Há quem olhe e não veja e se escuta não entende: o Brasil depois de 30 de junho

Fábio José de Queiroz

Sérgio Moro declarou: “Eu vejo, eu ouço”, indicando que, das ruas, aflora um grito que ele referenda e que, ao mesmo tempo, referenda o programa do governo que ele representa e, também, os seus atos ilegais no âmbito da “Operação Lava Jato”.  Não é hora de expor esse ponto de vista a uma crítica veemente, trazendo a lume outra linha possível de análise do país depois do domingo, 30 de junho?

O SIGNIFICADO DE 30 DE JUNHO

Compreende-se que se tenha cautela na apreciação dos últimos fatos, uma vez que as informações relativamente aos atos do último domingo ainda não são completas, mas, à primeira vista, os fatos, ao serem comparados com a fala de Moro, lembram verdades inconciliáveis que o ministro insiste defrontar. Com efeito, há muitas conclusões às quais chegar e nenhuma delas parece tranquilizar o espírito do profeta do “Eu vejo, eu ouço”.

Primeiro, o número de pessoas nas ruas foi menor do que no dia 26 de maio (data da última manifestação nacional organizada pela direita). Sérgio Moro, assim como o governo do qual ele é integrante, corre o risco de limitar seu exército de apoiadores ao bolsonarismo mais insosso e intolerante

Segundo, o MBL, diferentemente do dia 26, veio para rua, mas isso não implicou em mais gente mobilizada, e pior para eles, esse agrupamento, no limite, foi hostilizado pelas demais forças presentes nos atos. Ao que parece, as forças conservadoras começam a se dividir.

Terceiro, uma grande parte dos manifestantes mostrava pouco entusiasmo com pontos da pauta de Bolsonaro-Moro, notadamente com a reforma da previdência, apesar das tentativas da Rede Globo de buscar mostrar o oposto, com desesperada ênfase.

No que se refere à continuidade e à descontinuidade do fenômeno da extrema-direita, no Brasil, esses fatos demonstram que se o morismo-bolsonarismo é uma força superior ao seu tamanho de um ano atrás, sofreu forte desidratação se o analisamos à luz de seus números mais enfáticos, não só nos derradeiros meses de 2018 como nos alvores do ano de 2019.

Ibn Khaldun dizia que “a história é uma ciência nobre”. Dentre outras coisas, talvez quisesse sugerir com isso que as mistificações em torno de determinados indivíduos não duram para sempre, e que a história, em sua nobreza, trata de desmascará-los, tão certo como a terra gira em torno do sol. Sem rejeitar abertamente outras hipóteses, a impressão que pouco a pouco se afirma é a de que a realidade destruiu a pretensa moralidade do juiz Moro, a começar de sua base, a retórica moralista e salvacionista, que ele inescrupulosamente a esgrimiu com o fito de aniquilar os seus inimigos.

Desmascarado, o que Sérgio Moro pretende, agora, é construir castelos para se proteger das denúncias do Intercept, antes que seja reduzido à impotência, venha perder utilidade para o fascismo ululante do bolsonarismo e tenha que enfrentar não apenas os tribunais em sua forma institucionalizada, mas, igualmente, a fúria da opinião pública nacional e do mundo relativamente civilizado, processo que, em última hipótese, está em andamento, ainda que em seu prelúdio.

Isso expresso, voltemos ao nosso tema imediato: a manifestação da extrema-direita de 30 de junho. Pelo seu alcance, teria ela legitimado a reforma da previdência, a conduta deplorável de Moro e certas bizarrices do governo Bolsonaro?

Ora, se o número de adeptos escasseia aos poucos; se não há novas adesões e os antigos apoiadores se reduzem aos pregadores de medidas extremas de caráter autoritário e conservador; se, no espectro de partidários, as disputas fracionais quebram a antiga unidade, que se consolidara nos últimos tempos, então, o que concluir senão que o dia 30 último não cumpriu com os objetivos de fortalecer o programa ultraliberal do governo Bolsonaro, proteger o ministro da justiça e, muito menos, reforçar as posições governistas? As dificuldades para andar com a reforma da previdência, o desconcerto de Moro ante a denúncia de sua parcialidade hedionda e a sequência de embaraços envolvendo o condomínio governamental, de algum modo, não impõem essas conclusões?

O HORIZONTE TEM FUTURO?

O serviço prestado por Sérgio Moro – mediante a “Operação Lava Jato” – foi grandioso para a burguesia, e só por isso ainda não se jogou o juiz de Maringá aos crocodilos que auxiliam na defesa do palácio. Em cada época, a burguesia seleciona personagens a que se permitem certas “liberalidades” no cumprimento de missões “espinhosas e necessárias”, nem que isso signifique sacrificar as liberdades mais elementares. Esse fato foi posto de maneira notável pelo uso que se fez do juiz de primeira instância, que se eximindo de critérios de objetividade e honestidade, prendeu Lula, ajudou a eleger Jair Bolsonaro e, em seguida, se tornou ministro do novo governo. Eis o que se pode definir como um arranjo de conveniência recíproca.

Agora, a realidade cobra um preço. Para enfrentá-la e seguir reproduzindo as estruturas de dominação histórica, Moro seguirá mentindo ao congresso nacional e não se furtará em colocar a polícia federal contra os que desmascararam seus conluios com membros do ministério público e com delatores cuidadosamente construídos. Ele rejeita a incerteza que, um dia depois do outro dia, o põe diante de novas e candentes denúncias. Que fazer senão recobrar os velhos hábitos e métodos autoritários que sempre comprazem aos burgueses e aos seus acólitos de terno e gravata?

Porque seus próprios interesses estão em jogo, Sérgio Moro pode dizer: “Eu vejo, eu ouço”. Isso não quer dizer que talvez mais do que uma nova manifestação, quem sabe ainda menor que a do domingo passado, ele, em tempo breve, não necessite, urgentemente, de um oftalmologista e de um otorrino?

Somos tentados a imputar que o cenário está levemente mais aberto. Os que podem tudo, de certo, podem menos do que antes; os que podem menos, hoje, podem projetar arrancar um pouco mais. Para que isso se torne palpável, no entanto, não há caminho do meio; não há espaço para conciliação com o andar de cima, notadamente quando o país se encontra sob a órbita de um governo bizarro de extrema-direita. Desse modo, não convém abstermo-nos de um calendário de luta que, partindo do Fora Moro, tenha como divisa central a luta por derrotar o governo Bolsonaro e o seu programa. Esse é o futuro e ele não começa amanhã. Ele já está em curso.