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BRASIL

Cartas de Londres (3) – O 15M no Brasil e o desgaste precoce do governo Bolsonaro: como as redes sociais e o mundo em rede aceleram todas as experiências e encurtam o tempo histórico

Roberio Paulino*, de Londres

Muitas vezes quando estamos imersos no turbilhão de um processo social não conseguimos compreender exatamente seu real significado e sua dimensão. Para isso, torna-se necessário parar, tomar distância, se elevar, ver de cima o que se passa, de forma panorâmica, ao mesmo tempo que recorrer à História, a processos passados, comparar. Além disso, se não queremos ser impressionistas, é importante levar em conta todos os elementos da realidade, não apenas alguns que nos afetam mais.

Recorrendo a um exemplo histórico para exemplificar a questão, historiadores apontam que os que viveram o tempo da Revolução Industrial aqui na Grã-Bretanha, iniciada por volta de 1760/80, não se deram conta em sua época da real dimensão do processo revolucionário que estavam vivendo. O termo Revolução Industrial só veio a entrar na literatura com esse nome já por volta de 1850, ex-post. Nem mesmo Marx e Engels o usaram no seu célebre Manifesto Comunista.     

Em minha segunda carta daqui de Londres, escrita antes das manifestações de 15M no Brasil, afirmei que a Revolução Tecnológica que vivemos e as redes sociais estavam acelerando todos os processos e as experiências com governos, partidos, ideias, e que, portanto, o desgaste do governo Bolsonaro seria provavelmente rápido. Nenhum de nós, imaginava, no entanto, que tão rápido. Amigos de várias partes do Brasil que leram aquela carta entraram em contato comigo para dizer que eu estava muito otimista, que não estava vendo a dificílima situação pela qual passamos no Brasil com a ascensão de um radical de direita ao governo. Alguns me disseram mesmo que a vitória de Bolsonaro era uma derrota histórica dos trabalhadores e que tínhamos que nos preparar para um longo inverno, no que toca à situação política no Brasil.

Penso que as manifestações de 15/05 no Brasil – que nos enchem de ânimo e orgulho, especialmente por nossa juventude, e nos dão muitas esperanças de dias melhores – ajudam a esclarecer a questão e revermos juntos nossas visões, o que há de negativo e o que há de positivo na situação política do país. Lutas sociais e mesmo revoluções não acontecem quando os povos estão bem, mas exatamente quando os direitos sociais e as condições de vida das populações são fortemente atacados, quando a situação se torna insuportável. O tamanho do ataque às universidades públicas e à educação turbinou as mobilizações. A estupidez e inabilidade de Bolsonaro e seus ministros também.

As manifestações de junho de 2013 foram progressivas, porque, apesar de começarem lutando contra os aumentos das passagens, questionavam de certa forma também a farra da construção de gigantescos estádios com dinheiro público desviado para a corrupção, entre várias outras bandeiras que levavam ao descontentamento. Mas tiveram aquele caráter difuso e terminaram por serem aproveitadas mais ao final também por grupos de direita para engatarem o processo de impeachment de Dilma Rousseff depois.

O 15M 2019 é claramente diferente, é uma grande manifestação nitidamente política contra Bolsonaro e contra a direita, com uma potência que alterou um pouco a situação nacional a favor dos trabalhadores e da juventude, colocando na pauta inclusive a possibilidade de impeachment do presidente, ampliando a crise no campo conservador. O 15M está mais para um maio de 1968 do que para junho de 2013.  

Não devemos de forma alguma menosprezar a séria derrota que sofremos nas últimas eleições, nem os ataques que estão por vir. O governo ainda não foi derrubado, a Reforma da Previdência continua tramitando no Congresso, os cortes nas universidades não foram suspensos. O movimento ainda é essencialmente limitado à juventude e aos trabalhadores da educação. Os demais trabalhadores ainda não se envolveram. O teste será dia 14/06. E mesmo que Bolsonaro caia, pode assumir um vice-presidente igualmente conservador e duro contra os movimentos sociais e os trabalhadores, talvez mais hábil, que vai tentar manter aquela reforma e os ataques às universidades e à educação. A grande burguesia liberal já se articula para essa substituição e começa a descartar Bolsonaro, porque já percebeu que ele pode incendiar os movimentos sociais e o país com seus arroubos.

