Desde Londres, nos intervalos do meu trabalho especificamente acadêmico, a partir das minhas observações da realidade dessa impressionante cidade, resolvi escrever, como crônicas, algumas reflexões acerca da epopeia humana, dos graves problemas e dos desafios que tem a civilização neste início de novo milênio. Diferentemente dos textos que entregarei à minha universidade de origem, estes aqui não terão formato rigoroso, pelo que me darei a liberdade de usar livremente a primeira pessoa, uma linguagem mais coloquial. Tenho a mania de, não sei se por defeito ou virtude, observar discreta e atentamente tudo em volta, em detalhes, o comportamento das pessoas, os costumes, o modo de vida local e especialmente a riqueza ou pobreza material e cultural das sociedades.
Nessa cidade de tanta história, fundada no ano 43 da era cristã, que já atravessou inúmeras guerras, pestes, bombardeios, que já foi a maior cidade do mundo no século 19, onde alguns que vêm para cá veem a imponência e a beleza arquitetônica dos seus prédios, eu vejo também a força do capital, poder, império, ideias, arrojo, ciência, história, busco explicações para a forma de ser do país e para seus problemas também. Quando vi o Tâmisa pela primeira vez, fiquei imaginando uma nau romana subindo o rio por aqui, há quase 2000 anos, no início da Era Cristã. Ao ver as marcas de explosões de bombas em muitos prédios, pelo bombardeio alemão na Segunda Guerra Mundial, com milhares de bombas V1 e V2 caindo sobre a Grã-Bretanha, imediatamente viajei no tempo e fiquei imaginando as pessoas correndo desesperadas para os subterrâneos do Metrô.
Nas poucas semanas desde que cheguei, além de cuidar das sempre difíceis questões de acomodação e sobrevivência em um país diferente, tudo muito caro, dos tropeços com meu inglês enferrujado, que estou tendo que colocar rapidamente em nível satisfatório para poder conversar com as pessoas, de segunda a sexta me escondo num canto da biblioteca da universidade onde realizo meu estágio pós-doutoral, me dedicando à pesquisa para cumprir meus compromissos de produção acadêmica com minha universidade no Brasil.
Já nos fins de semana, logo cedo corro para os museus, só saindo de lá quando estão fechando os portões, no final da tarde, meio que empurrado pelos funcionários. Os dois últimos fins de semana, antes de ir ver o Big Ben, até porque ele está “vestido” por alguns anos para reformas, passei dentro do Museu de História Natural e do Museu Britânico, experiência a partir da qual escrevo esta primeira carta e recomendo a todos que um dia puderem vir para cá não deixarem de fazer.
Como professor há mais de 30 anos, sonho e gostaria profundamente que cada criança ou jovem das escolas públicas brasileiras pudesse ter a oportunidade de passar por esses tão educativos corredores, onde, em profundo silêncio, respira-se história, evolução, ciência. Se eu estivesse à frente de algum governo estadual ou municipal, daria como prêmio ao melhor aluno de cada escola uma viagem até aqui, como forma de estímulo. Isso não seria tão caro se for feito de forma coletiva, planejada, previamente negociada com empresas aéreas e conseguindo com os governos daqui os alojamentos, com parcerias, intercâmbios. Vi, feliz, como educador, várias turmas de alunos de diversas partes do mundo visitando esses museus, acompanhadas de seus professores.
A riqueza dos museus londrinos e o Iluminismo
Quero começar esta série de cartas analisando o porquê de existirem nestes museus britânicos tão grandes e significativos acervos, discutindo como isso foi possível e por que não vemos a mesma coisa em outros países, mesmo quando formados por povos muito antigos, de onde vem parte dessas coleções, como Egito, Iran, Iraque, Síria, Grécia, sem falar na pobreza e mesmo na falta de museus no Brasil.
Penso que em grande medida isso decorreu da onda iluminista que atravessou profundamente a Grã-Bretanha e alguns países da Europa Ocidental nos 3 primeiros séculos da Era Moderna. Sem esquecer os imensos sofrimentos causados a muitos povos pela expansão europeia, do que falarei adiante, como sugeri no título considero o Iluminismo como talvez a maior herança positiva da Europa para a humanidade, com profundo impacto em nossa forma de ver e pensar o mundo hoje. Sem que nos demos conta, o legado do Iluminismo está presente em cada aula de Biologia, Física, Química, História, Geografia, Economia, Ciências Sociais etc., que temos hoje nas escolas e universidades do Brasil e do mundo, mudando radicalmente toda forma de pensar o mundo nos últimos séculos.
