Eu me acuso: Mais respeito pelos animais de quatro patas

Paulo César de Carvalho

Paulo César de Carvalho, o Paulinho, é bacharel em Direito (USP), mestre em Linguística e Semiótica (USP), professor de Língua Portuguesa (lecionou na ECA-USP) e autor de materiais didáticos de Gramática, Redação e Interpretação de Texto. Publicou seis livros de poesia, constando em antologias literárias no Brasil e em Portugal (como em É agora como nunca, da Companhia das Letras, organizada por Adriana Calcanhoto). Compositor, tem canções gravadas por diversos músicos da cena contemporânea. Foi militante da organização trotskista Convergência Socialista.

Gostaria de me retratar publicamente pelas faltas cometidas, que me acarretaram a pena de degredo por cinco dias da minha página. Os ínclitos e doutos magistrados robóticos do kafkiano Tribunal do Facebook foram tão generosos comigo que, como demonstração dos efeitos corretivos da penitência educativa (Estado e Religião andam de mãos dadas no medieval léxico contemporâneo – não peço perdão pelo paradoxo, porque esta irresponsabilidade é da “realidade”) que me aplicaram, o mínimo que eu poderia fazer para retribuir o nobre gesto pedagógico e provar que estou plenamente recuperado – portanto, apto a reintegrar-me à sociedade virtual – seria tentar me redimir do erro, justificando os meus reconhecidos graves deslizes aos (im)próprios (ím)pares. Enfim, indo aos “finalmentes” (como diria Odorico Paraguaçu), cometi duas transgressões da mesma desnaturada natureza (cultura, afinal, é outra história): se argumentasse, apelando à sabedoria (im)popular, que errar uma vez é humano, mas herrar duas vezes é “burrice”, estaria sendo reincidente, dando provas cabais e inequívocas de que ainda não mereceria de fato – e de direito – esta chance edificante e indisperdiçável de reintegração (anti) social. Com toda a (des)razão total, mais um “burro” me processaria, talvez por calúnia, quem sabe por injúria, ou ainda por difamação. Se não ele, provavelmente um, ou os dois, de seus progenitores: vejam só, Excelências, como realmente aprendi a lição. Quando fiz o trocadilho entre “jegue” e “evangélico”, chamando Damares de “evanjegue” em protesto contra a proposta de um “necrotério rosa” para as vítimas de feminicídio, ou o trocadilho entre “asno” e Bolsonaro, chamando Jair de “Bolsoasno”, não sabia que “jegue” e “asno” são sinônimos de “jumento”. Confesso, muito envergonhado, às tão impolutas quanto sábias autoridades, a minha notória grande ignorância no tema (não se trata de sintoma narcísico de desdém com os valores democráticos da “alteridade”, por favor). Como Vossas Excelências não desconhecem, os autos (e baixos) não renegam que eu desconhecia que cavalo e égua são equinos: inconfundíveis, portanto, com jegue, jumento ou asno, que são, obviamente, asininos, e com burros e mulas, herdeiros da família construída pelo matrimônio do senhor jumento com a dona égua. Depois deste curso intensivo de cinco dias no degredo digital da “Excola sem Partido” à distância, sei muito bem que cometeria outra falta grave se dissesse que fui uma “besta”: aprendi, doutores, que estaria xingando a mula, sem saber que a minha confissão, nesse caso concreto, seria uma ofensa não a mim, mas à irmã do burro. Tenho consciência hoje, depois da necessária e exemplar punição, que a filha da senhora égua com o seu respeitável marido jumento não mereceria ser comparada comigo, que não passo de um simples bípede primitivo que jamais aprendeu a lição básica da cartilha “Primeiros Pastos”: sei que nada sei porque não sei sequer – que coisa socrática! – dar um coice. Se eu não só tivesse lido e relido, mas também entendido bem e bem compreendido a “A Revolução dos Bichos”, saberia duplamente bem o que os egrégios juristas biônicos ruminaram muito multiplamente para poder (caval)galgar o mais alto pasto empoderado da (in)justiça: “quatro patas bom, duas patas ruim”. Os nobres robôs togados hão de perdoar a imperícia deste bípede beócio, que admite desolado a sua incompetência, e que hoje compreende – não sem muito pesar – que é preciso ser muito experiente para poder andar de quatro. Realmente foi muita pretensão, fruto da ingenuidade – achar que poderia mesmo ser páreo para um quadrúpede: sobretudo se ele, sendo cavalo, asno ou burro, subiu a rampa presidencial do Planalto; ou se ela, sendo égua, jegue ou mula, foi promovida a ministra. Nunca é demais repetir – mais para mim do que para a seleta comissão de catedráticos julgadores – que não é qualquer um que está (mãos ao alto!) autorizado a falar “asneiras”, que dizer “besteiras” é privilégio de poucos e raros. Em outros termos, depois da merecida pena a mim imputada pelo Supremo Tribunal da Ferradura, os excelsos senhores me ensinaram que a “burrice” é uma virtude: ou se nasce com a bênção, ou há que se pastar muito para, quem sabe um dia, deixar de saber até ser digno dela. Como diria o poeta José Paulo Paes (que era bípede e, para piorar, ainda perdeu uma perna), “a poesia está morta, mas juro que não fui eu”:

PARA BOM ENTENDEDOR, MEIA PALAVRA: BOS-

Desfaço a ressalva de que não estou defendendo o poeta “perneta” (como ele mesmo ironizou a sua deficiência de três “patas”), para que a robótica corte não me confunda, me acuse e me descarte de novo. Está escrito na tábua dos desmandamentos da porta do inferno do estábulo que ter apenas uma pata, desconforme as regras irregulares vigentes, é agravante grave, tornando mais gravíssimo ainda um crime já muitíssimo grave: isso significa que se Paes participasse desta guerra virtual, e publicasse seus petardos verbais neste desgoverno reacionário, postando os controversos reversos de seu poema-problema “metaléxico”, seria condenado ao degredo perpétuo por denunciar a “economiopia”, por protestar contra o “desenvolvimentir”, por acusar os “patriotários”, por lamentar a escolha dos “suicidadãos”. Nesta nova velha “Era Asinina”, neste velho novo “Grande Desertão” das “Pós-Veredas”, enfim, nem Rosa teria paz e se livraria da “coroa de espinhos” da acrítica virtual desvirtuada: o escritor seria despetalado pelas bocas boçais abertas das analfabetas bacantes banguelas do Facebook (sem Deus me livros que ressalve) pela falta de “burrice” de juntar (antes o verbo fosse “jumentar”, diriam os robôs-boss) “Hitler” e “atrocidade” na palavra profana “hitlerocidade”. Mesmo Rosa – que era de Cordisburgo, e não de Luxemburgo – seria pintado de vermelho, enquadrado no crime tipificado como “marxismo cultural”. Numa sentença equina de extrema-direita diretamente do estábulo judiciário do haras do estado de delírio, tão certa quanto um coice na consciência, entre relinchos de artigos ríspidos, zurros de incisos incisivos, cascos de parágrafos únicos, numa decisão galopante de equina iniquidade, as delicadas pétalas das páginas de Rosa seriam feridas sem pena por cravos crentes e fanáticas ferra(dita)duras. Guimarães seria mau diplomata-mata, então, porque só tinha duas patas: se tivesse mais duas, como diria bem alto o arauto Araújo, muito bem nutrido de farta alfafa da falácia latifundiária, falaria fácil que “hitlerocidade” era na pós-verdade um neologismo que ressignifica que o Führer era uma furiosa praga mefistofélica nacional-socialista, logo um fausto carrapato psicopata comunista no repasto DEMOcrático capitalista. Eu não poderia, pois, ter falado “evanjegue”; eu não poderia, portanto, ter falhado: “Bolsoasno”. Eu não poderia ter postado, por (mau) exemplo, o Thoreau turrão, prova de minha insubordinada “Desobediência Civil” aos quadrúpedes no pódio despótico do poder:

“A grande maioria dos homens serve ao Estado desse modo, não como homens, mas como máquinas, com seus corpos. São o exército permanente, as milícias, os carcereiros, os policiais, os membros da força, etc. Na maioria dos casos, não há um livre exercício, seja do discernimento ou do senso moral: eles simplesmente se colocam no nível das árvores, da terra e das pedras. E talvez se possa fabricar homens de madeira que sirvam igualmente a tal propósito. Tais homens não merecem respeito maior que um espantalho ou um monte de lama. O valor que possuem é o mesmo dos cavalos e dos cães. No entanto, alguns deles são até considerados bons cidadãos. Outros – como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, ministros e funcionários públicos – servem ao Estado principalmente com seu intelecto. E, como raramente fazem qualquer distinção moral, estão igualmente propensos a servir tanto ao diabo (…) quanto a Deus. Uns poucos (…) servem ao Estado também com sua consciência, e assim necessariamente resistem a ele, em sua maioria, e são comumente tratados como inimigos” (Henry Thoreau, “A Desobediência Civil”, L&PM, 2016, p.12-13).

