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MUNDO

Até amanhã, camarada!

Caso existisse alguma força superior, seria de se imaginar que por algum motivo místico ela teria apontado para o calendário e escolhido o dia 25 de Abril para reservar algumas surpresas para nós, seres humanos. Porém, como não existe nenhuma força na história superior as nossas ações, podemos dizer que foi mera ironia da história ou acaso do destino, o fato de em diferentes partes do mundo as ações de mulheres e homens marcassem o dia 25 de Abril na mente e corações dos lutadores sociais antiimperialistas e antifascistas. Algo no mínimo curioso.

Foram diversas as vezes que a data se repetiu ao longo do longo século XX. Primeiro em 1916, quando revoltosos irlandeses tentaram uma insurreição para expulsar as forças britânicas da Irlanda e fundar uma República Independente naquela que ficou conhecida como a Revolta da Páscoa. Os membros do Exército de Cidadãos Irlandeses tomaram a capital Dubiln por seis dias antes de serem derrotados, e terem o saldo de 66 mortos durante os conflitos e 16 executados como consequência.

Anos depois o dia 25 de Abril viria a se repetir novamente naquele que seria um importante ato de resistência de um povo oprimido contra as forças estrangeiras que dominavam o país, mas que hoje é lembrado como algo fundamental para a vitória dessa povo. Foi em 1932 na península coreana que Kim Il sung fundou o Exército Popular Revolucionário da Coreia, que anos mais tardes derrotou as forças japonesas que ocupavam o país. Perto dali, porém em um país territorialmente muito maior, três décadas mais tardes, em 1966 para ser exato, ocorreu na China um outro 25 de Abril. A Revolução Cultural foi um dos movimentos mais controversos do pós-guerra, e se discute sobre a mesma até os dias de hoje. Sem entrar em seu mérito, é inevitável não reconhecer seu peso histórico.

Alguns anos antes, em 1945, o 25 de Abril se repetia dessa vez na Europa. Foi nesta data que o Exército Vermelho cerca Berlim e consegue entrar na mesma com seus tanques T-34/85 para desespero dos nazistas, que viam o fim mais próximos à medida que as tropas soviéticas avançavam esquina por esquina. Uma semana depois os nazistas se rendiam. Não muito longe da Alemanha, naquele mesmo ano de 1945, os partisans italianos derrotam os fascistas de ses país. A resistência italiana é um dos mais belos capítulos da luta contra o fascismo na segunda guerra. Foram 300 mil membros dos partisans que enfrentaram e venceram nas ruas do país os camisas pretas de Mussolini. O dia 25 de abril entrou de vez para a história da Itália sendo comemorado como o Dia da Libertação.

A última vez que o dia 25 de Abril se repetiu nos calendários das revoltas e revoluções, tenha sido talvez a mais marcante. Não somente pela sua proximidade, mas também por isso. O fato é que naquele 25 de Abril de 1974 em Portugal, quando os carros militares desciam a Avenida da Liberdade em Lisboa, os soldados do MFA (movimento das Forças Armadas) que recebiam cravos vermelhos, não somente derrubavam uma ditadura de 48 anos, como iam mais além, e davam sem saber, origem ao último processo de revolução social que ocorrerá no ocidente. Ela foi derrotada, é verdade. Mas permanece até hoje na memória e corações daquela geração e das que vieram depois. 

Foi bonita a festa

O poder ditatorial controlava Portugal por quase meio século. Era a mais longa ditadura da Europa e já se encontrava sem condições de suportar o peso de seu próprio corpo. Seja porque as revoluções coloniais atingiram militarmente, ou economicamente ela já estava esgotada e sem uma base social ampla como em anos anteriores, a ditadura portuguesa era uma caricatura de si mesma, a mão de ferro era na época uma mão firme de um já moribundo regime, que foi derrubado em poucas horas pela rebelião militar do MFA.

Os soldados esperavam o apoio da população e ele veio. Com centenas de milhares de início e depois aos milhões. As ruas da capital foram tomadas. Os tanques de guerra se transformaram em brinquedos para as crianças, que sorriam enquanto corriam pelas calçadas com cravos vermelhos na mão. As esquinas lisboenses presenciaram o encontro de um povo com a liberdade, da história com a revolução, e mais do que nunca a história se fazia no tempo presente.

