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CULTURA

As Zoot Suit Riots e a hipocrisia estadunidense

Durante a Segunda Guerra Mundial, estilo de vestimenta adotado por negros e latinos foi criminalizado e, durante uma semana, jovens foram caçados nas ruas por soldados dos Estados Unidos

Tibita, do Rio de Janeiro, RJ

Sabe esse papo de que funk é música de bandido, que o jeito que os muleque se vestem dá para identificar logo quem é marginal? Que não tem nada de original, já sabemos, mas é bem mais velho do que alguns pensam, e assim como dizem isso do funk, já disseram do Jazz, que também sofreu com a criminalização. Hoje no Brasil o Dj Renan da Penha tá preso, e desde Louis Armstrong inúmeros artistas também tiveram que lidar com a criminalização da cultura. E se hoje um muleque preto sem camisa, com ou sem chinelo é identificado por muitos, automaticamente, como uma ameaça, já houve um tempo e lugar em que bastava um terno diferente para produzir o mesmo efeito.

Entre 3 e 8 de junho de 1943 houve, nos EUA, uma onda de crimes de ódio motivados pelo racismo que começaram na Califórnia e se espalharam por várias cidades dos Estados Unidos. Conhecidas como “Zoot Suit Riots” que pode ser traduzido como “revolta dos ternos Zoot” mas perdendo toda sonoridade, essa série de crimes se torna interessante não apenas como exemplo histórico, com semelhanças a processos que observamos no nosso dia a dia, mas pela absoluta estranheza da história de um pogrom racista realizado em solo estadunidense pelos “heróis” do exército americano, enquanto esperavam para embarcar e combater pela liberdade.

Anos 40, os EU começando a ter esperança depois da grande depressão foram logo baqueados pela Guerra. Durante os anos 30, e a ascensão de Hitler na europa os EU se recuperavam da depressão e viram crescer um forte movimento nazi-fascista em seu solo. Não é novidade que Henry Ford era um simpatizante e financiava a impressão de literatura racista; o Bund americano Germânico, o Comitê América Primeiro, o Front Cristão são apenas algumas das organizações pró nazistas que atuavam na época e chegaram a fazer marchas públicas com milhares de pessoas. Mas com o expansionismo alemão, e o horror do nazismo a opinião pública virou e também se viu fortes movimentos anti-fascistas. Com o ataque Japonês a Pearl Harbor e a entrada dos EUA no conflito, os movimentos pró nazistas foram majoritariamente varridos.

No entanto, a sociedade e o Estado mantiveram inúmeras práticas racistas guardando similaridades às vezes muito próximas com o regime nazista como os campos de internação para Japoneses e descendentes durante a guerra, ou as políticas racistas de planejamento urbano que criaram guetos “não oficiais” em praticamente todas as grandes cidades, e nos estado do sul, as leis discriminatórias que levaram o nome de Jim Crow permaneciam em vigor.

Campo para japoneses nos EUA
Campo de internação para Japoneses na California

Nos anos 30 e 40 trabalhadorxs negrxs migravam do sul para as cidades do norte que eram “menos racistas”, ao mesmo tempo que a imigração latina e especialmente mexicana tb trazia mais gente para as grandes cidades estadunidenses. Esses trabalhadores tb queriam se divertir, e com o pouco dinheiro que tinham disponível movimentavam bares (A lei seca caiu em 33), casas de show, e sustentaram a carreira de muitos artistas, que se apresentavam nessas casas, numa época em que o mercado fonográfico era segregado.

Dessa cultura nascem novas vertentes do Jazz (em 43 o Be Bop estava nascendo ainda) novas formas de falar, e uma nova estética. Não é o objetivo falar da música, mas desde 1935 quando começa a era do Swing o Jazz começa a tomar conta da cena musical, os estabelecimentos que atendiam apenas aos negros ou latinos ou ambos passaram a ser frequentados por brancos. E não apenas por oferecerem bebida ilegal, mas por que a vanguarda artística e cultural da sociedade estadunidense estava lá. Dá pra Imaginar o desconforto gerado nas mentes tacanhas e reacionárias? A música “popular” sendo mais valorizada que a “erudita”, artistas negros recebendo destaque até então inédito, artistas negros e brancos tocando junto, estabelecimentos sem segregação, adolescentes brancos ligando pras rádios e pedindo “race music” (nome estadunidense pra música de preto) nas paradas e, talvez o pior, mulheres brancas dançando com homens negros, e vice versa, e latinos também, e tendo relacionamentos.

No meio de tudo isso, os trabalhadores e trabalhadoras que tinham alguma renda disponível também queriam estar bonitos. Nas cidades com uma crescente população de negros surgiu o estilo e a estética dos Zoot Suits. Ternos compridos, calça bufante, tudo com muito pano, correntão, cores vibrantes. Na descrição de Malcom X: “a killer-diller coat with a drape shape, reet pleats, and shoulders padded like a lunatic’s cell” (algo como: “Um paletó matador grande feito cortina, lapelão enfeitado, e ombreiras acolchoadas como cela de lunático”). O vestuário era uma forma de se destacar do cinza da paisagem regular nos bairros pobres, e de tentar trazer para as comunidades um acesso ao luxo e beleza que eram negados pela segregação. Na Califórnia, com uma grande população imigrante latina, que tinha relações e sofria influência da cultura negra, o estilo foi incorporado pelos Pachucos e Pachucas como se chamavam os jovens latinos.