No Museu de História Natural de Londres, encontra-se um acervo de centenas de milhares de peças, animais grandes e pequenos empalhados, artefatos do passado e de distintas civilizações, minerais, plantas, fósseis de ossos de animais pré-históricos como os dinossauros, mostrando uma parte da longa evolução geológica do nosso planeta e da riqueza das diferentes formas de vida nele. Uma panorâmica e emocionante viagem no tempo. Mas o que você vê nos corredores é apenas uma pequena parte do que está por trás dos mostruários, guardado em milhares de gavetas e prateleiras internas. Por isso, pesquisadores de todo o mundo vêm estudar nesses museus londrinos.
Já no Museu Britânico, encontra-se centralmente uma coleção de peças que revelam a história da evolução da civilização, desde a Mesopotâmia, passando pelo Egito antigo, as civilizações assírias, Grécia e Roma até os tempos mais atuais. Na parte da Mesopotâmia, com sua Babilônia, pode-se ver a história do começo das cidades, da civilização, dos alfabetos, da agricultura. Neste museu estão ferramentas rudimentares, esfinges grandes e pequenas, sarcófagos, múmias, esculturas, colunas, placas de pedras originais de 5.000 anos com inscrições, leis e decretos das distintas dinastias egípcias ou assírias, um acervo de fato impressionante.
Ali se tem noção de como os distintos e aparentemente mais poderosos impérios ascenderam e declinaram, rise and fall, mostrando como nada é eterno, nem as aparentemente mais sólidas formações sociais, regimes políticos ou as mais perversas ditaduras. Nesses corredores, os últimos 10.000 anos – desde que o sapiens deixou de ser um nômade e se fixou nas primeiras aldeias entre os Rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, deixando de ser um nômade e começando a plantar e a criar animais – parecem um piscar de olhos.
Muitas das dinastias egípcias duraram séculos, mas caíram. O império romano teve um domínio impressionantemente vasto por muitos séculos, na Europa, África e no Oriente Médio, mas ruiu. A longa noite da Idade das Trevas, que tantos matou, passou. Estendendo o pensamento, falando do século XX, os regimes fascistas, como de Hitler e Mussolini, que aterrorizaram o mundo, ao final acabaram. O domínio europeu e norte-americano sobre o mundo moderno também está tendo seu fim, é só questão de tempo, assunto que será um tema de outra carta que escreverei. A atual ascensão de governos de direita no mundo, como no Brasil, que assusta a tantos, também cessará. Nada é eterno. Além do mais, o tempo histórico se acelera, tudo muda cada vez mais rápido, fica cada vez mais líquido, se dissolve, como disse Zygmunt Bauman. Às vezes para o mal, mas também para o bem. O desenlace do dilema sobre para que lado a humanidade vai enfim caminhar, dependerá da ação de cada um de nós e da velocidade com que ajamos na construção de um mundo melhor, enfrentando o obscurantismo.
Mas a questão que coloquei acima na carta é explicar por que alguns museus europeus e particularmente os britânicos podem ter acervos tão ricos, enquanto outros países não os têm. Ampliando a pergunta, podemos pensar também porque a Europa enriqueceu tanto e pôde ter um papel central na formação do mundo moderno. Cabe-me então explicar como o Iluminismo contribuiu para tudo isso.
O legado negativo da Europa
Antes analisar o imenso legado do Iluminismo, devo dizer que uma parte da explicação para a riqueza desses museus, que de forma alguma podemos desprezar, foram obviamente as possibilidades que tiveram os povos europeus ocidentais e particularmente o Império Britânico de carregarem para cá, nos últimos séculos, esses tesouros, saqueando pela força das armas e explorando num comércio desigual suas colônias, entre as quais se encontravam Egito, Síria, Palestina, Índia e muitos outros países ou partes da África, da Ásia e América.