Mas o fato é que a reação contra os ataques aos direitos do povo já começou, muito forte e muito rápida, depois de apenas quatro meses e meio da posse do novo governo. E pode contagiar outros setores da população e dos trabalhadores e mesmo derrubar Bolsonaro em pouco tempo, se as lideranças mais uma vez não vacilarem. Se a greve geral de 14 de junho for mantida e for forte, bastaria depois dela marcar uma nova paralisação nacional por um período maior ou por tempo indeterminado e governo estaria nas cordas. O que parece é que podemos estar vivendo apenas o prólogo de uma nova grande jornada de lutas no país, se algumas lideranças não se apropriarem e abortarem o movimento, tentando desvirtuar tudo apenas para o funil de um projeto eleitoral no próximo ano. Além disso, não podemos colocar a mão no fogo pela maioria de nossas centrais sindicais, pelo que já vimos de outras vezes. Mas agora trata-se de buscar toda unidade possível e preparar com força a greve geral para que ela se torne irreversível.   

Eu havia escrito outra carta, sobre outro assunto, que envio nas próximas semanas, mas, em função dos acontecimentos no Brasil, optei por mais uma vez abordar a questão de como a Revolução Tecnológica vem acelerando todos os processos e experiência sociais, como se relacionam com o 15M 2019. A comunicação em tempo real e as redes sociais explicam em muito a velocidade da mudança da situação política no Brasil.

Muitos analistas sérios em todo mundo têm mostrado o lado ruim de como as redes sociais vêm servindo a governos, a mega-empresas e conglomerados de comunicação para o controle das massas populares e de dados, ao monitoramento de cidadãos do mundo inteiro pelo governo norte-americano e apontam a nossa desvantagem na capacidade no impulsionamento em relação aos grandes grupos econômicos etc. São conhecidos os casos de manipulação de eleições, com disparos em massa de mensagens, fake news, inclusive por robôs, o que pode ter, inclusive, alterado o resultado das eleições no Brasil em 2018. Outros apontam que as pessoas estão passando tempo demais ligados em seus smartphones ou computadores nas redes sociais, que isso vem afastando e até mesmo alienando as pessoas, viciando crianças e jovens.

Na última carta falei do pessimismo de Zygmunt Bauman com as redes sociais e que Umberto Eco chegou a dizer que elas têm dado voz a milhões de imbecis. Tudo isso é certo. Esse é o aspecto negativo desse processo, que não menosprezo. Mas é apenas um lado da questão. Todo fenômeno em geral é contraditório, tem dois lados. A Revolução Tecnológica que vivemos e as redes sociais também têm também um papel extremamente progressivo, revolucionário, sem que as vezes nos demos conta.  

Nunca na história humana a informação viajou tão rápido. Temos informação em tempo real sobre tudo. Um fato corre o globo em minutos. Veio na minha cabeça a lembrança de um vídeo gravado na escotilha da ISS, Estação Espacial Internacional, há alguns anos por astronautas orbitando sobre o Atlântico, quando cruzaram aquele oceano em poucos minutos. Que diferença de um veleiro, que, ainda em 1850, demorava semanas para levar as novidades de um continente a outro.

Andando aqui pelas ruas de Londres notei também que, com a disseminação dos smartphones, por toda cidade as cabines telefônicas vermelhinhas – que cumpriram a função de nossos antigos orelhões aí no Brasil – estão vazias, abandonadas. Nem sei porque não foram ainda retiradas da paisagem urbana ou revertidos para outros usos. No Museu de Londres, que visitei no último fim de semana, existem expostos um aparelho de telex e um dos primeiros microcomputadores da década de 1980, como parte da história da cidade. Estavam ali literalmente como peças de museus. Mas isso foi ontem. A velocidade estonteante das mudanças encurta o tempo de tudo.  

 

Hoje, com a comunicação em tempo real pelas redes sociais e portais hospedeiros, possibilitados pela Revolução Tecnológica que vivemos, todas as pessoas que quiserem podem ter uma página com milhares de amigos com os quais se comunicam instantaneamente. Bilhões estão em aplicativos como FACEBOOK, WhatsApp, Twitter, etc. Essas páginas e milhões de blogs e sites independentes vinculam notícias antes das grandes redes de comunicação, quebrando de fato seu monopólio da informação, como já afirmei anteriormente. Toda cidadezinha perdida nos mais distantes rincões do globo tem suas páginas próprias, que reproduzem as notícias nacionais e internacionais em tempo real. Mesmo o rádio e a televisão têm que ecoar o movimento das redes.    

Mas vai muito além disso. Hoje, universidades, cientistas, profissionais, empresas, grupos sociais de todo tipo mantém comunidades virtuais, muitas vezes com integrantes localizados em diferentes países do mundo. Isso vem acelerando, por exemplo, a disseminação dos resultados das pesquisas e do conhecimento, a ajuda mútua, a colaboração, de forma nunca antes imaginada. Museus trocam informações em tempo real. Universidades e acadêmicos organizam encontros nacionais e internacionais através de grupos. Médicos ajudam em cirurgias do outro lado do mundo. Comunidades de pessoas com doenças raras se encontram e se ajudam. Mesmo uma criança pode ter o conhecimento do mundo em suas mãos através dos mecanismos de busca. Repito que no terreno da tecnologia estamos vivendo uma revolução sem perceber.     

