7 – A Justiça é uma zona
Oscar Maroni, o gigolô-candidato a deputado nas eleições de 2018, não mereceria maior destaque aqui se não funcionasse como síntese emblemática do Bordel Brasil, em que política e prostituição caminham de mãos dadas – em sentido literal e figurado – em plena luz do dia. As imagens da performance do empresário-proxeneta em frente ao seu prostíbulo de luxo retratam as várias faces do problema (o “trava-língua” não é gratuito), mostrando os níveis “desiguais e combinados” (para lembrar Trotski) da promiscuidade da democracia burguesa verde-amarela. Como uma paródia tosca das “Correspondências” de Baudelaire, os poderes institucionais e os extraoficiais se misturam em “profunda e tenebrosa unidade” no lupanar tupiniquim, onde “perfumes sutis de carnes” se confundem com “outros, de corrupção, ricos e triunfais”.
Na mesma foto, aparecem o cafetão aspirante ao Congresso, uma funcionária de sua “empresa” do sexo e um magistrado que prostitui a justiça. Aliás, não dá para esquecer que a opressão contra a mulher já estava escrita no código “mitológico” jurídico: não é por mera coincidência que Têmis, a “Deusa da Justiça”, tenha sido assediada e estuprada por seu irmão, o todo-poderoso Zeus; e que os Três Poderes, que também são irmãos, produzam incestuosamente a “Justiça”. É muito sintomático, pois, que Têmis seja representada com os olhos vendados, sob o pretexto (a desculpa) de encarnar (ops!) o princípio da “imparcialidade” da magistratura: só mesmo cega – convenhamos – ela poderia julgar que a “zona” é “justa” (conforme o TJ, lembremos bem, o Bahamas Hotel Club não seria uma casa de prostituição).
É muito simbólico também que o fruto do incesto tenha sido Astreia, a divindade virginal que representa a pureza, a inocência, gerada na “zona” para ajudar a mãe a defender a Justiça. A filha, contudo, para não ser testemunha da degradação dos homens, deixou a Terra para morar no céu, virando a constelação de Virgem: a balança de Têmis, que Astreia carregava, tornou-se a constelação de Libra. A foto de Maroni fantasiado de “Metralha”, apertando os seios de uma “escrava” nua, sob a imagem divinal de Moro e Carmen Lúcia (sucedida por Dias Toffoli na Presidência do STF), em comemoração à prisão de Lula, é um retrato “mitológico” da nossa Justiça. Subvertendo o célebre aforismo do filme O homem que matou o facínora, de John Ford, diríamos: quando a realidade supera a lenda, registre-se a realidade. Qualquer semelhança com a ficção não é mera coincidência: o Bordel Brasil é mesmo uma grande zona!
8 – O “Teatro do Golpe” orgulhosamente apresenta O BALCÃO, de Jean Genet
Em 1969, em plena atmosfera repressora do AI-5, Ruth Escobar encenou pela primeira vez nos palcos tupiniquins a peça O Balcão, do subversivo escritor francês Jean Genet. Depois de quase três décadas da montagem inaugural – e mais de duas após o fim do regime militar – a companhia “Teatro do Golpe” reedita a tragédia como farsa no grande palco verde-amarelo do “Bordel Brasil”, no grave contexto dos ataques às liberdades democráticas e garantias fundamentais do Estado de Direito.
Há menos mistérios entre o céu de Astreia e a terra de Têmis (cujo nome, ironicamente, evoca o do golpista Temer) do que supõe a ingênua filosofia dos espectadores desta obra política. Não é à toa que O Balcão seja fruto do ventre de Genet, e que este tenha sido gerado no ventre de uma prostituta, e que esta pudesse ser fruto do ventre da tataravó da mãe da atriz de bordel que “contracenou” com o “pai desconhecido” Maroni Metralha no palco montado à frente do Bahamas. Realmente não é fácil compreender essa “árvore genealógica”, as raízes e ramificações de todas essas “relações familiares”: o escritor francês, que era filho de uma profissional do sexo, escreveu O Balcão para mostrar a promiscuidade do poder no escurinho do bordel.
