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MUNDO

Relatos de uma guerra comercial: O papel estratégico da telefonia 5G

Mario Conte

Fachada da Huawei

Após o anúncio de aumento de alíquotas de tarifas de importação de produtos chineses de 10% para 25%, Donald Trump desferiu novo golpe na China. Publicou no dia 16 de maio um decreto que proíbe empresas norte-americanas comercializarem com companhias que “ameacem a segurança nacional” dos EUA. Uma das empresas diretamente afetadas pelo decreto será a gigante de tecnologia chinesa Huawei (pronuncia-se “uá-uei”).

Trump já havia acusando os chineses de fazerem uso da tecnologia de smartphones para espionagem de cidadãos norte-americanos e até mesmo de roubar dados de empresas e organizações internacionais.

Em sintonia com a medida de Trump, o Google proibiu a atualização do sistema operacional Android aos celulares Huawei, o que, na prática, torna os celulares da companhia incompatíveis com diversos aplicativos, como YouTube e Maps. Segundo a agência de notícias Reuters, o usuário da Huawei poderá atualizar aplicativos e fazer correções de segurança do sistema Android, bem como atualizar os serviços do Google Play e Gmail. Como a medida só deve entrar em vigor no dia 19 de agosto deste ano, ela afetará apenas os próximos lançamentos da Huawei, segundo nota do próprio Google.

Não apenas empresas de softwares como Google, mas fabricantes de componentes e peças que comercializavam com a empresa chinesa não poderão fazê-lo sem aprovação do governo americano. Segundo Ren Zhengfei, o executivo-chefe da Huaeiw, o valor de compra de componentes por ela está estimado em cerca de 67 bilhões de dólares anuais. Esses componentes constituem-se principalmente chips de fabricantes de semicondutores norte-americanos (como a Intel e a Qualcomm, cujas ações operaram em queda na semana anterior). Tais importações representam cerca de 50% dos chips utilizados pela empresa. A outra metade dos chips são fornecidos pela taiwanesa TSMC e pela HiSilicon, uma subsidiária da Huawei.

A Huawei hoje já é a segunda maior fabricante de smartphones do mundo, superada apenas pela coreana Samsung. A companhia chinesa cresceu em apenas uma década mais de cinco vezes sua receita anual: de 20 bilhões de dólares para mais de 100 bilhões, segundo dados da própria empresa.

A companhia pretende que a quinta geração em telefonia celular, ou 5G, como é popularmente conhecida, a coloque na liderança de vendas e negócios de comunicações em rede no mundo.

Por se tratar de um mercado estratégico, tanto do ponto de vista de valores, quanto da possibilidade de crescimento e tendências tecnológicas da próxima década, uma verdadeira guerra de informação está deflagrada. Através dessa guerra informacional, várias entidades e agências ocidentais acusam os chineses de roubo de tecnologia e espionagem.

Breve parêntesis sobre o 5G

A quinta geração de telefonia móvel permitirá tanto a transmissão (upload) quanto a recepção (download) de dados tão rápida e estável, que deverá ser a base para novos sistemas e produtos, como os carros sem motoristas, ou seja, pode transformar mais que o mercado da comunicação, impondo modificações no tanto em relações de trabalho quanto em modos e hábitos de consumo.

Uma das possibilidades da tecnologia 5G aplicada à robótica é de que os robôs industriais sejam a operados à distância, executando ordens em tempo real, o que serviria tanto para substituir operários em uma linha de montagem, quanto até mesmo permitir que uma cirurgia médica fosse executada à distância.

Estima-se que a velocidade de download de uma rede 5G supere em até vinte vezes a de uma rede 4G, cuja velocidade é estimada em 45mbps (megabits por segundo).

A tecnologia de 5G começou a ser implantada já este ano na Coreia do Sul e nos EUA. A China pretende implantar a tecnologia ainda este ano no país.

Em países como o Brasil, que ainda tem áreas cobertas apenas por telefonia 2G (voz sem dados) a previsão de chegada para a cobertura de 5G é estimada para 2023.

Segundo a BBC News Brasil a GSMA Intelligence (braço de pesquisa da GSM Association, que representa a nível mundial as operadoras de redes móveis) a cobertura 5G se consolidará na América Latina apenas por volta de 2025, quando chegará a pouco mais de 40% da população.

Hoje com o acesso crescendo e a inclusão digital as bandas de espectro existentes ficam constantemente congestionadas, o que resulta em falhas. Quem não passou por dificuldades em conectar rede wi-fi (sem fio) em espaço público ou com muitos usuários disputando a banda ao mesmo tempo ? A capacidade de aumento de amplitude da 5G visa atender também a essa necessidade.

Pela importância que terá essa tecnologia, os adversários da Huawei afirmam que caso ela faça parte do núcleo da infraestrutura 5G de um país, a empresa poderá espionar as mensagens que circulam pelas redes ou até mesmo desligá-las, um grau de controle das vidas e afazeres cotidianos do cidadão comum, mas também de suas administrações e governos, equivalente ao de distopias de ficção científica.