Cheguei a Londres com receio de como iria me comunicar com o Brasil, já que minha empresa telefônica do Brasil não me dá acesso aqui. Temor desnecessário. Comprando um simples chip de uma operadora local por 10 libras podemos nos colocar em contato com todos no Brasil imediatamente. Mas nem era preciso, porque em qualquer lugar, residência, faculdade, restaurante ou café da cidade ou do planeta que tenha Wi-Fi hoje você se conecta ao mundo todo instantaneamente com seu celular ou computador, com vídeo, sem pagar ligação telefônica, pelo Skype ou WhatsApp. Vejo imigrantes e turistas falando com seus países de origem no meio da rua, nos museus, o tempo todo, enviando fotos, vídeos. A sociedade toda em rede, como disse Manuel Castells.

Daqui do meu cantinho na biblioteca da LSE (London School of Economics), onde passo a semana pesquisando e escrevendo e de onde comecei a redigir esta carta, a cada duas horas parei para descansar a cabeça e acompanhei em tempo real as mobilizações do 15M no Brasil e inclusive ajudei a mobilizar. Como o mundo ficou pequeno. O Brasil inteiro viu as manifestações do 15M pelas redes sociais em tempo real.

A Globo e demais emissoras já não têm jeito de esconder tudo. Não é só por sua postura de se afastar do governo Bolsonaro não, mas também porque já não podem ocultar os fatos para não perderem credibilidade e se desmoralizarem; as redes sociais os revelam antes. Alguns amigos acharam exagerado quando eu disse que o monopólio da informação está sendo quebrado. Pois está aí o novo tempo para todos que quiserem ver.

É verdade que as redes sociais podem ter dado voz a uma multidão de gente pouco letrada, que escrevem errado, muitos ignorantes, como reclamou Eco. Mas penso que não há qualquer problema nisso; o fato é que elas também deram voz a outras centenas de milhões de pessoas progressistas, esclarecidas, a milhões de jovens, que antes não tinha voz nenhuma e que hoje podem falar com outros bilhões, o que antes era muito mais difícil. As redes provocam o choque de visões, o debate, e isso é bom, apesar das provocações que vemos. Lembremos que as ideias erradas sempre existiram e se apoiaram na ignorância, na escuridão, na desinformação. Não foi à toa que um período da Idade Média foi chamado de Idade das Trevas. Por isso, governos autoritários têm tanto medo e censuram as redes sociais. Têm medo da informação.

Na minha tese de doutorado, mostrei como a ex-URSS começou a ficar para trás na corrida tecnológica no início da década de 1980 a partir do momento em que seus governos tentaram impedir a posse individual de microcomputadores e impressoras, para evitar a disseminação de informações. Um tiro no pé. Penso que nas próximas décadas teremos grandes e boas novidades políticas vindas da China contra seu regime autoritário. É só uma questão de tempo; o caldeirão está cozinhando. O governo chinês monitora e censura as redes, mas aquele país gigante se urbaniza e se escolariza rapidamente e se integra por mil vasos comunicantes. Nos EUA os governos monitoram dados de milhões de cidadãos no mundo através das redes sociais, mas enfrentam resistência a isso.

Os jovens, particularmente, têm sabido usar muito bem as redes sociais, já nasceram em seu tempo, não têm qualquer problema com isso. Lembro do banho que a juventude pobre, filha de imigrantes e discriminada nas periferias de Paris deu na polícia durante a Revolta de 2005, usando as redes sociais para enganá-la. A polícia ia para um local anunciado para as manifestações, mas elas irrompiam em outros bairros.

No Brasil, as manifestações do 15M 2019 foram convocadas essencialmente pelas redes. E a juventude esteve à frente delas. Governos sempre se aterrorizam quando veem milhares de jovens nas ruas, que têm o potencial de contagiar todo um país e iniciar grandes transformações, como foi em maio de 1968 na França, nas mobilizações contra ditadura no Brasil ou no Fora Collor.  Pela primeira vez em muitos meses, a direita perdeu a guerra nas redes sociais nestes dias do 15M, segundo diversos mecanismos de monitoramento.

