A nova crise na Líbia: petróleo, poder e o papel do imperialismo

Ao todo são mais de 21 movimentos armados que disputam o controle de partes do país. Cerca de 25 mil pessoas fugiram de suas casas e total de mortes pode chegar a 600

Gabriel Santos, de Maceió (AL)
LNA War Information Division / Reprodução

A crise na Líbia tem chamado atenção novamente de todo o mundo. Desde a queda de Muamar Gaddafi, em 2011, o país vive em uma eterna disputa de poder entre diferentes grupos tribais e fundamentalistas e milícias do exército. Ao todo são mais de 21 movimentos armados que disputam o controle em diferentes pontos do território nacional, e o governo de coalizão, impulsionado pela comunidade internacional, nunca conseguiu se firmar e ter o mínimo de controle político do país.

São da Líbia as imagens que deveriam ter chocado todo o planeta no fim de 2017, quando repórteres da rede de televisão norte-americana CNN, flagraram a venda de pessoas para servirem de escravas, em uma cena que já seria comum na capital do país.

Hoje o país do norte da África está a beira de um conflito bélico generalizado e o Conselho de Segurança da ONU, que se reuniu para analisar o tema nesta quinta-feira, dia 18, não sabe o que fazer. A cada hora que passa os conflitos se intensificam e a instabilidade no país também.

A Organização Mundial de Saúde informou em seu último relatório, dia 17, que desde que os últimos confrontos se intensificaram no dia 04 de abril foram mortas 205 pessoas e outras 913 ficaram feridas. Porém, o número pode ser bem maior. Meios de comunicação como TeleSur chegam a falar de 600 mortes com o crescimento da violência no final desta semana. O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários disse que cerca de 25 mil pessoas fugiram de suas casas.

A nova situação na região explode quando Khalifa Haftar, comandante do Exército Nacional Líbio (ENL), anuncia que suas tropas, que até então comandavam a região leste do país, iriam rumo a capital Trípoli, tomar o poder que se encontra na mão do Governo da Unidade Nacional (GNA), encabeçada por Fayes al Sarraj, apoiado pela ONU e principais potencias imperialistas.

Para entender a disputa entre os grupos é preciso voltar um pouco no tempo, até 2015, quando após uma acirrada eleição parlamentar o grupo ligado a partidos islâmicos que perderam, se recusaram a aceitar o resultado das eleições, e apoiados por diversas milícias tribais se manteve no poder em Trípoli. A comunidade internacional e a ONU, passaram a reconhecer um novo parlamento que se estabeleceu na cidade portuária de Tobruk no leste do país.

Em 2016, a ONU busca formar um governo de coalizão, que seria conduzido pela GNA e esta prepararia novas eleições. Porém, até hoje, o governo do primeiro ministro al Sarraj ainda não conseguiu ter o controle do país.

Haftar não reconhecia o parlamento anterior, liderado pelos islâmicos, e com a confirmação do novo governo conduzido pela ONU, passa a apoiar tal medida. O ENL atuava no leste do país combatendo grupos fundamentalistas islâmicos, coisa que o governo da capital não tinha condições de fazer. Este fato, fez com que Haftar pudesse manter boas relações e conversas com países como Israel, Rússia, Estados Unidos e em especial a França. A cada novo confronto o general Haftar, um antigo aliado de Gaddafi, que depois se tornou algoz do presidente e aliado norte-americano, se tornava uma figura política de peso maior. Chegando a ruptura com o governo central, levando consigo grande parte dos militares do Exército e armas, conformando assim o ENL.

Dessa forma na Líbia existem dois poderes centrais. O do GNA, localizado na capital Trípoli e o do ENL que exercia o poder no leste do país. Além da presença de diversos poderes tribais e milícias fundamentalistas islâmicas que controlam partes do país. O GNA acusa Haftar de tentar dar um golpe de estado e o ENL continua avançando rumo a capital.

Quem é Khalifa Haftar, o poderoso general líbio?
Haftar nasceu 1943, quando a Líbia ainda não era um país independente. Porém, viu na sua infância o país se libertar do colonialismo e uma monarquia ser instituída. Haftar foi um dos membros de oficiais do Exército liderados por Gaddafi que tomou o poder do Rei Idris em 1969.
Logo promovido a Marechal, coube a Haftar a tarefa de liderar as forças líbias no conflito contra o Chade, na década de 1980. A derrota militar do país e a captura de Haftar e 300 homens de sua tropa pelas forças chadianas em 1987 fez Haftar entrar em desgraça e ser desertado por Gaddafi.

Haftar se exilou no estado americano da Virgínia, em território próximo a sede da CIA em Langley. O ex-comandante do exército líbio manteve uma estreita relação com os serviços de inteligências norte-americanos, que apoiaram e tentaram inúmeras vezes assassinar Gaddafi durante os anos seguintes.