O racismo e a opressão sobre a comunidade latina se utilizaram dos Zoot Suits para identificar aqueles que os usavam com gangues, criminosos e delinquentes. Em 1942 um assassinato num bairro latino conhecido como os assassinatos da “Sleepy Lagoon” deu origem a um processo penal onde a juventude latina foi demonizada e a mídia usava as imagens dos jovens acusados de assassinato em seus Zoot Suits para exigir da sociedade e autoridades ação enérgica contra os criminosos.

A situação era essa, a guerra explodindo na Europa e Pacífico, os supremacistas brancos que antes adoravam Hitler sendo obrigados pelo clima a se calar, racionamento e escassez de vários produtos. E os “good old boys” (bons meninos) americanos que passavam pela Califórnia antes da guerra no pacífico ainda encontravam essas notícias. Mais que isso, enquanto aguardavam embarque descobriam que as jovens não davam a mínima pra eles, mas gostavam cada vez mais do estilo e do agito dos latinos e dos pretos.

Alguns esses meninos mimados, uns 11, desses que podem sempre contar com a conivência e uma passada de pano do Estado e da mídia, eram marinheiros, desceram do ônibus em Los Angeles, e arrumaram uma briga com um grupo de latinos. Disseram que eles eram antipatrióticos por que seus ternos gastavam muito pano numa época de racionamento. Aí a mídia divulgou como se eles tivessem ido lá “dar um jeito” nesses latinos abusados, criminosos que eram obviamente traidores, culpabilizando e criminalizando as vítimas. No dia seguinte, foram 200 até um bairro latino, eles espancavam, obrigavam a tirar o terno e queimavam as roupas de quem que encontrassem vestindo um zoot suit, ou roupas que eles não gostassem, incluindo mulheres e crianças. Ao longo daquela semana, milhares de militares e civis brancos saíram às ruas para encontrar, espancar e despir os Zoots. A polícia quando não ajudava estava orientada a não interferir, e apenas cidadãos latinos ou negros foram presos quando reagiam, milhares de feridos e provavelmente houve mortes, embora não se tenha registros oficiais. Mobile e Beaumont no sul, Detroit e Chicago no meio oeste, Nova York e Philadelphia na costa leste e Los Angeles, San Diego e Oakland na costa oeste foram apenas as principais cidades. Em Nova York, Chicago e Detroit principalmente, a população negra foi o principal alvo dos racistas. Depois dessa semana, outros ataques ocorreram, embora em menor número, numa onda de violência racista que durou mais ou menos até agosto.

Pachucos presos
Pachucas (como as jovens latinas se chamavam) Presas
Vítimas de ataques, um deles despido
Militares armados de paus procurando latinos para atacar

O governo mexicano, através de sua embaixada, formalizou uma queixa ao Departamento de Estado do Governo Federal estadunidense, e o governador da Califórnia, preocupado com as relações comerciais e com o influxo de mão de obra latina barata, lançou uma comissão para investigação que ficou conhecida como comitê McGucken (nome do bispo que o presidia). O relatório do comitê apontou imediatamente o racismo como principal responsável pelos tumultos e denunciou a mídia por identificar os zoot suits e os que os usavam com criminosos. E com base no relatório, outro comitê foi criado para sugerir políticas e métodos para lidar com a questão. A Primeira Dama Eleanor Roosevelt também manifestou preocupação com as atitudes racistas e com a situação dos imigrantes latinos.

No entanto, essas iniciativas tiveram muito pouco efeito, pois enquanto isso a máquina de propaganda racista estava em movimento. O prefeito de Los Angeles culpou os próprios latinos chamados de delinquentes, e os migrantes do sul dos estados unidos já que “o racismo não era um problema em Los Angeles” e propôs medidas para proibir a produção de roupas com “muito pano”. O comitê de atividades não-americanas do congresso, descartou influência nazista nos ataques. E grupos políticos e a mídia coorporativa se uniram para classificar, a primeira dama, a associação nacional dos advogados entre outros membros do comitê McGucken, e mais todos os que denunciassem o racismo e seu acobertamento nos ataques como… como o quê? o que seria? o que poderia ser? Comunistas, óbvio!

O Jazz seguiu, os negros e latinos seguiram e sua resistência serve de exemplo para aqueles que seguem precisando resistir até hoje, mas os Zoot Suits praticamente acabaram, e tudo isso, porque, como diz a música do Cherry Poppin’ Daddies, “os marinheiros descobriram onde suas mulheres estavam indo buscar amor”.

Edward james olmos e Rose Protillo na primeira montagem da peça Zoot Suit, de Luís Valdez

Referências:

Citação do Malcolm: Lennard, John (2007). Walter Mosley: “Devil in a Blue Dress” (e-book). Humanities-Ebooks. p. 45. ISBN 978-1-84760-042-4. Retrieved 2009-04-22.

Músicas:

Cherry Poppin Dadies – Zoot Suit Riot

https://www.youtube.com/watch?v=rq7fuCRJULk