Por isso, afirmei na última carta que a ascensão da direita no Brasil e no mundo não decorria do advento das redes sociais, mas também das experiências das populações com governos de esquerda. As redes sociais são inocentes. A direita tem sabido usá-las muito bem, talvez melhor que esquerda, porque tem muito dinheiro para impulsionar, para pagar funcionários e robôs, propagar fake news, que confundem as pessoas sem formação mais ampla, apelando aos preconceitos, aos demônios que assustam as cabeças de pensamento mais formalista, mobilizando os subterrâneos mais obscuros da mente humana, o medo, o ódio, a ignorância, a inveja.

Mas a mentira e as farsas têm pernas curtas e uma hora são desmascaradas. A esquerda tem a razão histórica, tem clareza e as melhores ideias. Mas não temos sabido explorar todo o potencial que as redes oferecem. É preciso ser mais ousados e dialogar, convencer, conquistar. Não é necessário insultar, humilhar, as pessoas mais fracas que votaram na direita. As pessoas pensam. Muitos jovens que apoiaram Bolsonaro já estão percebendo o erro e alguns até participaram do 15M. É por isso que eu disse na minha carta anterior que a Revolução Tecnológica, a comunicação em tempo real e as redes sociais poderiam tornar a experiência com Bolsonaro muito rápida, podendo mudar a situação política em pouco tempo.  

Além disso, será difícil voltar a ganhar alguns setores populares e de classe média se esquerda não souber ser autocrítica. Porque quando ela chegou aos governos aplicou algumas das mesmas políticas que combatemos hoje, fez alianças com os que nos atacam hoje, teve as mesmas práticas que criticamos hoje. O ódio que vemos atualmente mesmo em setores da população tem a ver em grande medida com as decepções com governos de esquerda. É verdade que houve um golpe contra Dilma, a Lava Jato, contra o que lutamos. Estamos a favor da liberdade imediata de Lula, porque está patente a parcialidade. Mas foram também os erros, as práticas e alianças da esquerda nos governos anteriores que pavimentaram o caminho para o impeachment de Dilma e a subida de Bolsonaro.   

Essa discussão vem sendo deixada de lado em função da necessidade de unidade do movimento social para enfrentar os ataques aos direitos sociais. Toda unidade na ação é preciso. Mas deixar de dizer as coisas como de fato foram é um erro. Unidade não pode significar veto ao debate. Afirmar isso que digo aqui com certeza é antipático. Martin Luther King dizia que para arranjar inimigos basta dizer a verdade. Mas é necessário. Não falo isso aqui com sentido de dividir, mas de nos fazer pensar sobre o passado recente para não cometer os mesmos erros.  

Dizemos que os apoiadores da direita são alienados, não pensam, são sectários. Mas devemos nos perguntar se, quando está no governo, no controle de algum órgão, partido ou entidade, esquerda é menos intolerante, menos sectária, mais autocrítica, mais democrática. Infelizmente, há pouquíssimo sentimento autocrítico na esquerda sobre seus erros recentes e como eles pavimentaram a ascensão de Bolsonaro. A sociedade está embrutecida. E a esquerda, como parte desse meio, também. Digo isso porque sem uma avaliação autocritica do passado recente, de sua política e de suas práticas, a esquerda cometerá os mesmos erros se chegar novamente aos governos.

Para ir terminando essa carta, voltemos ao nosso assunto que é como entender a situação política atual e o potencial das redes sociais na aceleração do tempo histórico e das experiências com ideias e governos. Por muito tempo, usamos a fórmula de que para seguir adiante precisamos do pessimismo da razão e do otimismo da vontade. Essa formulação é um pouco subjetiva. Não podemos ver a situação através da lente do pessimismo ou do otimismo, mas objetivamente, como ela é de fato, com todas as suas tendências contraditórias em diferentes sentidos, em constante movimento e, como insistia Marx, voltar a estudar toda a história para, com as lições do passado, não repetir os erros no presente. Enquanto bebemos do vigor da juventude, cabe às gerações mais velhas passar essa experiência histórica aos jovens, numa grande troca. Não há nenhuma situação ruim para sempre, tudo é uma questão de tempo. E tudo se acelera.

Quero terminar dizendo de nossa imensa alegria com os últimos acontecimentos no Brasil, que nos enchem a todos o coração de esperança e confiança em que nossa luta não foi nem será em vão. É preciso acreditar que a humanidade tem futuro, acreditar que uma hora a inteligência humana superará a ignorância, a mentira, o egoísmo, a injustiça, o ódio, a maldade. Já fez isso antes em situações muito piores. E sabermos ser ousados, dialogar, empolgar, conquistar corações e mentes para a melhor alternativa.  

 

Londres, 18/05/2019

 

*Robério Paulino é professor do Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). No momento realiza estágio pós-doutoral na SOAS University of London. Fundador do PSOL, candidato a governador do RN e a prefeito de Natal em 2012, 2014 e 2016.

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