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BRASIL

Evangélicos e a esquerda, entre a Marcha, a fé e a luta

Gabriel Santos, de Marechal Deodoro, AL
Reprodução / TV Globo

Marcha para Jesus, em São Paulo (SP)

Quinta-feira, dia 20 de Junho, feriado de Corpus Christi. No Brasil, o país com a maior quantidade de católicos, essa data não podia deixar de ser comemorada em todos os cantos. Neste mesmo dia ocorreu a 27° Marcha para Jesus. Neste evento que entrou de vez no calendário nacional, reuniram-se 3 milhões de pessoas em São Paulo. Para os que participam da marcha, as 12 horas de caminhadas e shows gospel são aguardadas durante todo o ano. Hora de agradecer a Deus pelas vitórias, bênçãos e conquistas. Bem como transmitir os problemas e necessidades para Ele.

A Marcha para Jesus é a mostra de algo que é cada vez mais perceptível: o crescimento da população evangélica neopentecostal no nosso país. A marcha deste ano contou, pela primeira vez, com a presença de um presidente da República. Bolsonaro, que é católico, discursou no evento, teve a ousadia de falar em uma reeleição, e agradeceu à população evangélica pelos votos que recebeu na disputa eleitoral. O capitão recebeu 11 milhões de votos a mais do que Haddad no eleitorado evangélico. O governador João Dória também acompanhou o evento.

Qualquer movimentação pelo campo da esquerda que busque construir uma verdadeira alternativa para o Brasil, e um novo projeto político, deve levar em conta o crescimento da população evangélica, que hoje soma 42 milhões de brasileiros e representa 27% do colégio eleitoral.

O crescimento dos adeptos da religião vem em reta ascendente. Em 1970, 92% dos brasileiros se declararam católicos. Para o censo de 2020 não se sabe como deve sair, porém, já se espera que os que veem no Vaticano o norte da fé sejam pouco menos de 60% da população. Os evangélicos, em suas diferentes matizes, devem ultrapassar pela primeira vez os 30%. Não se sabe no mundo moderno, uma queda tão rápida dos católicos. Essa mudança demográfica da religião dos brasileiros interfere e atua em diversos aspectos da vida cotidiana, assim como na política.

Uma “transformação evangélica” toma conta do Brasil. Os grandes centros urbanos se modificaram. Em Maceió, por exemplo, nos bairros periféricos toda esquina tem uma vendinha e obviamente uma Igreja evangélica. Seja grande ou pequena. Com muitos ou poucos fiéis. Estas igrejas abrem as portas no mínimo três vezes por semana e funcionam muitas vezes como locais de acolhimento. Essa realidade com toda certeza se repete na maioria das cidades.

No centro da cidade, disputam o espaço sonoro com os gritos dos vendedores ambulantes, com o pagode de Ferrugem, e com o forró de Xand Aviões, é sempre perceptível um louvor gospel. As músicas evangélicas mais conhecidas, mesmo aqueles que não são adeptos da fé, sabem cantarolar o refrão. O mercado da música gospel tem desde aqueles que preferem louvar Jesus ao som de rock, sertanejo, samba e rap. Muitos dos cantores gospel aumentam sua influência e viram candidatos em eleições. O deputado federal Marco Feliciano e o prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella são exemplos famosos dessa ascensão.

As igrejas e os pastores se tornam referências. De costumes e cultura. É na igreja que muitos moradores da periferia encontram a única forma de lazer. É no templo que costumam cantar, fazer amizades, rezar, se emocionar, conversar, e se divertir. Se os fiéis não têm algo para fazer, logo a igreja do bairro arruma uma atividade conjunta. Envolve os jovens, o afastando do tráfico de drogas. Faz ações com as mulheres, com os idosos, e por aí vaí. Os fiéis entram em mundo comum. Com relações e gostos comuns. E nesse mundo comum entram as rádios evangélicas, jeito de se vestir, redes sociais, canais de TV, e obviamente, valores familiares, assim como ódios comuns, e em época de eleição, candidatos políticos.

As Igrejas ocupam um espaço na periferia que o Estado não se encontra, e que a Igreja Católica abandonou após o Vaticano abrir mão da Teologia da Libertação, por considerar que esta era um perigo. Os partidos de esquerda tiveram e têm dificuldade para se relacionar com a população evangélica. Alguns, pela relação próxima com a Teologia da Libertação e o setor progressista do catolicismo. Outros pela falta inserção social nas camadas populares. E ainda, alguns preferem tratar a população evangélica com dado desprezo, e consideram estes genuinamente reacionários. O fato, foi que a partir dos anos 1990 a esquerda existente passou a ocupar os espaços de poder institucionais, girando para estes locais seus quadros, e deixou o local do “chão de barro”, os bairros, os locais de moradia, dos trabalhadores. A esquerda se afastou do povo no momento em que o povo se aproximava da igreja evangélica, e estas se aproximavam dos partidos burgueses menores e sem tanta tradição.