Com os protestos populares de massas contra Gaddafi na Líbia, Haftar volta ao país se tornando comandante chefe de uma força rebelde no leste, próxima a sua cidade natal. A derrubada do ex-presidente Líbia fez com que Haftar voltasse ao ostracismo, de onde só saiu em fevereiro de 2014, quando em entrevista em rede nacional convocou os líbios a se revoltar contra o parlamento.

Ao mesmo tempo em que Haftar demonstrava seu descontentamento perante a população, a segunda maior cidade Líbia, Benghazi, assim como outras importantes cidades no leste do país, eram tomadas pela filial da Al-Qaeda na região, a Ansar al-Sharia. A incapacidade do poder central de tomar conta do avanço do grupo extremista, vez avançar a popularidade de Haftar entre os cidadãos de Benghazi.

Meses depois, em maio, Haftar comandou a Operação Dignidade, contra os grupos fundamentalistas islâmicos. O sucesso da ação, fez com que em março do ano seguinte fosse nomeado comandante do Exército Nacional. Os progressos no combate aos grupos fundamentalistas foram diminuindo, e só vieram a acontecer efetivamente em fevereiro com a libertação da cidade de Benghazi, e se concluíram em abril, com a vitória de suas tropas na cidade de Derna.

A incapacidade de controle por parte do poder central do GNA, fez com que o ELN avançasse para outros territórios da Líbia, com sucesso no combate a grupos fundamentalistas. Estas vitórias devem ter estimulado Haftar para que ele buscasse o controle militar de todo o país. A avenida estava aberta e ele resolvei arriscar, afirmando que as tropas do ELN iriam rumo a Trípoli com o objetivo de restaurar a segurança e combater o terrorismo.

Haftar, antes de declarar sua movimentação se reuniu na Arábia Saudita com o rei Salman. O Egito e os Emirados Árabes Unidos apoiam abertamente os desejos e ações de Haftar.
O governo francês vem apoiando as ações do general no combate as forças fundamentalistas desde suas primeiras ofensivas, e recentemente viu a acusação de Sarraj, de que estaria apoiando os avanços de Haftar contra a capital. Porém, o governo francês afirmou que as acusações são infundadas e que apoia uma mediação da ONU para um fim pacífico, assim como o governo do primeiro-ministro al Sarraj. Vale lembrar que apenas dois meses atrás, a força área francesa, bombardeou grupos chadianos que combatiam no sul da Líbia tropas do ELN, mostrando a relação de proximidade entre Paris e o general.

Outras milícias que atuam no país

Existem diversos grupos armados que atuam tanto na capital quanto no interior do país, no combate entre si, entre os grupos islâmicos e entre as duas principais forças que participam do confronto.

A situação é tão complexa, que grupo como a Brigada Salah al-Burki, que se recusavam a aceitar a autoridade do governo CNA, vai pegar suas armas e defender a capital contra as forças de Haftar. A Brigada tem ligações com a Al-Qaeda.

Cidades vizinhas também têm milícias atuantes. Em Misrata, se encontra a 301ª Brigada, que foi um dos grupos mais poderosos no combate a Gaddafi e enfrentou tropas do Estado Islâmico em 2016, e que agora marcha rumo a Trípoli para combater o ENL. Ao sudoeste da capital, a Brigada Tarhuma é a força mais poderosa e atuava como um braço armado do GNA.

Em Trípoli, cerca de cinco milícias se uniram e formaram a Força de Proteção de Trípoli, que agrega desde setores ligados a GNA, passando por grupos religiosos e até forças laicas.

O petróleo no centro da disputa e o papel da França e da Itália

O conflito na Líbia envolve diversos temas. Desde a divisão do país em grupos rivais, o interesse particular das figuras envolvidas nas disputas, o sectarismo religioso e também, a disputa sobre os poços de petróleo, e em menor escala o gás natural. Novamente, para surpresa de pouquíssimas pessoas, potências europeias estão envolvidas.

O país na época de Gaddafi era o segundo maior exportador africano de petróleo, atrás apenas da Nigéria. E esse era o carro chefe da economia, tanto que às exportações de hidrocarbonetos correspondiam a 65% do PIB nacional. A produção diária era de 1,3 a 1,6 milhão de barris, pouco sulfuroso dando assim uma boa qualidade ao produto, e os poços de extração serem próximos aos terminais marítimos de exportação, dando ao barril líbio um preço vantajoso no mercado (de 3 a 5 dólares por barril).

Durante e após os processos que levaram a queda de Gaddafi, a economia petroleira desaba na Líbia. A produção diária desaba para 200 mil barris por dia. Durante o governo do ex-presidente deposto, a Europa importava 80% do petróleo líbio, sendo que 32% ia somente para a Itália, o maior cliente do país. A multinacional italiana ENI, atua no país desde 1959, mais precisamente em Cirenaica, na costa oriental, o que dá ao grupo uma posição privilegiada na exportação do ouro negro. Durante a queda de Gaddafi, a ENI teve que interromper sua produção de petróleo, mantendo o ritmo contínuo somente na extração de gás.