Na peça Perdoa-me por me traíres, de Nelson Rodrigues, vimos a “casa de imunidades” de “Madame Luba” frequentada por ilustres parlamentares. Na peça de Jean Genet, encontraremos no bordel de “Irma” a imagem da autoridade togada: como as duas que aparecem nas fotos colocadas no altar pelo cafetão-empresário-candidato Oscar Maroni “Metralha”, na performance comemorativa da prisão de Lula. Como se fizesse coro à cafetina de Nelson, a “empresária” de Genet explica o seu negócio a “Carmen” – uma de suas “funcionárias” – assim:
Via de regra, não gosto de falar da vida particular de meus visitantes. O Grande Balcão é conhecido no mundo inteiro. É a casa de ilusões mais honesta e mais séria (GENET J. O Balcão. São Paulo: Abril, 1976. p.60).
“Carmen” (nenhuma alusão à ministra, por favor: o nome comum é mera coincidência) questiona a patroa: “Honesta?”. “Irma” se corrige: “Discreta. Mas para falar com franqueza, sua indiscreta, são quase todos casados” (idem, p. 61). Seguindo a mesma lógica de “Madame Luba”, enfim, a cafetina do dramaturgo francês tem plena consciência de que a chave do sucesso da “casa de imunidades” é a discrição. Em outros termos, o segredo do negócio é guardar segredo: a promiscuidade dos poderosos deve ser mantida em sigilo; a devassidão dos “homens de bem” deve ficar entre quatro paredes, trancada a sete chaves. Na “casa de ilusões”, o importante é que as “ilusões” pareçam reais aos ilustres clientes, para que a “realidade” pareça “ilusão” aos espectadores da farsa. Em outras palavras, é preciso sustentar a mentira, vesti-la com o manto da verdade, a fim de que o público não veja que “o rei está nu”. Por isso, o figurino cumpre uma função muito relevante na representação: como diz o ditado, “o uniforme faz o general” (ou o deputado, ou o juiz…). Na peça, entretanto, ocorre uma hábil inversão paródica dessa “verdade” popular: é exatamente vestindo as personagens que Genet revela sua nudez. Para exemplificar, lembremos um trecho da “rubrica” do autor no início do Quadro II:
Uma mulher, jovem e bela, parece algemada, punhos atados. Sua roupa, de musselina, parece esfarrapada. Os seios à mostra. De pé, diante dela, o carrasco. É um gigante, nu até a cintura. Muito musculoso. Seu chicote passa por trás da fivela de seu cinto, pelas costas, como se tivesse um rabo. Um juiz que, ao levantar-se, parecerá descomunal, também ele encompridado por andas, invisíveis sob seu traje, e o rosto maquilhado, de bruços, rasteja em direção à mulher, que aos poucos vai recuando (idem, p. 21).
Lendo essa descrição das personagens, vem à cabeça a foto de Maroni: ainda que a performance não tenha sido inspirada nesse quadro, o “ator” canastrão realmente parece o “carrasco”; a garota nua parece mesmo a “mulher jovem e bela”; Moro parece muito o juiz “descomunal”, “encompridado por andas”. As fortes semelhanças, porém, são meras coincidências: a performance não é a peça; ambas são ficções. Como também é ficção a imagem ampliada do juiz na mídia: os figurinistas do jornalismo fabricaram uma toga gigante para o justiceiro de Curitiba parecer “Gulliver” batendo o “martelo de Thor” no tribunal paranaense. Enfim, se a imprensa constrói ficções, é o teatro quem parece mostrar de fato a realidade. Aliás, há uma fala do magistrado “descomunal” da peça que representa com impressionante realismo a farsa encenada pela toga gigante de Sua Excelência curitibana. O que a personagem diz à mulher algemada em O Balcão poderia ser o que Moro não disse a Lula, para não entregar que todo o rito condenatório foi uma farsesca encenação nos palcos do Bordel Brasil:
Escute: é preciso que você seja uma ladra-modelo para que eu seja um juiz-modelo. Falsa ladra, torno-me um falso juiz. Está claro? (idem, p. 24).
Está claríssimo, Vossa Excelência!
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