Perguntaram então ao poeta
(Na porta do seu piemonte):
“De onde vem tanto pessimismo?”
Ao que ele respondeu
(Com invulnerável economia):
“Vem do meu otimismo”.
(Autor anônimo)
Vivemos uma situação que pode ser caracterizada, em longos traços, como difícil (no que toca às possibilidades de mudança política), penosa (no que diz respeito às demandas por conquistas sociais) e perigosa (quanto às ameaças aos direitos da classe trabalhadora, bem como às liberdades políticas).
Nessa perspectiva, salta aos olhos o grau de aniquilação simbólica das instituições da democracia representativa no Brasil. Há um presidente da república que, e isso a própria mídia comercial admite, se revela pouco sensível à chamada liturgia do cargo de chefe de Estado e chefe de governo, sem deixar de enfatizar um aspecto ainda mais decisivo: o seu notório diálogo com o ideário neofascista. Paralelamente, o legislativo se coloca como principal centro de articulação de uma reforma da previdência que pulveriza a esperança de um futuro digno para milhões de pessoas e faz a alegria dos especuladores da bolsa. Não menos importante, as Forças Armadas oferecem parte de seus quadros e ajudam a esculpir as linhas de um governo miseravelmente obscuro. Por fim, o judiciário, mesmo que no âmbito das minúcias legais mais comezinhas, tanto de maneiras óbvias quanto encobertas, mostra-se como uma parte do Estado não menos extraordinariamente infame.
Aliás, o que alguns estudiosos denominam de ruptura com a democracia liberal, em grande parte, não se se deve à conduta pouco republicana de seus representantes instituídos (juiz de primeira instância que combina com procuradores do ministério público, que proseia com a polícia federal, e, que depois de mil peripécias, do conhecimento do STF, se conclui com a nomeação do juiz para o cargo de Ministro da Justiça do governo que ele ajudou a eleger, depois de assegurar a prisão do candidato favorito ao pleito presidencial)?
Por incrível que pareça aos que já perderam a paciência com todo esse circo de insânia, no Brasil, a prova de fogo da democracia parlamentar pode estar ainda por acontecer. Se Jair Bolsonaro, o “gênio incompreendido” do século XXI, segue tirando proveito das dificuldades para avançar nas medidas de endurecimento do regime político; se o congresso insiste em legislar inteiramente de costas para o povo e de ouvidos abertos à oligarquia financeira; se as Forças Armadas persistem com a sua velha retórica salvacionista e ampliam a sua galeria de ultimatos ante as demais instituições da democracia parlamentar, e se, finalmente, o judiciário reafirma a linguagem sem nexo e o conteúdo vazio de decisões que, dentre outras coisas, mantêm o ex-presidente Lula da Silva preso em Curitiba, não há esperança de retomada da democracia política nascida da Constituição de 1988, conforme sonha parte do entorno mais progressista, e com o qual queremos discutir rapidamente, sobremaneira as questões que seguem.
Somos da opinião de que se as tendências da nova ordem, aberta com o impeachment de Dilma e consolidada com a prisão ilegal de Lula e a eleição de Jair Bolsonaro, se dilatam, o défice democrático tende ou a se aprofundar, à luz do bolsonarismo, ou, além da margem sangrenta dessa fração política, mediante uma saída bonapartista (com ou sem o aventureiro do PSL). De antemão, as consequências são incertas, mas, nem por isso, menos perigosas. Diante disso, o país está em uma encruzilhada: ou a luta social avança e provoca uma virada de sorte ou triunfa a insanidade memorável do bolsonarismo ou outra saída, possivelmente mais dolorosa. Evidentemente, a história é mais complexa e, entre as duas grandes linhas, há possibilidades de mediações, embora ligeiramente reduzidas pelo aumento crescente das dificuldades econômicas e políticas. Sem se falar do abismo cultural que divide a sociedade.
Desse modo, a precária coalizão de forças que luta contra esse estado de coisas precisa não apenas se avigorar, mas entender que a conciliação com a nova ordem é o caminho que empurra para o aprofundamento desse novo arranjo político e não para a sua superação; precisa compreender que essa luta não pode estancar o seu percurso nos passos que já foram antecipados pelos embates de março a junho; por fim, que o elo quebrado não será reparado ressuscitando o passado, mas construindo o futuro e esse passa necessariamente pelas tarefas do presente, dentre elas: a luta contra a reforma da previdência (e não por negociações para “aprimorar” o que não tem conserto), a defesa do “Fora Moro” ao lado do “Lula Livre”, apontando para derrota do governo Bolsonaro e de seu programa de extermínio das conquistas da classe trabalhadora e de seu método de aniquilamento da democracia política (não por acaso, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, em palavras inequívocas, afirma que não aceitará decisão do STF em favor de Lula).
Caminhamos cotidianamente ladeados e expostos ao perigo e devemos evitar dois tipos de erros simétricos. O primeiro, evidentemente, é achar que estamos perante uma avenida aberta e, agora, é só deslizar; o segundo passa por recitar os tempos duros e sombrios como se eles constituíssem uma muralha milenar e impossível de ser vencida. Nada está irremissivelmente dado. As dificuldades não serão removidas pelos desejos. Acontece que elas também não serão vencidas pela paralisia ou pela conciliação com uma ordem social e política que, se consolidada, ou ainda mais escavada, representará um ponto mais escuro que o da escuridão dos dias que correm.
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