Aqui se utiliza o termo genérico “esquerda”, porém, o balanço maior, como não poderia deixar de ser, é do grupo dirigente do Partido dos Trabalhadores. O PT se tornou o maior partido brasileiro. Tinha e ainda têm influência de massas. Dirigiu de forma orgânica milhares de sindicatos e conseguia organizar milhares de pessoas. Quando chegou ao poder central, em Brasília, o PT passou a observar com atenção a população evangélica. Porém, não viram estes como sujeitos políticos ativos que pudesse transformar sua realidade. Mas, por meio do cálculo eleitoral, a população evangélica passou a ser vista como uma parcela do eleitorado que precisava ser ganha.

A estratégia utilizada pelo PT para ganhar o eleitorado evangélico se mostrou errado. Ao invés de disputar a população evangélica nos bairros, a partir de sua base. Foi escolhido dialogar com os pastores, muitos destes já conhecidos nacionalmente e envolvidos em diversos escândalos de corrupção e lavagem de dinheiro. Edir Macedo por exemplo, da igreja Universal,  já era dono de um verdadeiro Império, com rádios, canal de TV, e um imenso poder financeiro e midiático. Assim se reforçou o papel dos líderes políticos como indicadores de votos.

Ao invés de desconstruir muitas idéias reacionárias e que no fundo são antipovo, feita pelos magnatas da fé. O PT ajudou a reforçar esse comércio e o papel de autoridade destes líderes. No início, a estratégia petista, pareceria que daria certo. Porém, no fim, como toda política de conciliação, ela também acabou desmoronando e deixou um saldo político negativo. Foi em nome das pressões e negociações com as grandes igrejas evangélicas e com a bancada da bíblia, que o kit escola sem homofobia foi suspenso no governo Dilma, e deu origem a famosa fake news do “kit gay” e da quase onipresente “mamadeira de piroca”.

Hoje a bancada evangélica tem seu maior bloco desde que passou a atuar desta forma. Reúne quase 90 dos 513 deputados. Em nome da fé e das pressões dos grandes magnatas da religião, muitos destes deputados abandonam orientação partidária e atuam de acordo com a convicção da bancada.

É preciso apontar também que o bloco da bancada não é homogêneo. Apesar de ser base do governo Bolsonaro, a relação desta com o mesmo sofre desigualdades. Existe divergências centrais sobre o decreto que facilita o porte de armas, e sobre a o pacote “anti-crime” de Sergio Moro.

Na Marcha a recepção para Bolsonaro também foi diversa. Ao ser anunciado no palco, o capitão foi recebido com aplausos e gritos de mito, mas também com vaias dos presentes. Justamente porque suas medidas não resolveram e não vão resolver o problema do povo brasileiro.

Podemos aqui destacar as importantes ações do Pastor Sargento Isidoro. O deputado baiano, o mais votado em seu estado, que anda com sua inseparável Bíblia de capa preta, poderia ter saído de uma obra de Jorge Amado. O Pastor que também é Sargento, é um dos principais nomes na Câmara no combate ao decreto do porte de armas e na defesa da vida de jovens negros. Isidoro já fez diversas intervenções no plenário sobre os temas. Desde ações teatrais, até segurando placas com o escrito “Jesus disse amai-vos uns aos outros e não armai-vos”. Isidoro é uma prova da necessidade da unidade de ação com os diversos setores para defender as pautas democráticas, como a vida de jovens negros, por exemplo. É também a mostra de que é preciso dialogar com a população evangélica sobre problemas concretos do dia a dia de nosso povo, contrapondo as propostas neoliberais e reacionárias do governo, as nossas propostas.

Passado o necessário balanço e algumas observações, é preciso fazer a discussão de como a esquerda e as forças progressistas podem voltar a conversas com a população evangélica. Fazer como dito parágrafo acima, dialogando sobre temas da vida do povo brasileiro é o trabalho básico. Acesso à saúde, educação, emprego, salário, transporte digno, aposentadoria, lazer, são alguns caminhos possíveis.

A esquerda radical e socialista, que historicamente se manteve afastada do povo e em extrema minoria (por diversos motivos), deve definir o papel que quer ter nos próximos anos. Caso queira ter a construção de um projeto de Brasil e um projeto de poder para o país, furar a bolha e dialogar com a população evangélica vai ser fundamental.

Na Marcha para Jesus vimos Bolsonaro, usando uma camisa da Lacoste, fazendo sinal de arma e declarando contra a demarcação de terras indígenas. Não sou e nunca fui cristão, seja qual for a denominação da fé. Mas lembro vagamente, das histórias que escutei no colégio sobre o cristianismo, amor ao próximo e solidariedade. Diante disso podemos declarar sem medo de errar. Nós, que lutamos contra a desigualdade, estamos muito mais próximos dos valores cristãos do que Bolsonaro e sua trupe neofascista, disso já temos uma grande vantagem. O Brasil e os evangélicos são maiores e melhores que o discurso de ódio e do que o homem que hoje senta na cadeira de presidente.