Entre 1882 e 1952, por exemplo, o Egito foi ocupado pela Inglaterra, que trouxe para cá boa parte desses ricos acervos. Hoje, existe um forte conflito jurídico sobre a propriedade de grande parte dessas peças que estão nos museus britânicos, com os países de sua origem reivindicando a volta delas. Lembremos que depois que foram expulsos da América, com a independência dos EUA, os britânicos logo se viraram para a Ásia, África e Oceania e construíram talvez o maior império mundial de todos os tempos.
O saque, a escravidão moderna, os milhões de mortos, a opressão sobre as populações das colônias, são o lado negativo dessa história, da dominação não só britânica, mas europeia, no mundo nos últimos 500 anos. Que o digam, se pudessem, os milhões de habitantes originais das colônias mortos, na América, África, Ásia e na Oceania, pelas armas ou especialmente pelas doenças levadas pelos europeus, como bem nos mostrou Jared Diamond, no seu fenomenal Armas, germes e aço (2013), um livro absolutamente essencial para quem quer entender o mundo, cuja leitura recomendo vivamente a todos. Que o digam, se pudessem falar, os milhões de negros escravizados ou jogados ao mar vivos dos navios, sem qualquer clemência, quando ficavam doentes na travessia do Atlântico, arrancados de suas terras que nunca mais veriam. Que o digam os povos do Oriente Médio e da África, por séculos oprimidos e espoliados pelos impérios europeus. Esse é parte da explicação da riqueza desses museus e de alguns países da Europa.
A herança positiva da Europa
Mas no caso dos amplos acervos dos museus de Londres, avalio que não é só isso. Outros fatores, positivos, também influenciaram para a riqueza de suas coleções e de alguns países europeus. Um deles, como já falei, foi a influência do Iluminismo no pensamento de grande parte da Europa Ocidental, especialmente sobre o britânico. Deixem-me explicar. Talvez em nenhum outro país do mundo tenha havido como aqui na Grã-Bretanha, nos séculos XVII, XVIII e XIX, uma mania por observar, classificar, catalogar, arquivar, tentar entender, tudo aquilo que chegava aos olhos e mãos dos exploradores e pensadores. E isso deriva em grande medida da influência iluminista, que pregava o primado da razão, fugindo da explicação apenas religiosa.
Os séculos XVII e XVIII foram excitantes tempos de despertar da Ciência no continente. Muitas coisas que até ali eram mistérios começaram a ficar claras, a serem entendidas de forma racional; a compreensão correta das coisas e fenômenos passou a ser buscada nas suas causas e origens, como parte de um movimento, de uma evolução. A superstição, a tradição, os dogmas, a alquimia, as lendas, foram dando lugar ao pensamento racional, às novas teorias, à vontade de compreender, à observação atenta, à medição, à experimentação, ou seja, ao nascimento da Ciência.
Isaac Newton, o pai da Física Moderna, para chegar à Lei da Gravitação Universal, hoje ensinada em todas as escolas do mundo, no Japão ou no Brasil, e que mesmo uma nave espacial chinesa levará em conta para chegar a Marte no século XXI, tinha que estar livre de dogmas, com a mente aberta à investigação e compreensão racional dos fenômenos. Se pensasse que tudo depende de uma lei divina, que a maçã cai porque um deus quer, ou porque Adão a mordeu, nunca concluiria que ela cai pela força de gravidade da Terra. Jamais determinaria que essa força de atração entre dois corpos depende do produto direto de suas massas, da razão inversa do quadrado da distância entre eles, multiplicados por uma constante de gravitação universal, que ele chegou mesmo a determinar o valor, g = 9,81 m/s2. Chegar a isso hoje talvez seja fácil, mas chegar às suas 3 leis ainda nos anos 1600, em que ele viveu, é coisa para um gigante do pensamento, séculos à frente de seu tempo.
No terreno da Economia, Adam Smith é também um grande expoente do Iluminismo. Analisando os processos da Revolução Industrial nascente, o crescente comércio da Grã-Bretanha com o restante do mundo, as relações de trabalho nas indústrias, ele chegou a uma primeira formulação da Lei do Valor e ao entendimento do porquê de algumas nações serem mais ricas que outras. Ao ler A Riqueza das Nações, mergulhamos numa deliciosa viagem ao ambiente das sujas e fumacentas fábricas de Manchester, ou seja, na realidade em rápida transformação. Ao contrário do que se possa pensar, mesmo Marx, outro pensador de mente extremamente aberta, mesmo sendo um crítico do liberalismo de Smith, se considerava um discípulo dele, integrando a Economia Política deste último nas suas teorias.
