‘As andanças de Beth, uma sambista de esquerda’ – Manu da Cuíca

Manuela Oiticica
Arquivo TV Globo

Beth Carvalho no Maracanãzinho em apresentação do V Festival Internacional da Canção (FIC).

Beth, a que decidiu cantar. Percorreu a bossa nova, dominante na época e no território em que cresceu, mas não era por ali. Estava atrás de um outro novo que tinha como cartão de visitas a milenar tradição do tambor – agora sob nova direção: banjo, tantã, repique e tudo o mais que fosse mimese de palma da mão. Pagode é o nome disso, nada a ver com o que tempos depois infestou as rádios de tecladices meladas e levadas antitamborim. A voz – namoro de rouquidão com vivacidade – soando íntima e percussiva.

Beth, a que decidiu que cantar não era só enfileirar notas boca afora, mas escolher por onde ir, apontar bifurcações ou, melhor ainda, pavimentar caminhos. Ter um propósito estético, por assim dizer.

E político.

Ora, um banquinho e um violão (e seu rico universo musical) davam pano bom pra muita manga sem quase precisar atravessar a rua. Os festivais que o digam. Mas foi assistir ao show Rosa de Ouro e ela deu de atravessar a cidade, da Zona Sul indo buscar sombra debaixo das tamarindeiras de subúrbio. Que ninguém se engane: diariamente o que mais tem é trabalhador – da música, do barulho ou do silêncio – fazendo o caminho inverso e rasgando a Avenida Brasil na hora do rush. Apenas que na cidade partida é preciso ainda lembrar quem, podendo escolher, escolhe o contrafluxo. Na avenida, no Brasil e na Avenida Brasil. E, acredite, são poucos.

Sucesso atrás de sucesso, gol de tudo quanto é jeito, tipo Jairzinho com a sete do seu Botafogo. Foi que ela entendeu que poderia também ser Gerson ou Didi e lançar bolas pra rapaziada chegando na área. Já ouviu falar em Zeca Pagodinho? Dudu Nobre, Jorge Aragão, Fundo de Quintal. Todos tiveram um dedo de Beth. O cara do posto e o vendedor de gelo também – ela sempre contava isso, que tinha chegado pra abastecer o carro e o cara dizia: você também é minha madrinha. A história do gelo chegou no dia do enterro, veio do vendedor que não se conteve ao saber que a mercadoria era para o velório e mandou entregar de graça.

Beth, a que decidiu que era mais do que cantar. Era puxar a mão de uma geração inteira, chamar pra jogo novos compositores e cantores. Mas também garantir que baluartes não caíssem no esquecimento. Foi atrás de Cartola quando teve quem achasse que ele já tinha morrido. Deu com ele rodeado de rosas, moinhos e outras obras-primas. Nélson Cavaquinho foi caso à parte: difícil algum sambista dos mais novos – ou nem tanto assim – não associar as músicas dele à voz dela.

Beth-Mangueira, cantada com a mesma devoção com que ela conheceu a verde-e-rosa, num esplendor de carnaval vingando pela Rio Branco. Beth-Cacique, hei, hei, hei. Beth em Marte, acordando robozinho. Beth-Palanque, a que foi velada no dia dos trabalhadores que tantas vezes embalou. Beth-Andança, a que jamais termina o seu caminhar.

A que era várias sendo uma só. De presidente da República a bloco dos sujos, o pot-pourri de coroas de flores que disputou espaço nos salões lotados do Botafogo deixou isso claro. Radicalmente sambista, inegociavelmente de esquerda. A tarefa é não deixar faltar mão pra segurar as tantas bandeiras que ela empunhou.

Brava gente brasileira, uma lágrima a gente enxuga com outra. O show sempre tem que continuar.