza as práticas da classe trabalhadora na atual situação econômica e política. Não é só que a maioria das direções trabalhistas se recusa a tomar qualquer ação concreta contra a ordem do capital; é que esta, também, se impõe sobre a classe dos trabalhadores assalariados e do povo pobre nas quadras vigentes de uma época que parece desdenhar dela própria. Nessa perspectiva, o desejo irrestrito de organizar e lutar se transforma, algumas vezes, em frieza e apatia. E com o agravamento do quadro econômico, a coragem sucumbe perante o medo. Mentalmente, a classe que vive do trabalho, e que, em larga medida, aparenta perdê-lo a cada minuto, se torna mais vulnerável diante da ofensiva de seus inimigos de classe. Luta, resiste, se defende, mas isso é muito pouco ante a força de seus oponentes. Acresça-se a isso a irresolução de seus líderes e a capacidade criativa da classe dos trabalhadores assalariados, infelizmente, se restringe.

Inversamente, a burguesia trabalhou 24 horas por dia, durante meses, para alcançar o objetivo que, agora, vemos se consumar. Constituiu, de fato, uma retaguarda considerável para se alcançar os resultados dos quais temos plenos conhecimentos. Permitiu, por fim, as condições para que as suas representações políticas completassem a obra de espoliação de mulheres e homens trabalhadores.

Por tudo que se viu até agora, já é possível visualizar a localização em todo esse processo do governo Bolsonaro e da Câmara dos Deputados, e, dentro desta, da tarefa desempenhada pelo chamado “Centrão”. Sobretudo no referente às questões das conversações políticas, coube a Rodrigo Maia, e não a Jair Bolsonaro, a tarefa mais proeminente. Apoiado pela bolsa, pelos agentes do mercado financeiro e pela mídia empresarial, o presidente da câmara se tornou figura essencial no desenvolvimento da proposta. Ao governo coube fundamentalmente a função de abrir a torneira e liberar os recursos das verbas parlamentares, atividade decisiva para atingir o alvo prioritário: a aprovação da “reforma”.

Doutro lado, lembremos que o Poder Legislativo é uma instituição de um Estado no qual a força econômica nunca é um aspecto desprezível em um feixe complexo de fatores. Nunca foi seu papel o da proteção dos pobres diante dos instintos destrutivos dos ricos. A votação apenas expande os privilégios dos ricos e solapa as conquistas dos pobres e remediados. Por isso não surpreende as faces brancas que comemoravam no plenário do congresso. Elas eram o reverso das faces negras (maioria da população brasileira), as que mais hão de sofrer com o quadro pós-votação.

Os parlamentares não estavam – com esmero – cuidando das coisas do Estado brasileiro, exceto de si próprios.

Esses homens e mulheres do Congresso trazem consigo a adoração a um fetiche que, nesses dias, se traduziu na forma dantesca das emendas parlamentares, que representaram a transferência do controle de verbas públicas para as mãos dos deputados. Em parte, isso se fez em nome da mercantilização dos seguros sociais. Mas, há o outro lado. Os parlamentares não estavam – com esmero – cuidando das coisas do Estado brasileiro, exceto de si próprios. Usam uma gramática comum – tudo se faz em nome do “bem público” -, mas não deixam de se agarrar nas pequenas recompensas que lhes são oferecidas. Mais forte do que o conforto moral, eles se guiam pelo cálculo econômico e o interesse político. Parodiando Marx, como esperar que agisse com humanidade o legislador movido por seu próprio interesse? Nessa ordem de coisas, o conforto moral se torna apenas um objeto simbólico de propaganda.

Foi assim que os direitos dos trabalhadores foram sacrificados em nome dos interesses do “mercado”.

Ainda algumas questões

Nos meses que antecederam o primeiro turno no parlamento, ao debruçar-se sobre a mídia burguesa, o leitor (telespectador, ouvinte) era quase levado a acreditar que a simples votação dos deputados alteraria o fluxo da maré econômica e imprimiria fôlego para retomada dos investimentos, como repetiam, à exaustão, os especialistas a serviço do deus mercado. O espectro de vidas despedaçadas, pouco importava. A fúria pró-capital era o que prevalecia. No início, sopraram este segredo: a reforma da previdência era necessária para o futuro dos investimentos. Depois, soprou-se o segundo segredo, para fazer inveja ao segredo de Fátima, apenas para dizer que a “contrarreforma previdenciária” não era o bastante para a economia deslanchar. O certo é que, de segredo em segredo, as pessoas vão ficando desprotegidas de presente e de futuro, e a ofensiva contra os direitos da classe trabalhadora, de repente, tem apenas o céu como limite. Enquanto isso, a economia só afunda nas águas frias da crise.

É fato que uma grande explosão nacional se levantou contra o ataque a educação, mas não contra a ofensiva sobre a aposentadoria. Hoje, contudo, fica cada vez mais explícita que a destruição da previdência pública é somente a antessala da liquidação da universidade pública, e a liquidação da universidade pública é tão só o prólogo do completo desmoronamento das conquistas sociais do povo brasileiro.

Ou a classe trabalhadora e as organizações por ela fundadas se levantam ou se repetirá em agosto o desenho macabro de julho.

Nesses tempos difíceis, nos quais a mentalidade retrógrada ganha terreno, algumas pessoas se agarram aos farrapos de antigas lembranças, como se o passado teimasse em se perpetuar e encontrasse um meio de ignorar as tarefas do presente, dentre elas a luta contra a “reforma” da Previdência. Mas, essa não é uma tarefa para fantasmas. Ou a classe trabalhadora e as organizações por ela fundadas se levantam ou se repetirá em agosto o desenho macabro de julho. O segundo turno na Câmara dos Deputados se aproxima. Passada essa etapa, virão duas sessões do Senado. Depois disso, o abismo se estenderá de uma ponta a outra. E não que seja impossível atravessá-lo, mas por que fazer o mais difícil quando ainda é possível evitá-lo?

A derrota do dia 10 de julho ainda está debaixo de inspeção. As conclusões ainda são provisórias. Acontece que o tempo acelera o desenlace. Esconder a derrota é útil tão só aos que desdenham da própria sorte. Afirmar que estamos perante uma derrota histórica não ajuda a preparar os futuros combate. Somente a luta organizada pode fazer frente à crueldade e a covardia. Aprendamos a flutuar em águas agitadas.