Em vários países, homens práticos, como os engenhosos James Watt, Ampère ou Volta, construíram a ponte entre essa nova Ciência e o mundo da indústria, cada vez mais acelerado. A máquina a vapor aperfeiçoada de Watt ajudou a Grã-Bretanha a saltar na frente de todas as nações na Revolução Industrial, ajudando a construir sua riqueza e poder. Cada vez que dizemos que um equipamento ou uma máquina em nossa casa tem tantos Watts de potência ou que a voltagem da tomada elétrica é de tantos Volts, estamos nos referindo ao legado desses pioneiros, estamos sem saber nos referindo aos reflexos do Iluminismo para a Ciência, a técnica e a vida cotidiana. O Sistema Internacional de Medidas, que o mundo todo usa atualmente, foi criado na Europa como fruto dessa explosão da Ciência no continente.
Um pouco mais tarde, o pensamento e as teorias de Darwin, como expressos em A Origem das Espécies, que revolucionaram as Ciências Naturais, serão também reflexos das ideias iluministas de sua época. Darwin disse uma vez: “Freedom of thougth is best promoted by the gradual illuminations of men’s minds, which follows the advance of Science” (frase escrita em pedra na base de sua estátua, na entrada do Museu de História Natural). Aqui está cristalino o modo de pensar iluminista. Esse pensamento aberto ao novo, à investigação, à compreensão da origem, da evolução e do chegar a ser das coisas, ou seja, o pensamento científico, é bem diferente, ou para dizer melhor, é o oposto do pensamento dogmático, para quem tudo veio de criação divina.
Mesmo após quase dois séculos de Darwin e de a Ciência Moderna ter comprovado que somos primos e uma evolução dos primatas e que os nossos ancestrais sapiens de todos os povos atuais saíram da África há uns 200 mil anos, até hoje ainda há bilhões de pessoas que não acreditam nessa explicação. Caso se dessem ao trabalho de olhar a mão de um chipanzé, nosso primo mais próximo nos dias atuais no reino animal, veriam que ela tem 5 dedos igual à nossa. Você pode ver aí na Internet. Sabe-se hoje que 99% de nosso DNA é igual ao dele. Darwin promoveu uma revolução nas Ciências Naturais, mostrando que todas as espécies, animais e vegetais são resultado da evolução da vida no planeta, inclusive nós humanos. Por isso, já na entrada do Museu de História Natural encontra-se uma grande estátua dele, nos recebendo.
Por outro lado, em minha modesta opinião, a resistência da velha forma dogmática de pensar atrasou em muito o avanço do pensamento científico em muitos países, como na Península Ibérica, campo maior da Inquisição. O Iluminismo chegou de forma muito tardia em Portugal, Espanha e em outros países muito fechados e de religiosidade muito arraigada, o que ajuda a explicar o atraso na industrialização e na educação em muitos lugares, como no Brasil, já que a cultura em nosso país refletia muito o ambiente ibérico.
Sem querer desmerecer qualquer país ou povo, pois somos todos parte de uma única raça, a raça humana, todos igualmente inteligentes, afirmo que, em sua época, muito pouco provavelmente um Charles Darwin – que tinha apenas 22 anos quando embarcou no Beagle para uma viagem ao redor do mundo, observando atentamente e com mente aberta e ávida tudo que via, coletando, catalogando animais, plantas e rochas, para tentar entender a origem e a evolução das espécies – surgiria em outro país que não fosse a Grã-Bretanha ou no ocidente da Europa. Dificilmente surgiria um Isaac Newton em países dominados pela Inquisição cristã ou em países onde a forma hermética ou supersticiosa de pensar predominava, onde toda verdade já está pronta em um livro sagrado e o pensamento científico era repelido, as vezes com a fogueira, o apedrejamento e a morte.