Os soldados que esperavam o apoio da população viam, que aqueles que tomaram as ruas não queriam somente apoiar o processo, mas sim ser protagonista. A utopia começava a ser desenhada naquele chão e a revolução estava a se iniciar.

O “rei ficou nu” como diz o ditado popular, e o poder não era somente algo em abstrato. Depois de 48 anos sob as rédeas Salazaristas, a classe trabalhadora e seus aliados se surpreendiam com a capacidade de sua força. Assembleias, manifestações, greves, discussões, criaram-se comissões de fábricas, de moradores, exigia-se salário, fizeram-se ocupações, fábricas foram tomadas, o que se viu foi uma classe confiante, agigantada, que não teve medo de se lançar nas águas da história para conquistar o poder.

Não somos historiadores ou pesquisadores da Revolução dos Cravos, muito menos da história Portuguesa. Daquela sabemos muito pouco, desta nada sabemos. Porém, este processo na península Ibérica tem um lugar muito importante no coração e mentes daqueles que a acompanharam em vida. Seja pelo fato de que no Brasil nós vivíamos uma ditadura militar, e as conquistas que ocorriam do outro lado do oceano despertavam enorme simpatia e interesse por aqui. Ou pela história comum que durante séculos Brasil e Portugal compartilharam. Tudo isto ficou eternizado na canção Tanto Mar de Chico Buarque.

Para aqueles que como nós  não eram nascidos durante 25 de Abril de 1974, o horizonte revolucionário permanece longe, no horizonte. Não vimos nenhuma Revolução Social vitoriosa e nem sequer uma que foi derrotada ou ficou no caminho. Nossa geração viu e acompanhou um importante processo de mobilização e revoluções políticas que foram a primavera árabe. Hoje vemos convulsões e revoluções novamente no norte da África e Haiti.

Para mim, em especial, o processo português tem um carinho maior. Pois, no momento que começava a ver o mundo de uma forma anticapitalista, o romance “Até amanhã, Camaradas” de Alvaro Cunhal, que narra ações e relações cotidianas de militantes clandestinos do Partido Comunista Português durante a ditadura no país. E como estes membros se relacionam entre si e com a tarefa da revolução. Aos interessados vale a pena a leitura.

Para nossa geração a Revolução dos Cravos traz aquele famoso sentimento de nostalgia de um tempo que não vivemos. Se tivéssemos por alguma razão nascido algumas décadas antes teríamos visto, acompanhado e participado. As crianças nas ruas, os cravos vermelhos, as assembleias, a democracia direta, os trabalhadores em marcha… Aqueles meses de abril de 1974 a novembro de 1975 não voltam. A locomotiva da história seguiu. As relações produção, no fim, não mudaram. O Estado burguês se recompôs. Um novo regime se estabeleceu. O poder dual chegou ao fim. Portugal não se tornou um Estado Operário.

Estudar o processo da Revolução dos Cravos serve para melhor compreensão de diversos temas. Seja a construção e atuação de um poder paralelo ao do Estado. Assim como para as definições revolução política e revolução social, e os motivos que fizeram a revolução não avançar.

Aquele 25 de Abril de 1974 entrou para a história, como outros 25 de Abril antes dele. A esquerda anticapitalista portuguesa tem como uma de suas palavras de ordem mais conhecidas o mote de “faz falta um outro 25 de Abril”. Mas como cantou Chico, existe tanto mar, tanto mar, a roda da história não para de girar e a nós basta apenas navegar e navegar.

Para nossa sorte nenhuma força superior cravou o dia 25 de Abril a dedo ou disse que era impossível repeti-lo. Para nossa sorte são nossas ações que determinam esses “acasos históricos”. Assim é possível fazer um novo 25 de Abril trazendo de volta aquele cheirinho de alecrim. O horizonte das utopias onde dormem as revoluções sociais está deitado na esquina da história. Algum dia, quem sabe, não olhamos para o calendário e resolvemos ir até lá.