Trocas de acusações sem provas, mas com algum fundamento

O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, pressiona outros países a não usar a tecnologia da Huawei, acusando a empresa de espionagem e de ser um braço do Partido Comunista Chinês, mas não apresenta nenhuma prova concreta disso.

Antes do decreto de Trump, os EUA já ameaçavam interromper o compartilhamento de dados com qualquer membro da rede de nações de língua inglesa (os chamados “Five Eyes”, “Cinco Olhos” em inglês: Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, além, é claro, dos EUA) que vier a instalar a infraestrutura 5G da Huawei.

Embora a Huawei negue categoricamente qualquer ligação entre seus aparelhos e espionagem, os EUA lembram que a legislação chinesa obriga a companhia privada a compartilhar com o governo qualquer informação solicitada.

O Reino Unido tem dado passos importantes este ano, no sentido da implantação da tecnologia 5G em seu país seja através de equipamentos fornecidos pela gigante chinesa, ainda que limitando-os às chamadas “peças não essenciais”, como antenas, proibindo o comércio de peças que poderiam abrir brechas para acesso de informações confidenciais.

É importante lembrar que a prática de espionagem digital é uma prática da NSA (National Security Agency, a Agência Nacional de Segurança Americana) e que o seu ex-agente Edward Snowden ficou mundialmente famoso ao divulgar essa prática da NSA (https://esquerdaonline.com.br/2018/06/11/edward-snowden-povo-segue-sem-poder-mas-agora-consciente/), que incluía de espionagem a cidadãos até chefes de Estado de outros países.

Segundo o instituto de pesquisa Center for Strategic and International Studies (CSIS), a proteção de dados dos seus clientes define como as empresas chinesas são vistas no exterior que elas se recusam a ceder dados ao governo para manter essa credibilidade e, consequentemente, seus negócios. Como tudo que se trata da China, prevalece a opacidade.

Igualmente importante de ser lembrado, recentemente o governo Bolsonaro enviou comitiva à China para negociar softwares de espionagem digital por reconhecimento facial de imagens captadas por câmeras.

Se uma aparente paranóia americana pode ser sustentada logicamente pelo desenho da arquitetura da redes de telefonia, a própria prática dos americanos os obriga a desconfiar de qualquer nação que potencialmente possa controlar a comunicação em rede pelo mundo.

Agravando a crise e a credibilidade da Huawei está o caso de um engenheiro da companhia acusado de furtar um braço robótico da empresa alemã T-Mobile, quando ambas empresas desenvolviam uma parceria. A defesa do engenheiro de que o braço robótico “caiu” em sua bolsa quando deixava o laboratório é mais uma peça desse quebra cabeça fantástico, embora nada fictício, das disputas tecnológicas e mercadológicas, onde os fins parecem justificar os meios para os antagonistas.

Esse caso desdobrou-se na prisão da diretora financeira da Huawei, Meng Wanzhou, no Canadá, a pedido dos EUA, em dezembro de 2018. A prisão ocorreu quase simultaneamente ao acordo de trégua na guerra comercial conquistado na rodada do G20 após negociação dos presidentes dos EUA, Donald Trump, e da China, Xi Jinping.

Investigações e e-mails da companhia sugeriam mais que a intencionalidade do furto, mas que não teria sido uma decisão pessoal, mas um plano envolvendo executivos da companhia. A Huaei havia feito uma oferta de compra da ferramenta antes desta ser furtada. A oferta foi recusada pela T-Mobile, que temia uso da mesma para produzir telefones para seus competidores. A ferramenta testa a responsividade de telas de smartphones imitando o toque de dedos humanos e chama-se Tappy.

Meng Wanzhou é filha de Ren Zhengfei. Ela ainda responde a acusações dos EUA de tentar manter negócios com o Irã, violando as sanções internacionais contra aquele país.

Impedir o crescimento, para acabar com a concorrência

Segundo a Huawei, o crescimento da receita e mercado da companhia se deve ao preço altamente competitivo, o que a torna líder de vendas na Ásia e na África. Hoje é na Europa que se concentra seu maior mercado (29% das vendas) após a própria China (50% das vendas). E é esse mercado que será impactado pelo decreto de Trump, uma vez que o Google não opera na China.

A China é o principal parceiro comercial dos países africanos e sua participação nos negócios do continente aumentou cerca de 20% ao ano somente nas últimas duas décadas.

O ataque de Trump acrescido da “adesão” do Google deve impactar os negócios da empresa no curto prazo, frustrando os planos da Huawei de superar a Samsung ainda em 2020. Mas ao mesmo tempo aceleram a saída da empresa no desenvolvimento de um sistema operacional independente e aplicativos compatíveis ao mesmo.

Tal sistema operacional já tem até nome, “Hong Meng” (“sonho vermelho”) e foi anunciado para o outono deste ano (outubro). A empresa declara que esse prazo pode se estender até no máximo a primavera de 2020 (abril ou maio).

Um dos impactos dessa medida seria enfraquecer o que hoje representa quase um monopólio da Google, detentora de 85% desse mercado com o Android. A Apple e seu Mac iOS abocanham a quase totalidade dos 15% restantes.

