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EDITORIAL

80 tiros são ‘a política do Governo’

Editorial

Amigos e familiares de Evaldo dos Santos Rosa, que morreu baleado por soldados, levantam bandeiras do Brasil manchadas de tinta vermelha durante seu enterro no Rio de Janeiro Brasil (AP Foto/Silvia Izquierdo)

Há exato um mês, dia 7 de abril de 2019, era uma tarde de domingo e uma família negra da periferia do Rio de Janeiro se dirigia a um evento social, um chá de fraldas. Porém, nem mesmo todo este cenário de pretensa normalidade foi capaz de impedir o fuzilamento em “praça pública” do carro desta família, que resultou na morte do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo, em Guadalupe, na Zona Norte do Rio.

Execução sumária como política de segurança pública

A prática de fuzilar com oito dezenas de tiros, às 15h, em um bairro popular do Rio de Janeiro, pode parecer algo tão bárbaro que nos leve a crer que tamanha atrocidade ocorre como exceção em nosso país. Mas, infelizmente, estamos diante de uma prática recorrente protagonizada pelas polícias, em especial no Rio de Janeiro, comandadas diretamente pelo governador Wilson Witzel (PSC).

O ano de 2019 já bateu recorde no número de mortes por policiais no Brasil. Somente de janeiro a maio, já foram registrados 434 homicídios, somente pela polícia do Rio de Janeiro, o maior índice quadrimestral registrado nos últimos 20 anos em nosso país.

Em 2018, foram 1534 (maior desde 1998) homicídios embasados nessa política de segurança pública, que tem como primeira opção atirar. De fato, a escalada de aumento dos números pode ser identificada desde 2013, com a entrada maior das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) nas periferias, em especial no estado do Rio de Janeiro e a política de higienização das grandes cidades para sediar os megaeventos da Copa do Mundo e Olimpíadas.

Pacote Anticrime do excelentíssimo ministro Sérgio Moro

Toda essa trágica realidade vem sendo alimentada por um discurso ideológico de “segurança nacional” que tem como premissa a ideia de “bandido bom é bandido morto” e perseguição implacável ao “tipo suspeito”. Por outro lado, há uma grande ação do governo Bolsonaro com a proposta de aprovação do projeto Anticrime do ministro Moro. Este, que ao abandonar o discurso de “paladino da justiça contra a corrupção” propõe um projeto que secundariza medidas de combate à dita ‘corrupção’ e tem como centro a anistia e redução de pena a policiais que comentam ações motivadas por “medo ou emoção violenta” – o excludente de licitude, entre outras.

Com certeza, a democracia brasileira não foi capaz de garantir a uma parcela significativa da população um conjunto mínimo de direitos sociais prometidos na Constituição Federal de 1988. Esta parcela atinge, em especial, o povo negro trabalhador, que após a abolição tardia, não teve reparações históricas mínimas que dessem condições de acesso a educação, saúde e trabalho. Portanto, não é uma novidade a absolvição de policiais que cometem homicídios durante ações militares, porém a legalização deste mecanismo visa justificar e dar segurança jurídica aos policiais para poderem ampliar significativamente o extermínio do povo negro em nosso país.

São os dados do Mapa da Violência de 2018 que apontam que a taxa de homicídios de indivíduos não negros diminuiu 6,8% no mesmo período em que a taxa entre a população negra saltou para 23,1% e foi a maior registrada desde 2006 – ano inicial da série histórica. Estes dados revelam que a desigualdade racial no Brasil se expressa de maneira nítida quando se refere à violência policial, seja no assassinato, mas também no encarceramento da juventude, ou ainda nas enormes desigualdades sociais.

Diferentemente das outras reformas que partem do governo, o pacote Anticrime já está sendo aplicado, isto porque já conta os seus mortos, o que reforça o caráter preventivo que cumpre, ou seja, de controle social em meio à crise existente, mesmo antes da aprovação do pacote. Outro fato que demonstra isto é o silêncio do Bolsonaro frente aos 80 tiros. Seguida pela declaração de que “não morreu ninguém” é um recado aos policiais e aos governadores, de que o Governo Federal endossa essa prática.