Isso de forma alguma nega a importância da contribuição que muitas outras civilizações e povos tiveram para o avanço do conhecimento ou mesmo casos isolados de pensadores de destaque em países de desenvolvimento científico mais atrasados, como o caso de um Copérnico no leste da Europa ou um Santos Dumont. A agricultura, o arado, as cidades, a roda, o alfabeto e os números usados hoje na Europa, a religião cristã predominante no continente, a astronomia, a matemática, o calendário, a engrenagem, a metalurgia, a pólvora, o foguete, a navegação a vela, a grande arquitetura, a medicina primitiva, o vidro, o papel, o livro, a Filosofia, o Direito, surgiram noutros lugares, como no Oriente Médio, na China, na Índia, no norte de África, na Grécia etc. Não são invenções dos europeus ocidentais. Eles foram beneficiários de tudo isso. Mas o Iluminismo e a Revolução Industrial vão colocar esse continente no centro do desenvolvimento da Ciência e da técnica nos primeiros séculos da Idade Moderna.
O papel contraditório das religiões
Tampouco desprezo aqui a contribuição positiva das religiões, como o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, o budismo e outras crenças para o avanço da civilização. Em seu momento, o cristianismo, por exemplo, significou uma profunda revolução no pensamento humano contra a escravidão, a injustiça, a desigualdade, contra a pobreza de muitos alimentando a riqueza de poucos, e por afirmar valores como bondade, justiça, igualdade, honestidade, verdade, lealdade, respeito, humildade, misericórdia. A civilização não seria possível sem leis e valores, – ainda que no futuro venham a ser apenas consentidos, não impostos – sem a maior parte das regras de convivência que estão nos dez mandamentos cristãos, na Bíblia, no Torá, no Alcorão ou nos livros budistas, de importância vital para a coesão social. Muitos dos iluministas continuaram religiosos, apesar de não dogmáticos. Outros pensadores, como Spinoza, no entanto, pagaram caro e tiveram sua importante contribuição relegada, por verem uma maior oposição entre Ciência e religião.
O problema começa, e ai sim algumas religiões passam a ter um papel extremamente negativo, quando essas crenças são vistas como ideias imutáveis que tentam impedir o avanço do pensamento, da ciência, contra a mudança dos costumes, quando cegam e enchem os corações de ódio, passando a ser usadas para perseguição ou guerras contra outras crenças, contra os dissidentes, contra os diferentes. Ou, como vimos em todos esses séculos, para praticar, em nome de seus deuses, a maldade, a crueldade, a violência, os mais perversos crimes e massacres, os pogroms, negando os princípios humanísticos que as religiões pregam.
Bastaria pensar nas centenas de milhares de mortos pela Inquisição, a quase totalidade inocentes, culpados apenas por serem diferentes, para entender do que estamos falando. A Inquisição não queimou apenas livros, incinerou ou esquartejou centenas de milhares que pensavam diferente. Matou milhares de mulheres simplesmente por serem ruivas ou as que tinham opinião própria e não aceitavam a submissão aos homens, vistas como bruxas. Matou Giordano Bruno e por muito pouco não fez o mesmo com um gigante como Galileu. Hitler, com todo seu ódio, assassinou 6 milhões de judeus, entre os quais 1 milhão de crianças igualmente inocentes; tudo em nome do deus cristão. Matou cruelmente 26 milhões de soviéticos, em nome de sua ideologia de ultradireita.
Como o Iluminismo explica a riqueza dos museus britânicos
Voltando ao Iluminismo, quando afirmo que um Isaac Newton, um Charles Darwin, um James Watt, um Adam Smith, um Locke, um Voltaire, um Rousseau, um Hegel, um Feuerbach, um Galileu um pouco antes, talvez só pudessem ter surgido na Grã-Bretanha ou no ocidente da Europa em sua época, não estou falando de superioridade de nenhum povo. Isso não existe. Estou me referindo apenas e exatamente a um contexto histórico determinado, ao pensamento médio das sociedades em uma dada época, a um novo florescer do pensamento racional na Idade Moderna, ao Iluminismo, que surge de certa forma negando a Idade das Trevas, o Absolutismo, a Inquisição, para possibilitar que todo o conhecimento anterior acumulado fosse consolidado como Ciência e sua forma de aquisição transformada no que chamamos hoje de método científico. O Iluminismo produziu esses gigantes do pensamento humano em seu momento.