Não é de estranhar que a Itália viu de forma negativa a intervenção da OTAN no país e a desestabilidade criada com a queda de Gaddafi. O atual primeiro ministro do interior Matteo Salvini e seu partido Liga Norte, criticavam a intervenção europeia na Líbia por um viés reacionário, afirmando que isto iria gerar a chegada de novos imigrantes no velho continente e em especial na Itália. Outros políticos, já viam que a instabilidade criada na região iria fazer mal para a ENI e para os lucros sobre o petróleo líbio, abrindo diversos concorrentes no mercado.

O petróleo do país africano representou para a Itália a possibilidade de conservar uma relativa autonomia energética a custo barato. A ENI era o principal produtor de petróleo em solo líbio ao lado da estatal do país, a Companhia Nacional de Petróleo (NOC, na sigla em inglês).

A França, um dos principais países que atuou na intervenção da OTAN em território líbio, claramente fracassou na tentativa de por um governo nacional de transição, alinhado as vontades diretas das potencias ocidentais. Este governo não existiu. Porém, nem tudo foi desastroso para o país hexágono. Em meio à barbárie que a Líbia se tornou a França seguiu lucrando.

A Total, a gigante petroleira francesa, conseguiu somente alguns dias após o fim dos bombardeios da OTAN liderados pela França, um acordo com o Conselho Nacional de Transição líbio no qual seriam cedidos para ela 35% das futuras concessões petrolíferas. Antes da queda de Gaddafi, a Total operava no país com os modestos números de 55 mil barris por dia, enquanto a ENI produzia 244 mil. Não resta dúvida que o grupo empresarial francês, o quarto maior do mundo no ramo, aproveitou e lucrou bastantes enquanto o grupo italiano ENI perdia espaço. E essa rivalidade franco-italiana pelo lucro do petróleo líbio é um fator determinante na crise síria.

Se o governo italiano se alinha com a posição da ONU de reconhecer o GNA como governo, e el-Serraj como primeiro ministro, é porque essa escolha é coerente com os interesses de Roma na costa ocidental da Líbia. Sustentando o poder central de Trípoli, a Itália assegura o importante terminal petrolífero de Melittah, que é cogerido pela estatal NOC e pela ENI.

O governo italiano pode atuar também sobre a região costeira de Sabratha, onde a imigração clandestina é extremamente forte. Salvini quer impedir a entrada de imigrantes ilegais em seu país, mesmo que para isso tenha que deixar estas pessoas em meio à guerra e o fogo cruzado na Líbia.

A França, por sua vez, buscou ter influência do outro lado do país. Na região da Cirenaica. O lugar que é chamado de Crescente Petrolífero, e se localiza em torno da Bacia de Sirte, concentra 85% das reservas de petróleo e 70% das de gás. Em sua saga para controlar cada vez mais o petróleo líbio, a Total, em março do ano passado comprou pouco mais de 15% das concessões que possuía a petrolífera norte-americana Marathan Oil, nos campos de Waha.

Militarmente a Líbia também é interessante para a França, em especial sua parte leste, que é considerada pelos especialistas de segurança como uma área instável. A região que faz fronteira com o Chade, Sudão e Níger, é palco de ação e treinamento de grupos terroristas. A França mantém um número de 3 mil soldados atuando na região do Sahel, na Operação Barkhane, em conjunto com o G5 da região. A presença militar francesa no leste Líbio só pode ser obtida com aliado que a permita manter tropas e posição militar.

Dessa forma, Haftar, que com o ENL controla a Líbia em sua parte leste, é muito mais atrativo para os franceses do que o governo central em Trípoli. O marechal chegou a transferir ano passado os recursos petrolíferos para a NOC de Benghazi, tirando o controle da NOC de Trípoli. O presidente Macron já convidou Haftar para conversar algumas vezes sobre o futuro líbio e o estabelecimento de eleições livres no país.

O jogo geopolítico entre França e Itália, que movem suas peças para encontrar o melhor meio de lucro para os grupos empresariais de seus países, é algo que interfere na solução da crise líbia. Como se o país não tivesse particularidades demais, Roma e Paris fazem do norte africano um palco de batalha de seus interesses, o imperialismo mostra novamente suas garras.

A Líbia hoje se tornou aquilo que pode ser considerado um Estado falido. O poder central não exerce quase nenhuma autonomia. As políticas públicas e sociais são inexistentes. O Exército se transformou em diversos grupos armados, cada qual lutando por seu próprio nome. Tribos e grupos têm cada qual sua própria lei e códigos de regras, que não seguem a constituição nacional, e estes grupos exercem seu poder na forma de pequenos Estados.

A reconstrução de um Estado líbio, passa pelo fim do conflito armado hoje existente entre Trípoli e Benghazi. Estes conflitos por sua vez não poderão ser superados enquanto as duas potências europeias alimentarem o mesmo com sua política, hora de divisão do país, ora de confronto entre os grupos existentes, para beneficiar os lucros de suas empresas.

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