A empresa ainda pretende fabricar semicondutores para seus próprios chips. Ren Zhengfei teria afirmado à imprensa estatal chinesa que “as práticas atuais dos políticos americanos subestimam a nossa força”. O mesmo Ren afirmou à BBC News em fevereiro deste ano que “não há a menor possibilidade de os Estados Unidos destruírem” a Huawei.

A empresa destina hoje um orçamento anual para pesquisa estimado em 20 milhões de dólares, um dos maiores orçamentos privados para pesquisa no mundo. Segundo analistas em tecnologia isso tem colocado a Huawei em uma das melhores posições no desenvolvimento da tecnologia de 5G.

 

As trincheiras de uma guerra comercial de posições

O velho esquema capitalista de abertura de novos mercados será sempre uma opção, mas o que está em jogo é muito maior para que a Huawei simplesmente reestabeleça sua rota comercial de curto e médio prazo. Qualquer tática comercial da empresa estará subordinada à estratégia de liderar o mercado mundial já na próxima década. Especialistas estimam que a Huawei tem condições de oferecer produtos 10% mais baratos e está um ano à frente em pesquisa e desenvolvimento em relação aos seus competidores.

Hoje a maior fabricante de semicondutores do mundo é chinesa, a TSMC, que produz os chips de iPhone, apenas desenhados pela Apple.

O maior impacto na Huawei não deve ser da perda de fornecimento dos chips americanos da Intel ou Qualcomm. A ARM, originalmente britânica, comprada pela japonesa Softbank, também anunciou que romperá as relações de negócios com a Huawei, concomitantemente à Google. A já citada HiSilicon, subsidiária da Huawei, utiliza licenciamento da ARM no desenho de seus próprios chips, além dos equipamentos de infraestrutura de telecomunicações, como antenas e roteadores empregados exatamente na instalação de 5G.

Como falamos o impacto se dá no curto prazo, não apenas atrasando o crescimento da gigante chinesa, mas toda implantação de estrutura 5G no mundo, muito provavelmente encarecendo-a.

Certamente a principal estratégia de Trump é atrasar o avanço da empresa, criando melhores condições de competitividade às empresas americanas.

Embora o encontro de Osaka do G20 que ocorrerá em junho (portanto antes de 19 de agosto) contemple uma nova rodada de negociações entre China e EUA e que Trump já tenha declarado que “é possível que, se fizermos um pacto, a Huawei faça parte desse acordo”, o que está em jogo no longo prazo é muito maior. Trata-se do controle e hegemonia dos mercados de telefonia de quinta geração.

Da mesma forma que a guerra comercial de Trump representa um passo que visa colocar um ponto final no multlateralismo das últimas décadas, a disputa estratégica pelo domínio das tecnologias de quinta geração de redes móveis podem encerrar o capítulo da história da comunicação conhecido como w.w.w. (sigla para world wide web)

Samm Sacks, analista do CSIS, considera plausível e mesmo provável haver um mundo com duas internets. Segundo ele uma “cortina de ferro digital” dividiria o mundo entre os países que fazem negócios com empresas como a Huawei (ou seja, com a China) e os que não fazem (ou seja, com os EUA).

Outras vantagens da 5G que não mencionamos anteriormente são o consumo de baterias (reduzido a apenas cerca de 10% do consumo atual), além da redução da latência, que significa o tempo de resposta de um dispositivo desde que o sinal lhe seja enviado. No 5G essa latência fica reduzida a um milésimo de segundo, o que torna possível o emprego da tecnologia em áreas estratégicas, como monitoramente de sistemas de segurança e defesa à distância.

Hoje está em curso uma verdadeira corrida armamentista, com China e EUA respondendo por mais de 50% dos gastos militares mundiais, rubrica eufemisticamente rotulada como “defesa”. O país que dominar o 5G estará um passo à frente também nessa corrida, que é um assunto que deveremos tratar em breve conferindo um espaço mais adequado que um parágrafo.

Segundo o jornal El País, o general aposentado James L. Jones, em um documento de recomendações publicado em fevereiro passado pelo Atlantic Council (um dos think tanks de Washington) afirmava que: “Se controlar também a infraestrutura digital do século XXI, a China intensificará a sua posição para os propósitos de segurança nacional e terá uma influência coercitiva sobre os EUA e seus aliados, já que essas redes processarão todo tipo de dados. E a China, obviamente, as usará para realizar espionagem”, complementando ainda que “A expansão do 5G chinês ameaçará a interoperabilidade da OTAN, já que os EUA não poderão integrar sua rede 5G segura com nenhum elemento dos sistemas chineses.”

Em artigo anterior encerrávamos dizendo que Trump havia cruzado o Rubicão e a sorte estava lançada. Aparentemente ao cruzar este Rubicão, Trump conscientemente lançou-se em um rio mais largo e caudaloso que pode implicar em uma fronteira física e virtual do comércio mundial e das relações diplomáticas nos próximos anos.

Muito mais que uma frente em suas batalhas tarifária, a guerra comercial de Trump contra a China representa ao desenho da geoestratégia do mundo, o que a guerra fria representou ao século XX.