Tabata Amaral é apenas uma, entre muitos deputados dos partidos mais vacilantes à esquerda, PDT e PSB, que traiu a classe trabalhadora, a população mais pobre e as mulheres na votação da reforma da Previdência. Mas chamou mais atenção do que todos os outros reunidos.
Já vi pessoas à esquerda, em geral antigos entusiastas da deputábata, reclamando desta atenção. Insinuam que há machismo, que ela paga o preço por ser mulher e jovem.
Acho, sim, que há machismo quando a deputada é vista como uma descerebrada que serve de fantoche do Lemann. Mas não o há também quando ela é apresentada como uma pobre moça que deve ser poupada porque ainda pode evoluir?
Kim Kataguiri é mais jovem do que Tabata Amaral e não vejo ninguém dizendo que é preciso ser condescendente com ele porque ainda está em formação e pode mudar. Claro: ele pode mudar. Todo podemos, até Michel Temer pode, embora seja improvável. Mas como ator político, deve ser tratado como aquilo que é, não pelo que seria o improvável Kim melhorado de um universo paralelo.
O mesmo vale para Tabata. Ela é jovem cronologicamente, mas muito preparada e esperta. Não é uma menina enganada por Lemann, mas alguém que vê nessa associação uma oportunidade. E que sabe aproveitar as oportunidades que surgem.
Por isso, o voto dela contra os direitos previdenciários repercutiu muito mais do que os dos outros sete pedetistas ou os dos onze deputados do PSB que violaram a orientação do partido, incluindo seu colega de incubadora política empresarial, Felipe Rigoni. Porque Tabata trabalhou ativa e competentemente, nesse início de mandato, para sair da planície e se tornar um dos nomes mais conhecidos do parlamento.
Não é espantoso que ela tenha se tornado a queridinha da mídia. Jovem, articulada, com cara de filha prodígio da classe média branca mas com uma “história de superação” tão ao gosto do público… Com o discurso afiado e anódino pronto para ser aplaudido pela mídia corporativa e viralizar nas redes.
O triste é que, com tantas jovens deputadas iniciando mandatos combativos, uma parte não irrelevante da esquerda tenha embarcado nessa e adotado Tabata como seu emblema também.
Tabata encarna o discurso tecnocrata e despolitizante da centro-direita brasileira. Enquanto o bolsonarismo aposta na tensão e no confronto, a linha de Tabata é uma versão do “there is no alternative” do thatcherismo. A esperança deles é que a saturação da insanidade que estamos vivendo nos jogue no colo desse neoliberalismo asséptico, em vez de abrir caminho para uma retomada da esquerda.
Tabata também é uma mostra do risco provocado pela escolas empresariais de formação de políticos (Acredito, Renova, RAPS). Elas dão condições materiais para a formação de “lideranças” de proveta, ao mesmo tempo em que exigem a adequação a um credo bem específico (despolitização dos conflitos, fé nas decisões “técnicas”, discurso fácil da superação da divisão esquerda-direita, repúdio à política de classe, aceitação das estruturas do capitalismo). Sua matéria-prima prioritária, como reconhecem seus próprios criadores, são pessoas com “histórias de superação”, o que de cara já cumpre um papel ideológico preciso.
O candidato que sai dessas incubadoras se credencia a representante por sua capacidade de “superar” e por sua pretensa competência técnica. É o oposto daquele que se credencia pela militância, por sua vinculação a movimentos sociais, por sua capacidade de dar voz a determinados grupos e interesses. Há, portanto, uma visão específica – tecnocrática e regressiva – da representação política.
Cobrada por seu voto contra a classe trabalhadora, Tabata foi acolhida pelo que há de pior na política brasileira e, ela própria, reagiu muito mal. Sua apaixonada defesa da “convicção pessoal” não é compatível com a posição de alguém que tanto exibe seu diploma de Ciência Política em Harvard: afinal, ela pretende que a representação se dê ao largo dos partidos? E sua resposta atravessada, de que não precisa de mandato porque é bem formada e sempre encontrará emprego, traiu um desprezo por sua base que, como liderança política em ascensão, ela deveria se esforçar por ocultar.
Tabata Amaral é apenas mais uma das muitas faces da velha “renovação política”, a que está sempre em funcionamento para impedir que o Brasil se transforme. Precisamos (verbo no passado) falar dela porque alguns caíram no canto de sereia. Agora, que já está bem estabelecido quem ela é, talvez possamos passar para outro assunto.
*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordenou o curso sobre o golpe parlamentar de 2016. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018) e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colabora com os livros de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil (Boitempo, 2016) e O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018).
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