OPINIÃO | O corpo de Lula

Fabiane Albuquerque*
Carol Burgos

Anos atrás acompanhei as notícias, nos principais jornais do mundo, sobre a captura e sentença de morte capital aplicada ao líder iraquiano, Saddam Hussein. Imagens do homem dominado (cabelos despenteados, boca aberta diante das câmeras para exibir os dentes, como um animal acuado e domado) giraram o mundo. Esse tratamento ao seu corpo foi aceito e legitimado porque houve uma longa narrativa anterior de construí-lo como o inimigo do Ocidente, da democracia e da civilização. Não entro no mérito do seu governo ditatorial. A questão é que seu corpo apareceu ali, sem chocar o mundo ocidental, na pior das condições. Anos  depois o império anuncia a “vitoria” sobre o terrorismo com a morte de Osama Bin Laden, mentor do atentado terrorista às Torres gêmeas dos Estados Unidos e ao Word Trade Center. Dessa vez não houve corpo, não houve troféu a ser exibido. Muito pelo contrario, esconderam qualquer  traço físico dele, inclusive proibiram até mesmo um túmulo para ser enterrado, com a alegação de  evitar um espaço físico, material que desse origem a possíveis peregrinações. O corpo é assim, ora usado para confirmar o poder, através de uma incessante repetição e exposição do mesmo, ora tirado de cena pelo mesmo objetivo.

Com Lula não é diferente, preservando as especificidades da historia brasileira e o caso que o envolve. Desde o escândalo do mensalão do PT vejo Lula ser associado a todos os escândalos de corrupções e onde era possível enfiar ali, entre uma noticia e outra, o seu corpo, assim foi feito. Como esse corpo aparecia, foi trabalho de seleção jornalística, proposital. Lembro-me de uma imagem dele, de boca aberta, outra em que sorria (o sorriso naquele contexto era de malícia, construído pela noticia para reforçar a mensagem de “o maior corrupto da historia do paίs”). Esse corpo foi exposto de todos os modos. Quando não era o seu era dos seus entes amados, o filho apareceu varias vezes, o da sua esposa, vozes de seus familiares em escutas telefônicas ilegais. O corpo de Lula, seus traços físicos foram associados à corrupção pelos meios de comunicação tradicionais e elitistas desse paίs, sem fôlego, sem trégua, até a exaustão,  até o convencimento.

Quando o corpo não aparecia era a voz dele, nas escutas telefônicas ilegais cedidas à grande imprensa. O corpo doente também serviu de chacota: cabeça raspada, rosto inchado. Inúmeras fake news chegaram-me por email e por celular. Uma delas trazia a voz do Lula, embriagado, alias, seu corpo foi construído também como um corpo  de pobre, sem o gosto das classes  refinadas e dirigentes, que bebem  champanhe e whisky ao invés de cachaça. Sinal da sua falta de requinte e etiqueta, indigno de tanta adoração. Seu corpo não podia frequentar um hospital de elite, o Albert Einstein, merecia as filas do SUS e o leito popular por ser de origem pobre, por ser nordestino, por ser Lula.

Sem contar no que fizeram com o corpo da sua falecida esposa, dona Marisa, imóvel e vulnerável num leito de hospital. Médicos que a atenderam provavelmente odiavam aquele corpo, aqueles corpos (da família) a ponto de vazar exames médicos e expô-la à chacota e humilhação. Quando se constrói um inimigo, o corpo do mesmo é o lugar de toda hostilidade social.

O corpo de Lula e da sua descendência foi transformado em  “Corpo  para ser odiado”, “Corpo para ser exposto” e “Corpo para ser exterminado” (se tentou com as narrativas midiáticas. Quando o corpo de Lula foi “capturado” pelos agentes do Estado brasileiro em São Bernardo do Campo e levado à sede da Policia Federal de Curitiba, outro áudio vazou: “Joga esse lixo para fora do avião”. O corpo do Lula encarnou o lugar de todas as frustrações, raivas, desprezo de um paίs que insistia em voltar “ao normal”: com o véu da democracia racial e da cordialidade, desde que todos fiquem no seu devido lugar, sem pestanejar. O corpo do Lula é visto pela elite brasileira como aquele que cruzou a linha “que nos separa”. Como ousas? A punição é o limbo social. Se existisse pena de morte no Brasil, iriam reivindicá-la. O crime para tal seria fabricado, isso é o de menos. O pobre também comprou a narrativa: ao olhar para o próprio corpo e o corpo de Lula, a identificação é ambígua; ora admiração, ora surpresa. Muitos preferiram não ousar a admirar, a admirar-se.

Outra noticia me chamou a atenção no dia 2 de maio de 2017. Atenta às imagens e, sobretudo, imagens de corpos, o Jornal Nacional anuncia que Aécio Neves prestou depoimento naquele dia.  A noticia foi dada assim, de forma seca, sem imagem e sem corpo, o que, na memória individual e coletiva fica mais fácil de apagar, ou sequer  registrar.  Varias foram as vezes em que o atual deputado federal Aécio Neves e sua irmã Andrea Neves foram até a sede da Polícia Federal prestar depoimentos sobre o caso de Furnas. Não nos lembramos porque não tinha corpos, corpos em um frequência considerável para ser assimilado, repetido pelos sentidos do corpo mais primitivos, corpos enquadrados de maneira a fortalecer a narrativa.

E a prisão do Lula e o processo eleitoral? O corpo do Lula podia ser um elemento de poder para a oposição no atual quadro político e econômico que vivemos desde o golpe de 2016. A voz do lula, o rosto do Lula, o  corpo de Lula, foram tirados de cena. O silêncio em torno do seu nome também fortaleceu a estratégia de dar-lhe invisibilidade. Lula continua preso, seu corpo proibido de ser visto, mesmo que para isso a lei precise ser rasgada ou interpretada conforme conveniências. Ele foi impedido de ir ao velório do próprio irmão, por medo que seu corpo suscitasse a paixão das massas. Seu netinho morreu, seu corpo foi autorizado a aparecer ali, mas restrito, vigiado, controlado, até um aceno poderia ser demasiadamente perigoso. Lula foi ao velório por uma hora e meia, seu corpo disse tudo, seu silencio também.

Vergonha para quem não entendeu que corpos podem transcender espaços e tempo. Estão tentando esconde-lo do povo, do mundo e da historia. Duvido que consigam por muito tempo. Uma hora o corpo vaza, esparrama, morto ou vivo.

 

*Socióloga e pesquisadora sobre o Corpo do Imigrante – Universidade Estadual de Campinas