Eu sei que poderia ficar calado, porque ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Mas eu não fico calado não porque sou obrigado a falar: eu falo, desobrigado, para dizer “obrigado” pelo recado de cuidado dado pelos magistrais magistrados imaculados digitais. Ainda que agora eu esteja produzindo prováveis provas reprováveis contra mim, tenho dois argumentos a meu favor. Em primeiro lugar, como diz o “vidente” Rimbaud, porque “Eu é um outro”: isso quer dizer que “eu” e “mim” somos outros, isto é, somamos pessoas diferentes que habitam o mesmo corpo. Por isso, eu lhes disse no título e repito: “eu me acuso”. Como os senhores que não comem grama e devoram a gramática sabem bem (ouçam os ecos), “eu” sou pronome reto, “mim” é o pronome oblíquo em torno de quem orbito – e com quem brigo comigo. Disso decorre o segundo argumento: crendo na interpenetração benenvolvente desta agreste egrégia junta e joga fora de notórios e notáveis robôs otários facebookianos, eu teria o bendito benefício da “delação premiada” contra mim, não é assim? Ou seja, quer dizer, isto é, é isto: mesmo se os senhores condenarem a “mim”, “eu” serei absolvido, não é mesmo? Não seria justo, afinal de contas, que “eu” pagasse a conta por “mim”, certo? Eu não descansei de desdizer e redizer a mim: “como vovó já dizia” (Araújo já citou Raul, né?), quem fala demais dá bom dia a cavalo. Por isso, eu me digo de novo a mim mesmo (que é mesmo outro): não seja louco, fique calado – e estamos todos conversados. Que (des)culpa teria eu se foi mim quem não me ouviu? Como já tomei contratempo demais destas nobres máquinas sempre tão (des)ocupadas em caçar e cassar homônimos e parônimos culpados (des)ocultados, digo aos senhores repensando com os seus borbotões o que de novo repito a mim: eu me acuso porque Drummond tem razão em me dar um pito. Isto é, isso não são “modos de xingar”, como diz-que-me-diz o diagnóstico título da sua crônica metalinguística como uma merda no meio do caminho/uma pedra no meio do intestino:

“Jamais aprovei o uso indevido de nomes de animais para qualificar ou verberar deficiências intelectuais ou morais do próximo. A injustiça feita ao cachorro, alçado a ‘cachorrão’, como sinônimo de mau caráter, dói e revolta. A zebra não é responsável pelo baixo QI de seres humanos, nem o camelo tampouco. Burro, burroide, besta, bestalhão, jumento: outros exemplos de impropriedade vocabular, que não recomendam a linguagem crítica. Irracionais prestantes, muitas vezes providos de razão prática luminosa, não costumam, que eu saiba, xingar os de sua espécie com invectivas desta ordem: – Homem! Homúnculo! Reverendíssimo homem! (…). Salve, paladino do pulcro dizer, no instante da ira! Com exceção do ‘onagro’: o animal não merecia trato pejorativo. Respeitemos a natureza, até na cólera” (Carlos Drummond de Andrade, “As palavras que ninguém diz”, Record, Rio de Janeiro, 1997, p. 25-26).

Depois deste colóquio hermenêutico, pois, se eu tivesse o poder dos senhores, daria mais uma (dita)dura lição a “mim”, que insiste em argumentar que bastaria então ter dito “Bolsonagro” em vez de “Bolsoasno”. Como “mim” me diz em riste, “asno” todo mundo reconhece, sem saber que “onagro”, que todo mundo desconhece é o mesmo bicho de quatro com outro nome, como “jegue” e “jumento”. Se eu aprendi mesmo a lição que repito pela última vez a mim, não ofenda os quadrúpedes pelo baixo QI dos políticos! Chegando aos finalmentes, depois de tantas acusações contra mim, o Supremo Tribunal do Facebook há de me absolver porque eu redesaprendi a deslição, sim ou não? Se não há nenhum senão, assim, não há “arjumento” algum contra “eu”, ainda que haja algum jegue que o diabo descarregue contra “mim”: sem saber que eu, enfim, sou um outro, mesmo sendo mesmo do contra ainda!

 

PAULO CÉSAR DE CARVALHO foi bloqueado há dois anos, perdendo todos os contatos, fotos de família, artigos de circunstância e poemas (que não salvou por um misto de displicência e incompetência digital). Há seis meses, teve também sua conta de e-mail cancelada, perdendo arquivos de mais de vinte anos. Na semana passada, foi bloqueado novamente no Facebook, por cinco dias, pelas razões expostas nesta “carta” de mim/tensões.

PS1: Valha-me São Dreyfus dos Acusados, consola-me São Zola dos Exilados!

PS2: Peço perdão, Senhor, por não saber ainda bem quem é o santo nem qual é a oração dos bloqueados…

PS3: Despeço-me do barro ao barroco, com a bendida bênção maldita de São Gregório de Mattos:

“Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-nos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, e já cobrada
Glória tal, e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória”.

OBS: Para os pastores que pastam:

Jeremias 5:21
“Agora, pois, atentai para estas palavras, ó povo insensato e tolo! Sim, vós que tendes olhos, mas não quereis enxergar; que tendes ouvidos e se negais a ouvir”.