Quem já ouviu falar em Fausto Bordalo Dias? José Mário Branco? Sérgio Godinho? Zeca Afonso? Há alguns meses venho comentando sobre o trabalho deles com alguns amigos e, assim como eu, quase ninguém conhecia.
É verdade que o Brasil é muito fechado culturalmente – ouvi dizer que somos o segundo país do mundo que mais consome a própria cultura. O primeiro, provavelmente, são os Estados Unidos. Da música dos nossos hermanos latino-americanos, por exemplo, conhecemos muito pouco. Pra isso há uma explicação razoável (ao menos quando tratamos de canção): não falamos a mesma língua; e as sutilezas da língua, sobretudo da língua falada, é o fundamento da arte da canção. Mas essa desculpa não pode servir para a canção produzida em Portugal.
Fausto, José Mário Branco, Sérgio Godinho e Zeca Afonso são alguns dos cantautores portugueses mais importantes da década de 1970. Estão ligados ao processo da Revolução dos Cravos e ao que os portugueses chamam de “canção de intervenção” – um tipo particular de “canção política” ligada ao processo revolucionário.
Não gosto do termo “canção política”. Como escreveu Augusto Boal certa vez, se toda atividade humana é política, toda arte é política, inclusive (e, talvez, principalmente) as que procuram ignorá-la. Porém, pra essa geração de artistas portugueses, faz todo o sentido destacar essa característica. A obra de todos eles foi atravessada pelo salazarismo e, depois de sua queda, pelo período revolucionário em 1974/75.
Durante a década de 1960 e início de 1970, as metáforas e os jogos poéticos para iludir a censura eram a característica principal das canções (nisso há semelhança com os cancionistas brasileiros no período da nossa ditadura militar). O maior compositor português nessa fase é, sem dúvida, Zeca Afonso. As suas belas letras simbolistas floresceram nesse solo, como a emblemática canção “Os Vampiros”, gravada em 1963. Destaque pra dois importantes álbuns, lançados poucos anos antes da Revolução: “Cantigas de Maio” de Zeca Afonso e “Mudam-se os tempos” de José Mário Branco.
A Revolução dos Cravos, de abril de 1974, foi uma explosão criativa. O envolvimento de amplos setores do povo no processo revolucionário, inclusive dos artistas da canção, fez com que houvesse uma mudança qualitativa no que era produzido. Os discos do GAC, o álbum “À queima roupa” do Sérgio Godinho ou o “Beco com saída” do Fausto, são uma bomba.
A contundência política transborda para a forma da canção. Mesmo certos didatismos ou narrativas de ocasião carregam a força da arte que extrapola os seus limites e que invade efetivamente a vida. Com todas as críticas que certo neoparnasianismo burguês possa fazer, sem dúvida, a Revolução foi um estímulo positivo para o surgimento de novos caminhos estéticos, em que a luta política, dia a dia, se fazia presente. São letras e musicalidades cruas, diretas, radicalmente engajadas. Não há paralelo (que eu conheça) na canção em língua portuguesa, em nenhum período.
Após um ano e meio de intensa disputa política, em novembro de 1975, o processo revolucionário chega ao fim. A canção portuguesa vive então uma terceira fase criativa, em que há ainda espírito de embate, mas já com algum distanciamento. Se as canções do período revolucionário tinham o entusiasmo de quem sabia que estava ajudando efetivamente a escrever a história, aqui elas se tornam mais narrativas, céticas e até melancólicas. Destaque pra canção “Atrás dos Tempos outros tempos vêm” do Fausto, gravado no álbum “Madrugada dos Trapeiros” de 1977.
Destaco ainda as canções “A cantiga é uma arma” e “Cantiga sem maneiras” do José Mário Branco; “Demónios de Alcácer Quibir” do Sérgio Godinho; “Maio, maduro maio” e “Grândola Vila Morena” do Zeca Afonso; e “Por este rio acima” do Fausto Bordalo Dias.
Quando conheci esses artistas, há poucos meses, meu entusiasmo foi muito grande. Era, sem dúvida, uma lacuna importante pra quem ouve e pesquisa música há pelo menos 17 anos. Pra mim, não é mais possível pensar canção política em língua portuguesa sem conhecer essa geração de compositores.
E nessa sexta, dia 31/05, às 19h, na Casa Marielle Franco, vai ter uma ótima oportunidade pra conhecer mais esses artistas. Faremos um encontro, meio show meio debate, em que eu vou tocar essas e outras canções, intercaladas por trechos de leituras de cena e narrações. Faremos também debate sobre a Revolução dos Cravos e a produção cultural no período. Vão estar na mesa a jornalista e integrante do movimento negro unificado Luciana Araújo e o professor Valério Arcary, que morava em Portugal e vivenciou a Revolução como secundarista. As leituras de cenas da época e as pequenas narrativas serão feitas por Sara Mello Neiva, Érika Rocha e Mariana Mayor. Saiba mais no link do evento:
*Paulinho Tó é músico, compositor e produtor musical. Tem dois álbuns autorais lançados, “Temporal” (2014) e “De cara no asfalto” (2016).
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