Por isso que, em fevereiro desde ano, um mês após o anúncio do ministro Moro, o Movimento Negro construiu uma carta de denúncia do “Pacote anti-crime” à OEA, por violações básicas aos direitos humanos no Brasil. E nesta semana, o DIDH-OEA receberá uma comitiva de 14 representantes de movimentos negros de distintas frentes (feministas negras, mídia negra, mães vítimas do Estado, quilombolas, religiosos de matriz africana) que estão levando à Corte Internacional denúncias sobre o genocídio do povo negro no país.

“Mira na cabecinha e atira”

Os tiros que mataram Evaldo e Luciano tiveram uma voz de comando, ela veio do Palácio da Guanabara, ela veio do governador que hoje se destaca nas ações de extermínio nas periferias do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC). O governador eleito em 2018 teve como principal pauta durante a campanha eleitoral o combate à violência através da execução sumária. Infelizmente, mais uma vez, o estado do Rio de Janeiro, que vive uma crise social há décadas e que tem uma maioria de população não branca, está sendo utilizado como laboratório de práticas de extermínio. A forma recente admitida pelo próprio governador na imprensa trata-se da utilização de snipers (atiradores de elite) para um verdadeiro “abate” de civis nas periferias do Estado.

Em uma ação recente, no último final de semana na região de Angra dos Reis (RJ), Witzel comandou diretamente desde um helicóptero da polícia, uma chuva de balas sobre as comunidade pobres da região com o discurso de “dar fim à bandidagem e à bagunça”.

Quem são os pretensos bandidos atingidos pelo armamento de guerra de Witzel? Vivemos a era da política de morte. Através deste método, não há mais nenhuma espécie de direito de defesa ou mínima investigação. Aqui é a eliminação de uma parte da população com o objetivo de atingir uma estabilidade no país. A “paz” referida por Witzel e Bolsonaro é a guerra contra os negros, sendo estes vítimas do racismo quase sempre dito como o “tipo suspeito”.

Quem julga os assassinos

Os nove militares envolvidos na ação em Guadalupe no último dia 7 de abril encontram-se, até o momento, presos. Porém, na última sexta-feira, 3 de maio, o Ministério Público Militar entrou com o pedido de soltura dos militares, sob o parecer do subprocurador-geral da Justiça Militar Carlos Frederico de Oliveira Pereira, afirmando que “não houve descumprimento das regras de engajamento — normas sobre uso da força por militares — porque o homicídio aconteceu quando tentavam salvar um civil da prática de um crime de roubo”.

O caso ainda será levado ao Superior Tribunal Militar, porém a alegação não causa estranhamento em uma situação no país na qual busca-se a prática de matar como regra, mesmo que as vitimas sejam comprovadamente inocentes. Logo, é absurda a postura do Ministério Público Militar em avalizar este pedido de soltura. A denúncia ainda será apresentada à Justiça e os nove militares devem responder pelos dois homicídios e tentativa de homicídio dos outros membros da família.

Paz sem voz, não é paz, é medo 

Evaldo, Luciano e quase quinhentas pessoas somente neste ano já tiveram sua vida retirada de maneira arbitrária por ações letais da polícia brasileira. Por óbvio, a violência é um problema social dos mais alarmantes em nosso país. Porém, a construção de um país que tenha segurança, ou a proferida “paz”, só será alcançada quando a maior parte da população tiver acesso a direitos sociais mínimos, como saúde, educação, trabalho e acesso a cultura. Ao contrário disso, todas as medidas do atual governo Bolsonaro só fazem aprofundar a  condição de pobreza e violência em nosso país, quando com a sua proposta de Reforma da Previdência reafirma uma estrutura do Estado que mais se assemelha ao período anterior ao trabalho livre e assalariado. Ou seja, cada vez mais, parcelas importantes da população estão sendo jogadas numa condição que não permite a sobrevivência. A fórmula do atual governo parece uma equação simples: retirada de direitos sociais e legislação de extermínio de pobres e negros. É neste cemitério que Bolsonaro quer erguer um “novo Brasil”.

É necessário justiça social. Punição imediata dos nove policiais envolvidos no fuzilamento de Evaldo e Luciano. Para tanto, deve-se seguir uma luta intensa contra o pacote Anticrime de Moro. Esta batalha será uma definição importante, se, em nosso país, nos próximos anos, seguirá prevalecendo a política de morte, ou poderemos lutar pelo direito à vida.

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