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O Haiti é aqui

Aderson Bussinger

Advogado, morador de Niterói (RJ), anistiado político, diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ e diretor da Afat (Associação Fluminense dos Advogados Trabalhistas).

Fui designado no ano de 2007 pelo então presidente da OAB federal, Dr. Cezar Britto, para visitar o Haiti em missão de direitos humanos e acompanhamento independente da Minustah, por convite feito pelo PACS (Instituto de políticas alternativas do Cone Sul)/ Jubileu Sul, central sindical CSP-Conlutas e outras entidades da sociedade civil. Desde esta viagem, o Haiti passou a ter um papel muito grande em minha forma de enxergar o Brasil, especialmente no que diz respeito ao tema da militarização da sociedade.

Através do contato mais amplo com entidades do movimento social haitiano, percorremos quase o pais inteiro, tendo nos reunido com muitos sindicalistas, ativistas sociais, intelectuais, pessoas do povo, ouvido muitas denúncias, testemunhos chocantes de violações perpetradas pelas próprias forças militares da ONU (os “capacetes azuis” da Minustah liderados nesta missão pelo Exército brasileiro). Quando do meu retorno, entreguei relatório contendo tais relatos e denúncias, endereçado tanto a OAB Federal, em primeiro lugar, como também a Comissão de Relações Exteriores do Senado Federal, que resultou em audiência publica sobre sobre o Haiti em 17 de junho de 2009. Juntamente com o falecido e querido professor e jurista João Duboc Pinaud (já falecido) escrevemos juntos um livro sob o título “Haiti, das trevas à escuridão” cujo conteúdo reúne os relatórios tanto desta visita de 2007, como de outra ainda mais significativa missão realizada naquele país anteriormente,em abril de 2005, integrada pelo Professor Pinaud e chefiada pelo Ganhador do Premio Nobel da Paz, Adolfo Esquivel, cujo conteúdo foi entregue em audiência ao então presidente Lula, com contundente apelo e denúncia sobre a desnecessidade da participação do Brasil naquele modelo de missão essencialmente militar.

Questionei neste relatório a presença do Brasil nesta missão, que para mim nunca teve como motivo e prioridade a ação e ajuda humanitárias, mas sim uma disfarçada missão de ocupação militar do país, por força de interesses puramente econômicos e de geopolítica dos EUA, o que a meu ver feriam e ferem os princípios da autodeterminação, não ingerência e soberania dos países inclusos na Constituição Federal. Sempre acreditei que o Haiti não precisava de soldados armados, mas sim de professores, médicos sanitaristas, dentistas, assistentes sociais, engenheiros agrônomos, arquitetos, enfim, apoio essencialmente social e econômico, em lugar de tropas militares que o então presidente Lula enviou para este país, em parceria com a ONU.

Destaco os relatos de violações de Direitos Humanos por parte das Forças Armadas brasileiras, conforme tive oportunidade de ouvir muitas denúncias sobre agressões, estupros, desaparecimentos, execuções durante “operações nos bairros”, cerceamento de organização popular e sindical; revistas abusivas, intimidações, diversos constrangimentos á população miserável, tal como acontece aqui no Brasil e que hoje tenho a certeza de que o Haiti foi também um laboratório e campo de treinamento para operações militares das Forças Armadas brasileiras tendo como alvo a população pobre e negra.

Mas porque agora esta lembrança do Haiti? Respondo então. Estou convencido desde muito tempo de que o termo “laboratório” (que por diversas vezes ouvi dos militares brasileiros naquele país, inclusive do próprio general Carlos Alberto Santos Cruz, atualmente ministro do Governo Bolsonaro, que nos recebeu de maneira gentil no comando da Minustah em Porto Principe), é muito mais do que um modelo de experiência militar. Tem a ver com uma visão de intervenção das forças armadas na sociedade, dentro do denominado Estado de Direito, tendo a frente o Exército brasileiro e adotando como alvo as populações miseráveis, os morros, favelas, lugares ocupados pelos negros, assim como no Haiti.

De certa forma, podemos dizer que o “Haiti” foi um pouco da intervenção militar no Rio de janeiro em 2018, guardadas as devidas proporções, pois limitada a apenas um Estado. Registro que esta visão de intervenção decorre, a meu ver, não de uma ideia maniqueísta de que “ os militares são maus” e “ interventores” (apesar dos precedentes históricos neste terreno) mas de uma visão política do alto comando das forças armadas brasileiras, como um todo, bem como das elites empresariais hegemônicas que lhes respaldam no terreno civil, de que a política econômica que aqui é aplicada, nas suas mais variadas roupagens, não vai trazer justiça social e o tão desejado apaziguamento, daí porque o remédio é mesmo a repressão, a militarização e o controle estatal da sociedade, a domesticação dos estudantes através de escolas militares, o enfraquecimento dos sindicatos, movimentos sociais, enfrentamento militar das reivindicações no campo e na cidade, enfim, um conjunto de iniciativas de cunho sempre militarista, que, ao fim e ao cabo, conduzem o Brasil para uma país menos democrático e a feição de um Estado cada vez mais policial.

