No tempo médio de leitura desse texto, ocorrem, no país, cerca de 10 estupros, sendo 5 crianças (4 meninas e 1 menino) e 2 adolescentes. Apenas um desses estupros será denunciado. [1] Apesar disso, cada mulher que denuncia um estupro se torna alvo de uma campanha de difamação. No caso da denúncia contra o Neymar, essa campanha tornou-se pública e nacional, envolvendo a mídia e o presidente. O acusado tem direito a um julgamento justo, com presunção de inocência e ampla defesa, mas isso não torna aceitável que ele e seus aliados transformem a denunciante em uma criminosa perante a opinião pública.
A difamação pública de uma pessoa tem consequências perversas, dificulta a realização de um julgamento minimamente imparcial e justo. Além disso, a atitude do ex-advogado da moça, que a abandonou e revelou detalhes do caso, é ainda mais imoral. Todas as conversas que um cliente tem com seu advogado são sigilosas por lei e não podem ser reveladas. Um advogado que revela o conteúdo dessas conversas em uma rede nacional de televisão está cometendo um crime. O ex-advogado da denunciante, portanto, também deveria responder pelos seus atos perante um tribunal.
Um estupro por minuto
Apenas em 2017, mais de 60 mil denúncias de estupro foram registradas no país, sendo 70% das vítimas menores de idade. [2] Estudos apontam que cerca de 90% dos relatos são verdadeiros. [3] Como esse crime é, segundo a própria polícia, o que tem maior proporção de casos não relatados, o número real é bem maior. Estudos científicos da subnotificação dos estupros afirmam que apenas 10 a 15% dos casos são relatados. [1] Com 60 mil denúncias por ano no país, isso significa que o número real de estupros é da ordem de 500 mil por ano, 1400 mil por dia, um estupro por minuto. [4]
Em relação ao gênero e a idade, em média, a cada 100 vítimas de estupro, são 42 meninas até 13 anos, 30 mulheres maiores de idade, 17 moças entre 14 e 17 anos, 9 meninos até 13 anos, um rapaz entre 14 e 17 anos e um homem maior de idade. [5] Infelizmente, não há dados sobre estupros contra homens gays, contra travestis e transexuais.
Numa escola de Ensino Fundamental, com duas turmas por ano, há cerca de 700 crianças até 14 anos. Pelos dados apresentados acima, a expectativa é que 14 meninas e 3 meninos foram vítimas de estupro em 2017. Dessas 17 crianças, 7 já haviam sido vítimas de estupro. Em nove anos, tempo da vida escolar nessa etapa, ocorrerão mais de 150 estupros contra estudantes, muitos deles repetidamente contra as mesmas vítimas.
Portanto, em cada bairro, existem várias vítimas de estupro. Consequentemente, há também vários estupradores, quase todos eles são homens. Há uma epidemia de crimes de estupro no Brasil. Ainda assim, é muito comum que uma mulher denuncie um estupro seja ridicularizada, como se estupro fosse um crime muito raro. A culpa recai sobre a vítima.
A cultura machista, que dificulta que as mulheres denunciem os estupros, também atingem os homens que são ou foram vítimas dessa forma de violência. Por preconceito, um homem estuprado por outro homem é considerado homossexual. É como se, no fundo, ele quisesse, o mesmo raciocínio de quem diz que uma mulher é estuprada porque estava usando roupa curta. A realidade, entretanto, é o oposto: se a vítima quisesse, não seria estupro.
Na visão masculina, é um constrangimento estar no meio de um ato sexual e ouvir que a relação não está agradando a outra pessoa ou que esta se arrependeu. Os homens precisam aprender que, às vezes, isso acontece. Se uma mulher diz ‘não quero mais’ no meio do ato, o homem é obrigado a respeitar. Caso contrário, a relação se torna um estupro, que é um ato de violência.
Que mulher tem o direito de dizer ‘não’ para o Neymar?
Algumas pessoas pensam que uma mulher heterossexual ou bissexual necessariamente aceitaria um caso com o famoso e riquíssimo jogador. Visto de outro ângulo, isso é o mesmo que afirmar que mulheres não podem dizer ‘não’ para um homem famoso. Ainda que inúmeras mulheres queiram ficar com um homem, qualquer uma delas tem o direito de dizer não, mesmo que seja no meio do ato sexual.
Por isso, mesmo supondo que Neymar seja inocente, a difamação da denunciante como criminosa acaba afetando indiretamente todas as vítimas. A maioria das 500 mil vítimas de estupro de 2018 ouviram falar do caso, estão percebendo como a população brasileira trata quem denuncia um estupro. Entre as 200 mil meninas que foram estupradas ano passado, muitas não entendem praticamente nada sobre o caso, mas já entendem a lógica: a mulher que denuncia é ridicularizada.
É por casos como esse que muitas vítimas de estupro desistem de denunciar. Soma-se a isso a altíssima taxa de impunidade: apenas 5% das denúncias de estupro são realmente solucionadas. Assim, o raciocínio confessadamente revelado pelo Neymar de que é melhor difamar a moça do que ser preso pelo crime de estupro não tem nenhum fundamento. Um homem riquíssimo e cheio de recursos como Neymar não corre praticamente nenhum risco de ser injustamente condenado.
Direito de ampla defesa e do contraditório
Algumas pessoas, revoltadas com a barbárie que são os estupros no Brasil, estão convencidas em defender a prisão do Neymar sem julgamento. Apesar de compreender essa revolta, não concordamos com isso. Se defendermos que haja um tribunal de exceção neste caso, isso vai levar as pessoas a acreditar que isso deverá ser feito em outros casos.
Apesar de serem exceção, existem denúncias falsas. Um exemplo famoso é o caso dos Garotos de Scottsboro, jovens negros acusados de estupro após entrarem em um trem para brancos. A denúncia foi motivada por racismo. [6]
Evidentemente, ao contrário do que acontece hoje, as vítimas que denunciam estupro precisam receber todo apoio para levar adiante suas denúncias, pois as barreiras são muitas. Elas não podem, de maneira alguma, serem desacreditadas por visões parciais e distorcidas produzidas pela mídia, nem se pode julgar todo o caso com base em algumas mensagens de texto ou vídeos divulgados. Examinar uma denúncia de estupro é uma tarefa complexa e precisa ser feita de maneira racional, científica.
Por outro lado, não podemos passar a afirmar que toda denúncia de estupro é verdadeira. Caso contrário, abrimos brecha para acusações falsas feitas por razões diversas.
Ainda assim, mesmo no caso em que não concluímos que a denúncia é verdadeira, a denunciante não deve ser publicamente difamada, sob a pena disso afetar as 500 mil vítimas de estupro a cada ano. São 500 mil motivos para não difamar a mulher que denuncia um estupro.
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