O Iluminismo é muitas vezes associado mais aos pensadores franceses das Ciências Sociais, da Filosofia, como Voltaire, Rousseau, Montesquieu, Diderot, principalmente no século XVIII. Mas isso é um engano. Foi uma nova forma de pensar que penetrou todos os campos do conhecimento, da Física à Medicina, passando pela Arqueologia. Além disso, os pensadores ingleses, como Newton, Smith, Watt, Locke, Darwin, foram muitos deles precursores deste movimento. Voltaire o reconhece e coloca Locke acima de Platão. Nas suas Cartas inglesas, ele diz o seguinte: “Talvez nunca tenha existido um espírito mais sábio, mais metódico, um lógico mais exato do que o Sr. Locke” (2001). D’Alembert, que organizou a Enciclopédia na França, também faz seu tributo a Locke e diz que ele é o criador da filosofia científica, assim como Newton o foi da Física científica. O Iluminismo foi, portanto, um movimento tão presente na Grã-Bretanha quanto na França e em outros países.
Mas para ir encerrando nossa reflexão, respondendo à pergunta feita inicialmente, o que o Iluminismo tem a ver com o rico grande acervo dos museus britânicos, que formulei no começo da discussão? Tudo. Isso porque para estudar e entender as coisas, os fenômenos, a vida, a história, fazer ciência, era preciso observar, coletar, arquivar, catalogar, fosse em coleções pessoais ou em museus. E isso foi feito aqui mais que em outros lugares.
Diferentemente das expedições de outras nações, quase sempre realizadas exclusivamente por motivos comerciais ou militares, as naus inglesas sempre levavam, além de um comandante, um explorador junto. Assim viajou Darwin. Um outro exemplo de explorador muito famoso por aqui é Robert Scott, que circundou o globo inteiro várias vezes e morreu na Antártida voltando de uma expedição para ser o primeiro humano a chegar ao Polo Sul, em 1911, numa corrida que perdeu para o explorador norueguês Roald Amundsen.
Bem, espero ter explicado minha tese da relação do Iluminismo com a riqueza dos museus de Londres, que sugeri no título dessa carta. Tomem esta minha admiração por estes acervos e esta simples carta também como um apelo por mais museus nas cidades brasileiras. Um país que não preserva sua história não pode ter um grande futuro. Lamento imensamente pelo incêndio de um dos nossos poucos museus, o Museu Nacional, deixado ao abandono por governos obscurantistas, a quem não interessa o esclarecimento de nossa gente. Precisamos despertar o interesse de nossas crianças e jovens pela história, pelo conhecimento, pela Ciência. Nos sábados e domingos pela manhã, vi aqui em Londres, na Estação do Metrô de South Kensington, que dá acesso a ao Museu de História Natural e ao Museu da Ciência, uma multidão de gente chegando animada, centenas de famílias inteiras, país trazendo os filhos, de tudo quanto é lugar, pela aparência humildes, com crianças logo encantadas em cada corredor. Que inveja senti. Precisamos criar essa cultura no Brasil. Sou otimista.
Meus próximos alvos já estão definidos: o Museu da Ciência e o Museu da Guerra. Nas semanas seguintes, nos meus fins de semana, pretendo escrever novas cartas, relacionando o que estou vendo nesta impressionante cidade com os problemas humanos atuais. Já na próxima carta, que está no forno, pelas minhas observações nos bairros fora do centro de Londres, tentarei mostrar como o liberalismo vem levando a Grã-Bretanha, pioneira na Revolução Industrial, e o Ocidente, à desindustrialização e à decadência, com todas as consequências sociais e políticas disso. A Grã-Bretanha é desde algum tempo um cemitério de fábricas, como vem ocorrendo também nos EUA. Assim, vou dividindo essa rica experiência com vocês, fazendo o caminho inverso dos exploradores ingleses, na terra deles.
Londres, 14/04/2019
Referências
Diamond, Jared. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades. Rio de Janeiro: Record, 2013.
Voltaire. Cartas Filosóficas. São Paulo: Ed. Landy, 2001.
*Robério Paulino é professor do Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). No momento realiza estágio pós-doutoral na SOAS University of London. Fundador do PSOL, candidato a governador do RN e a prefeito de Natal em 2012, 2014 e 2016.
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