Isto eu vi no Haiti, quando da presença militar brasileira naquele pais de um povo negro tão parecido com o nosso. Isto estou vendo aqui no Rio de Janeiro, nas favelas da Maré, Complexo do Alemão, Rocinha, há bastante tempo e agora com mais intensidade, após a vitoria do ex-capitão Bolsonaro e a ocupação de diversos ministérios por oficiais de altas patentes do Exército, que, por “ coincidência” estiveram no alto comando das tropas enviadas ao Haiti.

Quero deixar claro, (antes que me processem), que não pretendo atacar moralmente nenhum dos militares que esteve naquela missão e conheço, inclusive, exemplos de humanismo e socorro de militares em relação àquele povo, sobretudo de praças, especialmente durante o terremoto que dizimou parte da ilha. Minha crítica, de natureza essencialmente política, é a seguinte: a missão, apesar de conter aspectos minoritários de ajuda social, foi fundamentalmente militar de ingerência político-militar e, portanto, repressiva, sem contribuir para a solução dos problemas estruturais do pais. O resultado está hoje em 2019 na persistente fome e miséria do povo haitiano, produzindo todos os dias uma emigração letal nas águas do Caribe, manutenção da violência tanto das “gangues” como da polícia nacional haitiana, com mais de 30% da população em absoluta crise alimentar, mais de 70% sem acesso a serviços sanitários básicos e – pasmem ! – segundo dados do próprio Banco Mundial, 42% da população não bebe sequer minimamente água potável; mais da metade das crianças se encontra fora da escola e 80% da população está abaixo da linha de pobreza.

Voltando ao Brasil, destaco que os recentes episódios, como a execução pelo Exército brasileiro, através do disparo de mais de 80 tiros, de um músico negro e desarmado, em frente ao portão de uma unidade militar do Exército, quando passava de automóvel no local com sua família, cada vez mais reforçam a certeza de que estamos sob uma gestão de Estado no Rio de Janeiro essencialmente militarizada, genocida e disposta a não recuar. Soma-se a isto os diversos casos de assassinatos causados por forças de segurança no Rio de Janeiro, onde, (segundo o Instituto de Segurança Pública – ISP) somente entre janeiro e março deste ano, do total de 59 homicídios ocorridos no município do Rio de Janeiro, 52% foram resultado de “autos de resistência”, índice superior a 2016, 2017 e 2018. Sendo que os batalhões da PM de Niterói e São Gonçalo, por exemplo, apresentam estatísticas mais letais ainda

No plano nacional, as mortes causadas por forças de segurança dobraram nos últimos cinco anos (ver dados do ISP e jornal O Globo de 28/04/19). Por outro lado – mas umbilicalmente ligado a esta situação – temos que ante todas as ocorrências de assassinatos cometidos, por exemplo, por militares do Exército, como em novembro de 2017 no complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, (que terminou com sete mortos), não há nenhuma condenação, padrão institucional de impunidade que, segundo reportagem do OG de 14/04/2019, se repete há 25 anos, sendo que muitos inquéritos sequer foram convertidos em processos judiciais. É sabido que, desde 2017, este contexto de impunidade dos militares foi em verdade consolidado a partir da aprovação da famigerada lei 13. 491/2017,que transferiu para justiça militar os casos de crimes dolosos contra a avida de civis durante operações de garantia da lei e da ordem, conforme será investigado e julgado (pelos próprios militares) o assassinato do músico negro Evaldo de Santos Rosa, lembrando sempre que semelhante prerrogativa possuem também os militares brasileiros que atuam em missões internacionais como a Minustah.

Pois bem, acrescente-se a este notório quadro de militarização da sociedade brasileira,(que ainda pretende-se aprofundar com a aprovação do denominado “ pacote anti-crime” do ex-juiz e agora ministro Moro), e, guardadas as características e história próprias de cada país, apesar de não vivermos em uma ditadura militar como a instalada com o golpe de 1964, temos no Brasil uma situação que nos conduz cada vez mais para a uma maior intervenção das forças de segurança nas relações sociais, tendo a frente o alto comando do Exército, incluindo as diretrizes de educação conforme já estamos vendo a influencia de “oficiais militares-educadores interior do MEC.

Estes fatos, ações de Estado, constituem uma forma de intervenção civl-militar, (ainda que com muitas mediações e freios de outras instituições civis), pois que opera sob nova roupagem jurídica e formal, mas, intrinsecamente, traz no seu conteúdo o mesmo “DNA” de gestão de conflitos que os militares brasileiros testaram no “laboratório” do Haiti, com excesso de ingerência militar e uma evidente ausência de programas sociais que efetivamente possam trazer paz, justiça e segurança para quem realmente precisa. S

ome-se a isto o congelamento do orçamento federal por 20 anos, aprovado durante o governo Temer, bem como os efeitos perversos que já são sentidos pela denominada reforma trabalhista, que para nada ampliou empregos. E também a proposta de reforma da previdência, que, na prática, significa o desmonte da previdência pública brasileira em favor de um sistema de capitalização ao estilo “chileno”.

Some-se todas estas iniciativas reacionárias, misture bem, reúna todas estas medidas – se alcançarem o definitivo êxito – e certamente poderemos então afirmar, como diz a canção composta pelos gênios Gilberto Gil e Caetano Veloso em 1993: o Haiti é aqui!